MITOS DE ORIGEM E DESTINO
Há pelo menos duas visões sobre o pensamento mítico: podemos chamá-las de visões negativa e positiva. A primeira encara a concepção mítica como um engano, uma distorção ou desfiguração da realidade; considera que não há significado intrínseco ao mito, como não há expressão verdadeira, apenas a reprodução inadequada do mundo, mediada por signos. A segunda encara o mito como um complexo de símbolos, algo que estabelece critérios próprios de representação; considera que o significado mítico deve ser encontrado em sua fonte, e que suas imagens não constituem meras imitações, mas órgãos expressivos da realidade. Se uma leva ao ceticismo, ao empirismo e às exigências práticas da linguagem, a outra abre caminho para o estudo comparado das religiões e o entendimento das formas que o mundo constitui quando transposto para um contexto que não deriva sua finalidade da ciência ou da filosofia.
Consideremos a abordagem positiva: a mitologia é um complexo de imagens que são tomadas como representações de um sentido em alguma área particular da experiência. O mito, por essa ótica, dá forma à imaginação; o que descreve não é o mundo natural, e sim o impulso imaginativo que busca se projetar neste mundo. Difere de um conceito, pois seu meio é a imagem, algo concreto, ou apreensível pelos sentidos, como uma narrativa. Se uma parcela dos mitos é baseada em eventos históricos, não decorre que eventos históricos adquiram necessariamente um caráter mítico – outros reis foram importantes para os bretões, mas apenas Arthur se tornou mítico. O problema envolve o reconhecimento de um sentido além da dimensão histórica, e não é improvável que aceitar o mito seja equivalente à aceitação de pontos cegos no pensamento conceitual. O mito, afinal, utiliza a linguagem e a técnica para especular sobre seus limites e seu propósito. Que alguns mitos apresentem-se como científicos e que a ciência ignore suas origens míticas não é uma resolução deste problema, mas o início de outro.
O mito de origem é talvez o caso mais emblemático. Diferente da crença de que o homem é acima de tudo constituído historicamente, propõe que as coisas resultam não de um processo contínuo, mas de um certo número de eventos. Atribuindo a tais eventos um sentido especial, estabelece uma moldura que os destaca do plano cotidiano; uma vez destacados, podem ser então repetidos, na transformação de ideia em ação convencionalmente chamada de “ritual”. Com os rituais, aprende-se como as coisas ganharam existência e como foram desenvolvidas; aprende-se também onde encontrá-las, e como fazer para que reapareçam ou retomem o valor original. É a partir desta operação que o mito de origem se projeta com frequência no mito de destino. Considerando a possibilidade de retomar as origens, e numa absorção do processo histórico, a formulação ganha sua contraparte futura, um ponto de chegada que atrai magneticamente os eventos.
O que se pretende aqui é uma espécie de mitologia comparada no contexto das “duas vanguardas”. Consideremos as imagens propostas como explicações ou diretrizes para o cinema como referências míticas, ou seja, expressões de sentidos particulares em sua experiência, e que definem funções para o cineasta tanto quanto para o crítico e o próprio espectador. Isso requer uma aceitação das premissas de cada mito, uma suspensão momentânea do juízo, de modo que se possa encarar o cinema por seus ângulos singulares. Mas consideremos ainda que, sendo o cinema um campo passível de organização, e não um mero acúmulo de obras numa área cultural comum, pode-se identificar as linhas de força deste campo, buscando visualizar algo como um plano de coordenadas. Após a aceitação das premissas, a comparação dos mitos deve então ter em vista essas coordenadas. O objetivo é uma visão de conjunto desse plano.
Um posicionamento recorrente na escrita sobre uma arte é a correspondência total da experiência com um mito particular, do que decorrem postulados e polêmicas ao redor do conteúdo expresso. A reflexão de Adorno sobre a música de Schoenberg e Stravinsky é representativa dessa postura, em sua adesão ao primeiro e rejeição ao segundo com base em uma mitologia para a arte europeia. Nesses casos, a área iluminada pelo mito é vista como privilegiada, e as obras que surgem em suas dependências assumem o papel de monumentos que determinam a escala de valores na totalidade do campo. Atraídas pela descoberta do mito, as experiências subsequentes não podem senão confirmá-la retroativamente. A importância deste posicionamento deve ser reconhecida; é sobre suas várias encarnações que se baseia o raciocínio teórico, e uma adesão, ainda que parcial, a uma região bem definida do espectro de uma arte, permite e intensifica o desenvolvimento de suas capacidades, tanto críticas como criativas. O que se sugere aqui, entretanto, é uma descentralização, ou ainda, a conformação dos referenciais míticos a um quadro mais amplo que regula as suas propostas. Quanto mais concentrada é a atenção a um mito particular, mais se tende a torná-lo o único referencial, e mais as observações sobre regiões distantes no mesmo campo parecem distorcidas, pois um mito pode apenas descrever a sua perspectiva específica, nunca o conjunto de perspectivas complementares. A integração dos vários conteúdos míticos é um trabalho fundamental na medida em que permite aos mitos informar uns aos outros, iluminando com isso as diferentes regiões da imaginação cinematográfica. É apenas com este trabalho que se pode evitar os dois extremos: o do fanático, tão entregue às convicções que não é capaz de as ver como possibilidades, e o do diletante, tão consumido pelas possibilidades que não é capaz de ter convicções. Nesse contexto, algum equilíbrio é necessário.
Artes como a pintura ou a música, surgidas num passado distante, e ele mesmo mítico, derivam (imaginamos) de impulsos básicos, inconscientes, como a necessidade de comunicar e expressar. Estes impulsos são evidenciados a partir do encontro com materiais e instrumentos, igualmente primitivos. Seu desenvolvimento é então idêntico à gradual tomada de consciência sobre os meios e os fins atribuídos a eles por cada cultura. O cinema, no entanto, surge num período já consciente dos critérios e das técnicas que cercam seus instrumentos. Surge com um propósito especial, aliado a pesquisas científicas e artistas influenciados por tais pesquisas. Havia um processo histórico em curso, uma série de tendências manifestas nos interesses dos inventores e nas exigências do público; havia o que chamamos de modernidade, e a atribuição de um papel central ao movimento e à fixação de imagens num suporte fotográfico. Neste cruzamento de forças nasceu uma tecnologia implicada na composição de objetos que no futuro seriam defendidos como obras de arte. Os critérios de transparência e continuidade, partes da empreitada científica, logo se tornaram partes do discurso estético. O cinema foi visto como uma arte criada tecnologicamente, e cuja vocação seria o realismo.
Este discurso é complementado por anedotas e testemunhos que confirmariam a potência original do cinematógrafo. A lendária projeção dos Lumière é um exemplo. Os espectadores, completamente absorvidos na representação do movimento, ao encarar a imagem do trem chegando à estação teriam saído aterrorizados da sala por medo de serem atingidos pelo veículo. A reverberação mítica é evidente; o caso remonta à história de Zêuxis, contada por Plínio, o Velho, na qual o pintor seria tão hábil na representação da realidade que as uvas em seu quadro enganariam mesmo os pássaros, que tentariam bicá-las. É também lendária a reação de Georges Méliès: ao ver o registro de um casal alimentando um bebê, ele teria apontado, maravilhado, não para a ação central, obviamente preparada, mas para o movimento das folhas ao fundo, a prova de que o cinema capturava a dinâmica própria da natureza, além do controle do homem. Mais do que a veracidade histórica destes casos, importa o papel central que tiveram na argumentação sobre a vocação original, e como revelam aspectos envolvidos na formulação do mito do realismo. No contexto mítico, se as lendas tomam o lugar dos fatos, imprime-se a lenda.
Em sua maioria, os filmes dos Lumière são constituídos de planos fixos que permitem a pessoas e veículos atravessar o espaço, sem controle estrito sobre entradas e saídas de quadro. Enfatizam a naturalidade dos movimentos e a liberdade do mundo perante a câmera, independente de representarem cenas ensaiadas ou improvisadas. As simetrias estão ausentes; elas acrescentariam talvez um equilíbrio estático na disposição gráfica; preferem, em vez disso, o desequilíbrio, a incompletude. Nestes filmes, a câmera mostra a infinidade de movimentos existentes; mostra como diferentes ocasiões tornam-se igualmente fascinantes perante a objetiva, e como um breve registro pode descrever uma espécie de melodia natural nas coisas, revelando o desabrochar de vários elementos num pequeno intervalo espaço-temporal. Ainda assim, há sempre mais do que a câmera é capaz de registrar. A vivacidade desses filmes não é da ordem do controle, e sim da dinamização do transitório, do que parece habitar igualmente todos os centímetros da tela. O movimento é tão onipresente que parece estender-se para além das fronteiras do plano. Mesmo o ângulo privilegiado, o recorte exato, não é capaz de restringir a imagem; as constantes mudanças ocorrendo nas bordas do quadro são a prova de que, no cinema, a tecnologia pode funcionar como um catalisador daquilo que encerra. Esta concepção de realismo parece melhor sintetizada na expressão de Godard, segundo a qual Louis Lumière seria o último impressionista. A representação do movimento receberia assim o acréscimo do que Bazin chamou de “ontologia fotográfica”. A relação material com os eventos representados é inegável. Houve um dia um concurso de vontades e objetos que percebemos como uma estação de trem, uma partida de cartas, uma dançarina sobre um palco: a prova é o intricado sistema de luzes e sombras projetado para a câmera, em primeiro lugar, e para nós, em seguida. A luz nos dá a certeza de que, tendo olhos para ver, a câmera nos serve de extensão e garantia. Para onde quer que se olhe – a câmera parece dizer –, é assim que as coisas são.
A identificação absoluta com a vocação realista gera reações típicas em relação aos mitos de origem e destino. Argumenta-se que os Lumière alcançaram este resultado porque o fizeram sem o peso da história. Não havia um passado, e como eles reconheceram, não havia um futuro. Não havia um conhecimento propriamente cinematográfico pois não havia uma instituição cinematográfica. A imaginação livre das amarras conceituais teria sido então o fator que permitiu a combinação incomparável de precisão e leveza. Esta é uma visão consideravelmente pastoral sobre a questão das origens: para além de qualquer habilidade técnica dos cineastas ou de qualquer rede de intenções ou influências, postula o fulgor da ação primitiva como critério de validade. A suposição é que o “natural”, ou ainda, o que é anterior à codificação racional, é necessariamente superior. Seriam melhores as obras que exibem certa pureza do olhar, prova da erupção inicial de criatividade. A melhor articulação, neste caso, é a menor articulação possível, aquela que permite a revelação do mundo pela exploração inconsciente da arte. O trabalho consciente é visto como um mal necessário, e descobertas técnicas que permitem novos tipos de articulação se tornam obstáculos que podem desviar a atenção do que é essencial. O filme a ser defendido é, portanto, o que retoma seus primórdios, que busca a libertação das camadas históricas para que o método seja purificado. O melhor cinema seria o primeiro cinema, e o melhor cinema de cada época seria aquele que reencontra, em seu momento particular, a vocação original.
Em obras situadas na área descrita pelo mito realista, é muitas vezes o “acaso significativo” que constitui um dos pontos de inflexão. A filmagem é definida como a espera daquilo que não pode ser previsto, mas que, uma vez registrado, dará um sentido especial a todo o espaço. O Renoir de Um dia no campo (Partie de campagne, 1936-1946) é talvez o exemplo quintessencial dessa tendência, uma verdadeira amplificação do impressionismo pelo terreno do cinema falado, desde a “naturalidade” dos planos até a própria incompletude da narrativa. Mais tarde, Maurice Pialat fará o mesmo elogio a Lumière, abrindo seu Van Gogh (1991) com a chegada de um trem à estação, no final de uma carreira dedicada à exploração de um realismo de arestas não-polidas, atento ao conflito imediato dos atores em cena. A crítica correspondente fará então o elogio do risco tomado pelo cineasta nesta abordagem, da aposta com as inúmeras variáveis envolvidas. Neste jogo, a moeda é atirada para o alto e a própria incerteza de seu resultado torna-se a fonte do interesse. Jean-Claude Biette sintetiza essa postura ao defender o cinema em que a passagem de uma borboleta, em vez de interromper o drama, o ilumina[1]. O elemento que garante o dinamismo cênico é, aqui, sinônimo da rendição do controle às contingências da natureza. Defende-se, em suma, o filme como armadilha para o real.
A partir desses critérios, a delimitação de um cânone torna-se uma verdadeira filtragem da história do cinema. Stroheim é aceito por Bazin como parte da linhagem principal, mas o mesmo não ocorre com Vertov, e Rivette afirma sobre Viagem à Itália (Journey to Italy/Viaggio in Italia, 1953-1954) que ali haveria “uma brecha pela qual o cinema deve passar se não quiser morrer”[2]. A eleição de figuras representativas é ela mesma filtrada pelo mito, garantindo a consistência do projeto crítico. Rossellini é, portanto, absorvido pela tradição – mas Stromboli (Stromboli, terra di Dio, 1949-1950) mais do que A tomada do poder por Luís XIV (La prise de pouvoir par Louis XIV, 1966). Por compensação, ataca-se o filme como busca da perfeição consciente, e toda uma gama de adversários pode então ser listada com vários graus de discordância dos rituais realistas. Essa crença está no cerne da nouvelle vague e dos “cinemas novos”, fundados parcialmente sobre críticas realistas ao cinema dominante, uma razão pela qual foi igualada por seus fiéis à noção de “modernidade”[3]. Esta crítica supõe (e por isso mesmo nem sempre expõe argumentos sobre) uma seleção de quais eventos seriam passíveis de interesse; supõe que alguns eventos já possuiriam em seu interior as características desejadas; supõe, inclusive, uma concepção do que é de fato a realidade, como ela se constitui, e como influencia a matéria fílmica. O crítico torna-se, com isso, não um analista, mas um hierofante, um intérprete dos mistérios, alguém cujo discurso preza justamente pela manutenção do aspecto misterioso de seus objetos. Não é casual que a guinada analítica dos Cahiers du cinéma tenha ocorrido justamente no momento em que certas premissas bazinianas foram postas em dúvida.
O autor de “O mito do cinema total” identificou, no cruzamento entre a ontologia e a história, uma concepção que remontaria às invenções precedentes ao cinematógrafo e que serviria de base para as etapas cruciais de sua arte. A evolução cinematográfica, segundo Bazin, é atraída por uma ideia básica: ele se refere ao “mito do realismo integral, de uma recriação do mundo à sua imagem, uma imagem sobre a qual não pesaria a hipoteca da liberdade de interpretação do artista, nem a irreversibilidade do tempo.”[4] Conscientes de que se trata de um sonho tecnológico e incapazes de alcançar este objetivo, os nomes que avançam a arte cinematográfica seriam aqueles que absorvem as descobertas técnicas ao mesmo tempo em que se voltam ao realismo total como a um horizonte fenomenológico. A impossibilidade é inscrita na própria formulação do mito, que diz respeito a uma característica fundamental, mas revelada indiretamente. O ponto estaria menos na reprodução do movimento, da cor, do som, ou na aparência verossímil da imagem, que na possibilidade de unificação desses aspectos, cada um deles tomado como um problema a ser resolvido – não pelo desenvolvimento superficial, “ilusório”, mas na medida em que poderiam ser combinados numa única imagem. Haveria, dessa forma, uma espécie de princípio coordenador, manifesto não através de cada propriedade isolada, mas subjacente a todas elas. A suposição de que o “natural” é necessariamente superior ganha um acréscimo essencial com o pensamento de Bazin, para quem a realidade é como uma entidade orgânica, praticamente divinizada, e à qual o cineasta deve respeitar para que a beleza seja uma decorrência ou um sinônimo da verdade. O que está em jogo é a crença no cinema como um fator que permite ao homem encarar o mistério do mundo em seu contexto inalterado, na própria descoberta da natureza – a representação integral como contraparte da integridade do real. Entregue à representação absoluta da realidade, o espectador imaginado por Bazin seria talvez o inverso do prisioneiro da caverna platônica: encarando a imagem do mundo, consciente de sua condição de simulacro, ele reencontraria uma unidade primordial através de sua reconstrução.
Como uma pirâmide apoiada em seu vértice, a estrutura do pensamento de Bazin é apoiada em sua concepção de ontologia fotográfica. Deste ponto seguem-se outras reflexões, em ampliações gradativas que interagem com as mais diversas obras, absorvendo suas contribuições de maneira dialética. O cinema total, visto como a essência da arte cinematográfica, é mais do que um ponto de origem ou destino: é o motor de sua trajetória, o que move o pensamento sobre o cinema e faz com que a sua matéria, frente à erosão histórica, seja moldada conforme as condições. Partindo do princípio de que há uma relação de identidade entre o registro fílmico e o mundo natural, Bazin defende que as técnicas do cinema devem se voltar à manutenção dessa unidade. A combinação do plano-sequência e da profundidade de campo é central em sua mitologia pois respeita a unidade espaço-temporal; supõe que o mundo perante a câmera é fonte de toda complexidade e ambiguidade, e que o papel do cineasta se restringe a conduzir eventos já existentes, ainda que direcionados pela ficção. A montagem, por sua vez, torna-se algo próximo de um pecado original. O corte no fluxo do espaço-tempo invariavelmente traz a articulação do registro, e com isso a contribuição do artista, nesta arte que havia sido destinada a reconstruir o mundo a partir de sua própria imagem. Em sua crítica, Bazin formula um verdadeiro mandamento do realismo: “Quando o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais fatores da ação, a montagem fica proibida.”[5] Como uma amplificação dos métodos de montagem, a proposta de uma “linguagem cinematográfica”, sugerida por Griffith e codificada por Pudovkin, e mesmo a consideração de que a arte cinematográfica possa constituir uma linguagem de qualquer tipo, ambas são vistas com desconfiança. Sob o mito do cinema total, a revelação deve ocorrer a partir do mundo, não do cineasta ou de uma linguagem. Em vez do artista como criador, propõe-se o artista como testemunha da criação.
André Bazin não foi o primeiro a formular um mito de origem e destino para o cinema, mas foi um dos primeiros a ter plena consciência de sua formulação como sendo mítica, isto é, como sendo uma diretriz para a criação e a reflexão, possuindo raízes mais profundas do que meras preferências estéticas. A clareza de sua escrita e a honestidade em relação aos seus critérios tornam Bazin um nome essencial para compreender essa tradição, tipicamente francesa. É fundamental sobretudo pelo reconhecimento de sua postura como sendo muitas vezes definida pelo contraste e pelo atrito com outras posições, as quais busca negar ou redirecionar. Isso o levou a perceber, ainda que de maneira enviesada, a importância de uma tradição formada em outra parte do mundo e que propôs um mito radicalmente oposto: o mito da montagem como a pedra fundadora da arte cinematográfica.
Na busca por razões e princípios, os cineastas da União Soviética se propuseram a análise dos grandes filmes americanos, separando as partes e identificando os processos constituintes. O objetivo declarado era compreender o funcionamento de uma obra para que se pudesse então criar e aperfeiçoar obras subsequentes. Assim como a exibição dos Lumière, a história de um experimento ganhou os ares de uma revelação. Dispondo em certa ordem alguns planos, todos eles inexpressivos se vistos separadamente, Lev Kulechov teria sido capaz de isolar os vetores emocionais por meio das diferentes combinações entre as imagens. O rosto de um homem, impassível, dava lugar a um prato de sopa; em seguida, retornava à tela o homem, e sua expressão parecia distinta. A operação se repetia, com o mesmo exato plano do homem dando lugar a uma mulher, ou a uma criança deitada em um caixão. A cada combinação, a cada mudança das posições, um novo resultado se apresentava. A cada organização, um sentido específico parecia emergir como a resultante de suas partes: a fome, o desejo, o luto. O rigor laboratorial e a repetição das variáveis atesta o caráter cientificista, típico da mitologia soviética do período; como no estudo de uma lei natural, o “efeito” foi batizado com o nome de seu descobridor. Não tardou para que o princípio estabelecesse um verdadeiro método. Uma consequência imediata foi o desenvolvimento da noção de montagem como sinônimo da criação cinematográfica. Um filme poderia então ser definido como a integração de uma série de fatores – gestos, atores, cenários – pela lógica interna de suas relações, isto é, pela transição de uma imagem a outra, e pela estrutura mental criada por elas.
Kulechov e seus alunos prontamente generalizaram o efeito descoberto, abrindo caminho para a noção de “geografia criativa” e a sistematização das práticas de direção e mesmo de interpretação dramática. A realidade do espaço cênico, como a do corpo do ator, resultaria não do simples registro fotográfico, mas da combinação de planos, para que o sentido desejado fosse criado. De maneira geral, a realidade do filme torna-se com isso a realidade de sua organização pela montagem. O espaço da narrativa torna-se o espaço decorrente das angulações da câmera após a sua dinamização pelos cortes. A correspondência com o espaço da filmagem é possível, mas não necessária: para determinados efeitos, ou por razões econômicas, pode-se combinar partes inteiramente discrepantes em relação ao seu contexto imediato, mas que na tela serão transfiguradas e poderão constituir uma nova realidade, inexistente em cada um dos elementos isolados (o exemplo favorito de Kulechov é o do ator que, filmado em diferentes cidades, sugere pela continuidade de seus passos uma só vizinhança). Da mesma forma, as atuações devem seguir uma rigorosa disciplina. Expressões faciais são classificadas, numa organização tipológica das emoções, e gestos são geometrizados para que se tornem ferramentas reconhecíveis. Se a força do cinema encontra-se na relação entre suas partes, e se elas devem ser organizadas tendo em vista sua realidade final sobre a tela, então o cineasta dirige os atores como peças num mecanismo.
A composição dos filmes não seguiria, portanto, as mesmas diretrizes encontradas no cinema iluminado pelo mito realista. Para que os encaixes entre os planos sejam bem definidos, e para que o sentido seja controlado no desvelamento da projeção, alterações devem ocorrer em diferentes níveis. O princípio de continuidade não mais serve como a única referência: a obra passa a operar também por saltos, choques e intervalos, sejam eles plásticos, rítmicos ou temáticos. O registro fotográfico ainda sustenta alguma transparência; os eventos são reconhecíveis e claramente apresentados; mas a disposição dos objetos e o caráter das ações é pré-concebido, e as formas parecem expor, mais que a abertura e a permeabilidade do quadro, sua concentração e seus limites, aquilo que permite ao cineasta organizar em seu interior algo como um discurso. Numa direção semelhante à do cubismo, os defensores do mito da montagem imaginaram um cinema no qual a decomposição e a síntese de partes seria o modo mais eficaz de representar os fenômenos desejados.
Sob estes esforços, há duas suposições. Uma delas é que a reprodução da realidade não basta para constituir uma arte. Este preceito remonta às primeiras críticas à fotografia, que tomaram o automatismo do processo como uma redução da agência humana e portanto como um fator não-artístico. À primeira vista, uma aceitação do realismo fotográfico aliada à desconfiança de seu mecanismo sugere uma contradição no espírito tecnicista da vanguarda soviética. Isso é respondido pela segunda suposição, de que a “organização” da obra, em seu nível mais imediato, é a responsável por todos os efeitos, logo é a atividade artística por excelência. O alvo do interesse não é o automatismo, mas sua articulação pelo homem. O que estas ideias descrevem é uma visão fiel ao espírito construtivista. Criar uma obra de arte, por essa ótica, não é revelar o que já se encontra no mundo, ou dinamizar os movimentos da natureza: criar é construir, e as virtudes da construção ganham ênfase conforme os materiais têm sua independência diminuída, como engrenagens numa estrutura maquínica. Resulta disso uma inversão da vocação realista. Em lugar do mundo como fonte última de toda complexidade, propõe-se o artista como engenheiro, fonte de toda a razão, projetando-se no mundo e utilizando-o como matéria-prima para sua visão.
Em filmes destacados pelo mito da montagem, o acaso é muitas vezes empurrado para a fronteira, o mais longe possível, ainda que sobre um resíduo que não possa ser eliminado. O acaso é ainda percebido, mas como algo negligenciável, que não parece ter um papel central na obra. Se em filmes da tradição realista o acidental seria elogiado como a mais pura individualidade, nos filmes baseados na crença da montagem tende a ser o fator de perturbação que deve ser reduzido. Um exemplo significativo é o dos filmes nos quais a própria criação do material não é feita pelo cineasta, mas apropriada de outras fontes. Esfir Schub, pioneira do “filme de compilação”, explicita esta postura com obras em que o componente relacional, a unidade instituída pelos cortes, toma a frente e sobrepõe-se à filmagem; como se o propósito, e como se a realidade mesma de cada plano, fossem submetidos a um desígnio externo, a uma vontade criativa que serve-se do mundo para dele formular um sentido. No limite, o conteúdo original é inteiramente subvertido pela ordem da montagem.
A exaltação do aparato cinematográfico, sobretudo em sua dimensão cognitiva, é uma das chaves da vanguarda soviética, e dois de seus maiores expoentes, certamente os que desenvolveram esse aspecto de forma mais intensa, na teoria e na prática, foram Dziga Vertov e Sergei Eisenstein. Além da poética individual que informou seus respectivos filmes, o que ambos defenderam foi um mito de destino: o cinema como ferramenta de investigação epistemológica. A premissa central, que eles compartilharam com Kulechov, é de que a continuidade do registro é ilusória, e que não basta para compreender o sentido profundo da realidade; para isso, seria necessária uma adaptação da dialética, isto é, uma coordenação de opostos capaz de avançar sinteticamente os materiais, utilizando a progressão do filme como motor de um processo intelectivo. Filmar apenas o que o olho vê, argumenta Vertov, resultaria apenas em confusão. Para uma clareza mais elevada, deve-se editar o material, realizar uma seleção e ordenação criteriosas. O espectador, por sua vez, é visto como alguém a ser não apenas educado, mas cujas faculdades poderiam ser instigadas e mesmo elevadas pela nova tecnologia. A inclinação pedagógica é condizente com uma vanguarda que encarava a revolução estética como uma contraparte da revolução social. O cinema teria, assim, uma função maiêutica, criando a “possibilidade de tornar visível o invisível, de iluminar a escuridão, de desmascarar o que está mascarado, de transformar o que é encenado em não-encenado, de fazer da mentira a verdade”[6]. Da montagem de fatos visuais registrados, Vertov considerou já nos anos 1920 o momento em que seria possível articular os fatos visuais e os fatos sonoros; e ampliando sua especulação, considerou ainda a possibilidade de organizar simultaneamente os fatos de todos os sentidos, levando com isso à máxima potência o controle exercido pelo cineasta. O postulado é semelhante àquele proposto na literatura por Eliot: encontrar uma série de objetos ou procedimentos que seja como a fórmula particular de uma ideia ou emoção, de modo que, ao serem dados os fatos sensíveis, será dada por consequência a ideia ou emoção que os organizou[7].
A sugestão de um raciocínio presente nas imagens, definido e conduzido por suas propriedades e por seu encadeamento, é feita por Eisenstein na formulação do que ele chamou de “cinema intelectual”. O exemplo clássico é a sequência de Outubro (Oktyabr, Sergei M. Eisenstein e Grigori Aleksandrov, 1927) intitulada “Por Deus e pela pátria”. A sucessão de estátuas religiosas, intercaladas com templos, repetidas e variadas, associadas umas às outras pelo ritmo e pela disposição plástica, imóveis e isoladas num espaço anônimo, cria o que ele acreditou ser um processo analítico, uma redução dos sentidos possíveis, das reverberações temáticas que as imagens normalmente trariam, a um esquema por ele previsto – neste caso, a abstração do conceito de divindade através da própria abstração figurativa de suas representações[8]. Este procedimento, que atinge neste filme o paroxismo, é recorrente no período silencioso de Eisenstein. Além da escadaria de Odessa em O encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin, 1925) e do separador de leite em O velho e o novo (Staroye i novoye, Sergei M. Eisenstein e Grigori Aleksandrov, 1927-1929), a sequência da elevação da ponte em Outubro atesta o domínio que o cinema possibilita sobre um acontecimento uma vez que sua criação é fundada na montagem. À abertura da ponte, à quebra da manifestação bolchevique, Eisenstein sobrepõe uma fenda no espaço-tempo, uma decomposição da continuidade em pequenos intervalos, manipulando os eventos e construindo uma nova realidade onde a profusão de saltos, quedas e reorientações gravitacionais inscrevem, mais do que ilustram, o tema geral – o trauma da revolução interrompida. A repetição ostensiva, o hipérbato, o rigor quase algébrico, a gradação rítmica dão a esses momentos uma precisão encantatória. No espaço fragmentado, marcado pela divisão da tela em linhas e direções elementares, corpos são orquestrados e tornados partes de uma verdadeira equação imaginativa.
Não é surpreendente que, entre os projetos sonhados por Eisenstein, encontremos adaptações de obras que lhe permitiriam explorar em profundidade os aspectos cognitivos da composição fílmica: de um lado, O Capital, de Karl Marx; de outro, Ulisses, de James Joyce. Em suas notas para as adaptações, constam inúmeras reflexões sobre o potencial da montagem, especialmente sua capacidade de elaborar um raciocínio fílmico e um equivalente do “monólogo interior” da literatura. Estes textos, como molduras de um projeto teórico, servem ainda como referências para localizar outros posicionamentos que não ressoaram de maneira harmônica com o cinema soviético.
No ano da morte de Eisenstein, Alexandre Astruc publicou um texto que se tornou célebre como o prelúdio de toda uma geração da crítica francesa. Astruc, que sonhou em adaptar O discurso do método, foi também instigado pelo problema da expressão de um pensamento. O que ele enfatizou, contudo, foram aspectos inteiramente diversos:
Essa ideia, essas significações, que o cinema mudo tentou criar através de associações simbólicas, nós compreendemos que elas existem na imagem mesma, no desenrolar do filme, em cada gesto dos personagens, em suas palavras, nos movimentos de câmera que ligam os objetos e os personagens a estes. Todo pensamento, como todo sentimento, é uma relação entre um ser humano e um outro ser humano ou certos objetos que fazem parte do seu universo[9].
Foi a decomposição da realidade, a redução dos planos a fragmentos que pudessem ter parte num esquema, permitindo com isso a condução da imaginação, que serviu de premissa aos soviéticos. Como uma quebra originária, havia para eles uma separação básica entre a imanência do evento e sua transposição para uma realidade fílmica, uma separação que deveria ser amplificada, elevada a um princípio composicional. A crítica francesa de extração baziniana não admitiu este princípio. A montagem lhes pareceu monstruosa porque se imaginava capaz de resumir num padrão a complexidade infinita, e mesmo de romper a unidade entre o literal e o figurado. Implícitos na declaração de Astruc estão os ideais de continuidade e unidade que fizeram da profundidade de campo e do plano-sequência as armas mais preciosas do realismo, e a fusão inextricável entre matéria e sentido que tanto inspirou Bazin e seus seguidores. Mas o que se esboça neste trecho é algo mais específico. Trata-se de um subconjunto do mito realista, um terreno que foi explorado nas décadas seguintes pela crítica mundial, tendo nos Cahiers a principal referência. Ao redor do conceito de mise en scène, ganhou força o mito da encenação como sinônimo da criação cinematográfica.
O argumento de Astruc se reduz a dois pontos que resumem a transposição dos critérios teatrais para o cinema que caracteriza esta linhagem. O primeiro é uma recusa do cinema silencioso. Não apenas as táticas da montagem e as trucagens que enfatizam a plasticidade visual são negadas, mas há uma consciência do silêncio como representando uma falta. Este mito do cinema sonoro é, com efeito, um mito de origem: defende uma arte na qual a realidade na tela, como a do palco, necessita da reverberação sonora para que sua integridade seja mantida. O segundo ponto envolve a definição da cena como o terreno onde se manifesta o pensamento. A imagem não é vista como um invólucro da ideia ou como um signo que toma parte num discurso, mas como o órgão mesmo do que será comunicado. Não serve apenas para evidenciar um dado conteúdo; constitui, ela própria, o instrumento por meio do qual este conteúdo se desenvolve e adquire sentido. Por essa ótica, não há dúvida quanto ao sentido revelado no mundo preceder a organização da mise en scène, pois o sentido é manifesto precisamente como uma função deste mundo quando transposto para e conduzido pelo cinema. Se o projeto de Eisenstein vislumbrava o monólogo interior, o projeto de Astruc é o de um “monólogo exterior”, que emerge da própria cena, ganhando forma na organização dos corpos perante a câmera[10].
Não é casual, portanto, que um dos modelos nessa mitologia tenha sido um homem de teatro: Otto Preminger, amplamente caracterizado por movimentos de câmera fluidos e pelo forte sentido de visibilidade espacial. Um crítico como Jacques Rivette, representativo do discurso sobre a mise en scène, fará então o elogio da composição cênica de Preminger como sendo “a criação de um complexo preciso de personagens e cenários, uma rede de relações, uma arquitetura de conexões, um complexo animado que parece suspenso no espaço”[11]. Em poucos momentos o elogio é tão justificado quanto na sequência em que a protagonista de A ladra (Whirlpool, 1949-1950) executa o roubo sob hipnose. Por sua localização na trama e pela forma como é conduzida, a sequência torna-se uma verdadeira alegoria da encenação no cinema. A personagem é hipnotizada e usada como ladra por um criminoso; seus gestos têm a elegância de ações planejadas, mas também o distanciamento sinistro de algo que age não por vontade própria, e sim por forças externas. Se toda encenação resolve-se, em última instância, na presença de alguém perante a câmera, a exploração das intenções secretas ou desconhecidas é possível unicamente neste quadro: é através da superfície que o interior deve ser compreendido. A solução de Preminger é registrar o processo com a abstração dos motivos típica dos sonhos e a atenção à dimensão concreta do espaço que é exigida no palco. Tudo é reduzido a formas simples, com praticamente nenhuma ornamentação no cenário ou nas ações. Movimentos são lentos, ruídos são pontuais. Além da atmosfera insólita, essa moderação cria uma base sobre a qual percebe-se mais intensamente cada perturbação. Sobre as paredes lisas, sombras são projetadas e deslocadas, explorando o volume da cena e amplificando a gestualidade da atriz, suspensa entre o agenciamento e o automatismo. Gene Tierney abre uma porta, desce uma escada, entra num carro, acende uma luz, e essas ações, banais na maioria dos filmes, adquirem um magnetismo particular, sendo reenquadradas por uma câmera que evita a todo custo o exibicionismo, e acompanhadas por uma montagem que segue estritamente a divisão arquitetônica da casa. O que se demonstra com isso é que a sucessão de eventos não-dramáticos é capaz de sustentar, por uma observação cuidadosa e pelo controle da angulação e do ritmo, uma progressão tonal e coreográfica, e que não sugere a imposição, mas sim a descoberta. A virada final reposiciona o filme num registro mais ligado às convenções do filme policial, mas durante alguns minutos tem-se a impressão de que foi testemunhada a mise en scène num estado purificado.
O contexto no qual se desenvolveu o mito da encenação entre os críticos franceses é significativo para compreender o tom de absolutismo com que trataram a função do diretor. Não seria original declarar, na Europa dos anos 1950, que um cineasta, por suas escolhas individuais, poderia se igualar a um escritor ou pintor, garantindo uma assinatura pessoal e expressando uma visão de mundo particular. A originalidade, neste caso, reside na defesa de que, mesmo na atmosfera regulada e na divisão de funções característica de Hollywood, a figura do autor poderia não apenas surgir como também afirmar suas qualidades. O que se postulou foi que, se o diretor no contexto industrial não possui controle sobre o roteiro, a concepção do universo temático ou o gênero a ser tratado, a área na qual pode exercer a influência mais direta é a da realidade espacial em que esses fatores são concretizados. O domínio da encenação seria tão característico que funcionaria como verdadeiro pólo magnético para os outros departamentos, tornando-se, assim, o principal critério para o sucesso da obra. A chamada “política dos autores” não foi outra coisa senão a defesa da expressividade individual em um determinado contexto de produção e o debate em torno dos modos como a encenação se implicava nesta autoria.
Um dos resultados desse programa crítico foi a constituição de uma série de tipologias em que cineastas-autores eram comparados por seus respectivos tratamentos dos mesmos temas ou gêneros. O que diferencia, então, Nicholas Ray, Richard Brooks, Anthony Mann e Robert Aldrich? A resposta a esta pergunta tomará, no caso de Rivette, a forma de um comentário sobre as tendências exibidas nos filmes, as preferências de protagonistas ou soluções narrativas, os temperamentos que destacam ou dissolvem certos aspectos da tradição[12]. No caso de Michel Mourlet, a pergunta será ainda mais específica: envolve o que ele identificou como sendo uma propriedade essencial da mise en scène, sua “energia”, algo a ser medido nas relações entre os gestos dos atores e o mundo criado pelos filmes. Mourlet estabelece, em sua “apologia da violência”, uma verdadeira escala de cineastas, passando por Elia Kazan, Orson Welles, Luis Buñuel, Raoul Walsh e Fritz Lang, chegando ao que ele considerou o seu ponto mais alto, Joseph Losey – assim como Preminger, um cineasta com experiência no teatro. A vertente realista se concentra progressivamente e busca, com isso, o cânone de um classicismo cinematográfico. Se há divergências nos panteões, há uma convergência explícita no elogio do presente cênico, da clareza no trato com o espaço, da eficácia das ações e do pragmatismo frequentes no cinema americano, assim como na recusa das manipulações temporais e da montagem assertiva de maneira geral.
Até então, a montagem havia sido considerada a principal ferramenta para abstrair a realidade no cinema. A razão única e suficiente era a de que o corte é a operação abstrata por excelência, pois não possui um correspondente físico na diegese. Expressar um pensamento por meio do cinema seria possível com a escolha de componentes visuais que, isolados, seriam reais em si, mas cujo fim último seria estabelecer ligações com outros componentes; ligações abstratas, porque inexistentes nas imagens. O mito da encenação propõe uma inversão crucial. Seus defensores acreditam poder abstrair a realidade cênica sem o recurso da montagem; acreditam que essa realidade pode ser de uma só vez abstraída e reforçada em sua concretude. Rejeitar a montagem assertiva, nesse contexto, significa rejeitar a abstração como definida tradicionalmente. Decorre dessa postura uma negação da “linguagem”, mas uma negação que se volta unicamente à linguagem que se exibe enquanto tal. De maneira reveladora, a retórica desses adeptos é ela mesma radical e intensamente presente, e quase sempre no modo apofático, onde o que se afirma é a impossibilidade de afirmar. Nos termos da forma cinematográfica, a única retórica possível torna-se aquela que, ao atuar sobre a realidade, encobre sua própria atuação. No limite, esta retórica se crê inexistente, pois retirada das próprias coisas, como se o discurso do filme fosse um só com o discurso do universo ficcional. Há aqui a suposição de que, na mise en scène, o gesto criativo não reside na escolha dos objetos e das ações perante a câmera, e que atores, cenários, situações não constituem tanto os elementos, mas antes a própria matéria a ser articulada. Há, em suma, a ideia de que a realidade ficcional é a realidade mesma, a qual o encenador pode observar com transparência, e cujas contrações pode acompanhar e modular, mas sem nela intervir.
Durante os anos 1950, na chamada “era dos metteurs en scène”, o discurso da encenação serviu para dar ao cinema industrial um lugar privilegiado no imaginário da crítica. Em paralelo, constituiu um mito de destino, representado mais claramente pelo ideal que Mourlet identificou na fase tardia de Fritz Lang. Esta interpretação é significativa por envolver um juízo histórico que se projeta como uma definição da essência cinematográfica. A evolução da obra de Lang, para Mourlet, serve como recapitulação da própria evolução do cinema. Nascida no período silencioso, esforçando-se para conquistar a própria autonomia sob as limitações da época, teria recorrido ao expressionismo apenas parcialmente, em busca de compensação; com a passagem ao sonoro, a desorientação inicial logo tomaria a forma de uma retidão e um rigor cada vez maiores, ao mesmo tempo em que se voltaria mais intensamente ao posicionamento dos atores no espaço e ao desenrolar fatal das narrativas. O que restaria, então, em seu momento final? A mise en scène, “perfeitamente cristalina”, que abandona a preocupação de exprimir ideias e não se coloca mais como um suporte do roteiro, mas que é ela mesma o significado expresso – que é “não mais conceitual, mas melódica”[13]. A analogia musical remete ao famoso comentário de Walter Pater no século XIX, de que todas as artes aspiram à condição da música, isto é, a de ser uma arte em que o conteúdo e a forma não mais podem ser diferenciados, na qual a sua fusão é completa. O mito da encenação como forma de exprimir o pensamento se torna, com isso, um mito de destino em que a encenação não expressa nada além de si mesma. Nesse horizonte, a crítica toma para si a operação complementar. Quando a obra absorve e abstrai os seus pretextos, quando os temas são dissolvidos na expressividade de sua condução cênica, analisar a obra de um cineasta se torna sinônimo de “mostrar em que o acesso aos temas fundamentais da mise en scène, ordenados em torno da presença corporal dos atores em um cenário, é ou não é capaz de nos fascinar”[14]. O espectador cognitivo dá lugar ao espectador fascinado.
Em seu primeiro texto dedicado ao cinema, Annette Michelson descreveu uma ruptura nas “aspirações radicais” a partir dos anos 1930. Após a crise gerada pela industrialização crescente e pela chegada do som, as respostas de cineastas e críticos teriam se concentrado em dois pólos. Por um lado, se constituiu na França uma vanguarda que aceitou a condição industrial e narrativa do cinema, ainda que para modificar os resultados produzidos nessa conjuntura. Por outro lado, foi constituída nos Estados Unidos uma vanguarda que recusou essa mesma condição e se caracterizou pela exploração dos resultados possíveis em outros contextos[15]. Uma segunda bifurcação pode ser adicionada em relação aos mitos de origem e destino, considerando a recepção de um projeto sugerido na passagem do silencioso ao sonoro.
Eisenstein leu Ulisses em 1928. No mesmo ano, em colaboração com Pudovkin e Alexandrov, escreveu o manifesto sobre o som. Em 1932, publicou outro texto, complementar ao manifesto, e significativo pela centralidade dada à noção de “monólogo interior”, considerada por ele o caminho mais adequado para representar o pensamento no cinema:
Porque apenas o cinema sonoro é capaz de reconstruir todas as fases e todas as especificidades do curso do pensamento.
Que maravilhosos esboços eram aqueles roteiros de montagem!
Como o pensamento, eles se realizariam algumas vezes através de imagens visuais.
Com som. Sincronizado ou não sincronizado. Depois, como sons. Sem forma. Ou através de imagens sonoras: sons objetivamente representativos...
Então, de repente, palavras definidas, intelectualmente formuladas – tão “intelectuais” e desapaixonadas como palavras pronunciadas. Através de uma tela preta, uma impetuosa visualidade sem imagem.
Então, num discurso apaixonado e desconectado. Nada além de nomes. Ou nada além de verbos. Então, interjeições. Com zigue-zagues de formas sem objetivo, deslizando junto em sincronia.
Depois, uma precipitação de imagens visuais, sobre silêncio total.
Em seguida, ligadas a sons polifônicos. Depois, imagens polifônicas. E aí, ambas ao mesmo tempo.
Ora interpoladas no curso exterior da ação, ora interpolando elementos da ação externa no monólogo interior.
Como que apresentando dentro de personagens o jogo interior, o conflito de dúvidas, as explosões de paixão, a voz da razão, rapidamente ou em câmera lenta, marcando os ritmos diferenciados de um e outro e, ao mesmo tempo, contrastando com a quase total falta de ação externa: um febril debate interior atrás da máscara petrificada do rosto.
Como é fascinante ouvir o rumor do próprio pensamento, particularmente num estado de excitação, para perceber a si mesmo, olhando e ouvindo a sua mente. Como você fala “para si mesmo”, tão diferente de “para fora de si mesmo”. A sintaxe do discurso interior, distintamente da do discurso exterior. As trêmulas palavras interiores que correspondem às imagens visuais. Contrastes com circunstâncias externas. Como agem reciprocamente...
Ouvir e estudar, para entender leis estruturais e reuni-las numa construção de monólogo interior sobre a tensão extrema do esforço da trágica reexperiência. Como é fascinante!
E que campo para a invenção criativa e a observação. E como se torna óbvio que o material do cinema sonoro não é o diálogo.
O verdadeiro material do cinema sonoro é, evidentemente, o monólogo[16].
O discurso de Eisenstein, marcado pela descoberta eufórica do romance de Joyce, imagina um cinema que parece servir como a súmula de todas as explorações realizadas no período silencioso. As vanguardas europeias dos anos 1920 defenderam, cada uma à sua maneira, as propriedades específicas do cinema, como um filósofo pré-socrático veria em um elemento – o fogo, a água, o átomo – a chave para investigar a natureza. Mesmo quando defenderam um procedimento comum, destacaram nele aspectos distintos. Assim, o grafismo, a sobreposição, a câmera-lenta, a montagem foram exploradas de modos diversos, criando um cenário heterogêneo. No argumento de Eisenstein, essas linhas teriam uma possibilidade de convergência no período sonoro, com um cinema dedicado a representar as fases do pensamento através do monólogo interior.
A crítica francesa, enraizada na concepção de realismo, aceitou o projeto de expressar o pensamento, mas o fez por uma completa negação dessa heterogeneidade. O resultado foi a formulação do mito da mise en scène. O cinema americano de orientação independente, por sua vez, teve no cerne de seu programa uma tentativa de retomar, de dar continuidade, e mesmo de ampliar a proposta de Eisenstein. No relato canônico da vanguarda americana, por P. Adams Sitney, o dado significativo é a migração dos artistas europeus para os Estados Unidos, durante a guerra. A “linhagem visionária” do cinema americano se constituiria pela absorção e transfiguração dos projetos que fundaram as vanguardas europeias. Mais especificamente, realizaria a convergência sonhada por Eisenstein, com um mito de origem e destino: “a mímese da mente humana em uma estrutura cinematográfica”[17].
O caso inaugural nesta linhagem é o de Maya Deren. No mesmo período em que teve início a tradição da mise en scène, Deren compôs uma série de filmes que serviram como a cristalização de um pensamento teórico e como modelo para as gerações futuras. Se a montagem havia sido defendida por Kulechov como a forma mais adequada de criar o espaço e tempo de uma narrativa; se a câmera-lenta havia recebido a atenção de Epstein por sua vocação revelatória; e se as metáforas haviam sido táticas de choque para Buñuel – se a apropriação dessas técnicas teve, anteriormente, o valor de descobertas isoladas, nos filmes de Deren elas se afirmam pela convergência em uma estrutura altamente coreografada. De maneira característica, ela recorreu a jornadas iniciáticas e a protagonistas que funcionam como duplos do espectador, figuras passivas e que sugerem hipnose ou sonambulismo, que atravessam a narrativa como um ritual de formas cinematográficas. Sua decupagem não apenas constrói um evento a partir de sua decomposição: cria uma escalada que leva de uma praia a uma mesa de jantar e desta a uma floresta. Sua panorâmica não apenas conduz o olhar por um espaço: multiplica a presença de um dançarino sem quebrar a impressão de continuidade no registro, e transporta o homem de uma floresta a um apartamento sem com isso quebrar a fluidez de seu gesto. Entre Tramas do entardecer (Meshes of the Afternoon, 1943) e Ritual in Transfigured Time (1946), cada um de seus filmes é um exemplo do que Parker Tyler chamou de “filme de transe”. O princípio atuante é o de que as coordenadas da cena não são mais do que bases a serem transfiguradas para criar experiências revelatórias. Nos ambientes insólitos, nas transformações de objetos, nos encontros com figuras misteriosas, cada mudança na construção espaço-temporal torna-se uma mudança na mentalidade da protagonista. Nessa mesma direção, seguiram nomes como Kenneth Anger, Gregory Markopoulos e Stan Brakhage.
A trajetória de Fritz Lang representou, para Mourlet, o destino natural da mise en scène, numa recapitulação do que ele via como sendo a própria trajetória do cinema. É sintomático que a carreira de Brakhage, bem como sua produção teórica, tenham representado, para Sitney, um papel semelhante. Assim como a progressão de Lang foi definida por um abandono crescente das funções comunicativas da encenação, dando lugar cada vez mais a uma mise en scène que parece expressar apenas a si mesma, também o cinema de Brakhage foi elogiado por sua progressiva diminuição do caráter realista. Em lugar da economia narrativa e do quase classicismo arquitetônico de Deren, os primeiros filmes de Brakhage são construções dispersas, nas quais o estado visionário é concentrado em momentos-chave, quando a figuração da consciência irrompe numa única técnica: a inversão positivo/negativo em The Way to Shadow Garden (1954) e os riscos sobre a película em Reflections on Black (1955) são os primeiros exemplos do que ele mais tarde chamou de “metáforas da visão”. Se de início esses procedimentos têm uma justificativa dramática, aos poucos tornam-se independentes. A primeira grande mudança ocorre quando Brakhage se livra do protagonista em frente à câmera, afirmando sua própria presença por trás dela. A partir disso, ocorre um ataque cada vez mais intenso às bases do realismo: os movimentos tornam-se mais velozes, a montagem mais assertiva, as sobreposições mais numerosas, as interferências na película mais presentes. Quando Brakhage realiza Dog Star Man (1961-1964), as noções de passado, presente e futuro, bem como a de um espaço tridimensional, com orientações fixas, já foram quase inteiramente dissipadas. Em filmes seguintes, desaparecem todas as referências figurativas, restando apenas manchas de tinta sobre a película. A experiência é dissolvida num fluxo, e mais do que representar a jornada de um personagem, o filme se torna ele mesmo, em sua plasticidade formal, a jornada visionária[18].
Em suas observações sobre a vanguarda americana, Sitney menciona frequentemente uma declaração de Gustave Flaubert, significativa por indicar o quanto este mito é uma contraparte daquele representado por Mourlet. Em 1852, numa carta a Louise Colet, Flaubert afirmou o desejo de escrever um livro “sobre nada”, um livro em que o “tema”, ou o “assunto”, seria praticamente irrelevante. Esta obra se sustentaria apenas “pela força de seu estilo, como a Terra é suspensa no espaço”[19]. A busca pela autonomia de um projeto formal é o que une esses dois mitos, ainda que um o faça pela via do realismo e outro pela da abstração. A complementaridade é sugerida ainda pelos textos que evocam, em busca de precedentes: no contexto do realismo, Mourlet utiliza o vocabulário da arte mais abstrata, enquanto Sitney, no contexto da negação da narrativa, recorre à arte mais associada a ela. Nos dois casos, a suposição é de que, pelo controle e a intensidade das formas, quaisquer referências externas poderiam ser completamente superadas. As duas formulações encontram-se, portanto, no solo do romantismo, onde a plenitude da experiência artística deriva do caráter de presença ontológica da obra: ela não mais busca se referir a algo, mas ser.
Na mitologia da vanguarda americana, o gênero que radicaliza esse processo ao mesmo tempo em que efetua uma virada em suas condições é o que Sitney chamou de “filme estrutural”. Se as etapas anteriores pareciam buscar maneiras de figurar experiências nas obras, de encontrar as formas fílmicas mais adequadas a elas, os filmes estruturais, como se atraídos pelo mito da autonomia, se voltam às técnicas em si, num processo de literalização. A presença, ainda que vaga, de noções derivadas da psicologia, fazia com que nos filmes de Deren ou Anger as formas tivessem justificativas diegéticas, sempre em referência a um personagem ou à trajetória narrativa, de modo que as soluções pareciam alcançadas num processo indutivo. O cinema estrutural funda uma modalidade radicalmente dedutiva, explorando o caráter quase axiomático da arte. Deixando de ser uma linguagem, o cinema se torna um sistema, e passa-se da psicologia à epistemologia. A postura básica é condizente com a da arte minimalista: dados certos elementos e operações formais, como suas possibilidades seriam esquematizadas? Não por acaso, multiplicam-se na época as partituras e os diagramas, como se criar um filme se tornasse análogo a solucionar um teorema ou realizar um experimento científico. Do artista como narrador de sonhos, passa-se à definição de Valéry, “o algebrista a serviço de um sonhador”[20].
Nesse sentido, em um filme como Back and Forth (Michael Snow, 1968-1969), a panorâmica se torna o objeto mesmo a ser tratado. Como num experimento, todas as escolhas são feitas para testar as propriedades desse objeto: identificar seu alcance, listar suas possibilidades. A descrição documental, o drama, a figuração, a pura abstração, todos os resultados são vistos como ramificações do mesmo processo, e considerados sob a mesma postura. As condições do experimento são também cuidadosamente estabelecidas. Se a técnica depende do posicionamento da câmera em relação a um espaço, o ângulo e o ambiente serão escolhidos com base em sua configuração arquitetônica, potencializando a impressão do movimento. Se o que caracteriza o movimento é a sua horizontalidade, o filme será organizado num padrão repetitivo no mesmo eixo, a passagem de um canto a outro da sala. Se uma consequência dessa passagem é a alternância de visibilidade e invisibilidade em cada trecho do espaço, os efeitos dessa alternância serão enumerados. Se os efeitos dependem de uma certa variedade nas situações, essa heterogeneidade será levada ao extremo, para que nenhuma delas tenha destaque. Se devido a essa heterogeneidade a panorâmica é capaz de se apresentar em diferentes estados, em diferentes compostos de velocidade e nitidez, a passagem de um estado a outro será um dos princípios organizadores. Na voracidade dialética, mesmo a inversão radical da panorâmica é incluída próxima à conclusão, na forma de movimentos verticais, agora vistos necessariamente em relação à contraparte horizontal.
A capacidade de levar às últimas consequências os fatores estruturais, de intensificar e coordenar todos eles em esquemas compactos, é uma das marcas dessa geração, e que terminou por levar a um mito de destino: o mito do filme absoluto. Para cineastas como Snow, Frampton, Sharits e Gehr, não bastaria criar um filme concentrado em um procedimento; seria preciso fazer o primeiro filme inteiramente dedicado a ele, de preferência sendo tão exaustivo em sua construção que se tornasse o filme definitivo, que pudesse dispor todas as versões daquela técnica. A suposição é que qualquer filme posterior que buscasse explorar a ideia estaria condenado a retomar esse mesmo resultado. Qualquer filme dedicado a investigar a panorâmica teria necessariamente que confrontar o rigor, a elegância, o humor, a simplicidade das soluções já encontradas em Back and Forth. O problema seria tão diabolicamente reformulado que as únicas respostas possíveis se tornariam, em última instância, citações a Michael Snow.
Nos casos mais extremos, como em The Flicker (Tony Conrad, 1965-1966) e Serene Velocity (Ernie Gehr, 1970), uma vez decidido o princípio composicional, uma vez definidas as regras do jogo, a realização torna-se pouco mais do que uma decorrência lógica. Isso faz com que os filmes estruturais tornem-se muitas vezes impessoais, como se o papel do cineasta fosse apenas conceber a ideia inicial; como se concretizá-la fosse uma etapa secundária. O reducionismo radical, a exclusão de figuras humanas, a busca pela concentração, por formatos simples, levam muitos a ver os filmes como demonstrações do que o cinema poderia fazer quando reduzido à sua essência. Mais do que interpretações, os críticos produzem leituras fenomenológicas das obras. Tudo se passa como se, ao buscar soluções para um filme particular, o cineasta estivesse em busca das leis do cinema, como quem descobre leis da natureza. O acúmulo de projetos enciclopédicos e de textos sobre esses filmes sugere, assim, outro mito, que parece representar algo como um horizonte crítico: o mito de uma tabela periódica das formas. Tendo atingido o ápice da abstração, a morfologia diacrônica de Sitney finalmente seria capaz de erguer sua contraparte sincrônica. Nessa tabela, todo o campo poderia ser sugerido por objetos elementares, por obras que encontraram o solo último do dispositivo e representariam, por sua concisão e exaustividade, os casos paradigmáticos da máquina cinematográfica. Descobrir as leis do cinema seria, então, o caminho para dominar o cinema real, já existente, tanto quanto o cinema possível, ainda não realizado. Qualquer filme poderia ser definido como a soma de dois ou mais filmes estruturais. Tendo estabelecido um quadro geral, como Mendeleev estabeleceu o dos elementos químicos, restaria apenas o preenchimento, por transformação e combinação, das casas deixadas vazias pelos acasos da história.
Dez anos após a publicação do texto de Michelson, Peter Wollen abordou o mesmo problema em artigos que nos permitem organizar as relações aqui descritas. Foi Wollen quem primeiro se referiu aos grupos concentrados em Paris e Nova York como “as duas vanguardas”, e foi ele quem viu, no desenvolvimento desses grupos, uma série de oposições que podemos chamar de míticas[21].
Consideremos os cinemas sugeridos por Bazin e Brakhage. O vínculo que ambos descrevem entre a tecnologia cinematográfica, a consciência do artista e o mundo perante a câmera não poderia ser mais contrastante. Bazin imagina um cinema no qual a tecnologia praticamente desapareceria, se tornaria invisível ou transparente, para que assim fosse revelada a unidade do mundo – o mundo seria, aqui, algo como um objeto transcendental. O caminho para isso, de acordo com a evolução identificada em certos filmes, seria o uso de planos em profundidade e continuidade, reduzindo ao máximo os efeitos da montagem. Em outras palavras, tudo o que poderia enfatizar a projeção da consciência sobre o cinema e o mundo seria diminuído ou neutralizado. Brakhage, por sua vez, propõe um cinema no qual a tecnologia seria manipulada ao extremo, tornando-se visível e opaca, para que assim fosse expressa a imaginação criadora – a manifestação de algo como um sujeito transcendental. O caminho para isso, de acordo com o seu discurso, seria o uso de planos instáveis, de imagens atravessadas por efeitos que bloqueiam a profundidade, e uma montagem que impede qualquer estabilidade na orientação espaço-temporal. Em resumo, tudo o que poderia enfatizar a presença e a independência do mundo em relação ao cinema e à consciência é reduzido.
Ao eixo no qual se opõem os dois casos, Wollen deu o nome de “ontologia”. Estes são mitos nos quais a composição fílmica é conduzida em referência a um ideal: o mundo, a imaginação, algo estabelecido previamente, considerado absoluto, deve ser revelado ou expressado, e para isso a tecnologia cinematográfica deve ser utilizada de maneiras particulares. Nesse sentido, como o norte e sul de um campo de formas cinematográficas, esses modelos representam espécies contrárias do idealismo. Para marcar esses direcionamentos, Wollen chamou a ontologia voltada ao mundo de “extrovertida”, e a voltada à imaginação de “introvertida”.
Ao redor desses ideais foram constituídos outros mitos, com os quais compartilham algumas premissas, mas não os objetivos. Se Bazin, partindo do mito da vocação realista, projetou o mito de um cinema total, Mourlet e outros críticos fizeram, dessa mesma origem, outra projeção: o mito da mise en scène, no qual a via de mão dupla entre o mundo e a consciência poderia atingir uma espécie de equilíbrio. A continuidade do registro, a discrição da montagem, a profundidade e amplitude da cena serviriam, assim, a outra função: criariam “um complexo animado que parece suspenso no espaço”. Mais do que a presença concreta da realidade, importaria a condução e modulação de suas qualidades, tendo como referência a abstração característica das peças musicais. Da mesma forma, se Brakhage, partindo do mito da montagem, projetou o mito de expressão da imaginação, os cineastas ligados ao filme estrutural fizeram dessa mesma origem uma projeção distinta: um mito de estrutura, no qual a via de mão dupla entre a consciência e o mundo seria cristalizada em formatos redutivos e reflexivos. O bloqueio diegético, a montagem assertiva, as intervenções gráficas serviriam, então, a outro propósito: criariam obras nas quais a estrutura geral seria “a impressão primordial do filme”, como se os contornos da experiência pudessem ser definidos com tanto rigor e tanta clareza quanto em uma escultura. Nos dois casos, diminuir a presença do ideal ontológico levou a um destino semelhante. Como numa fertilização cruzada, os dois extremos levaram a mitos de autonomia – como se a revelação do mundo, fertilizada pela expressão da consciência, gerasse o mito da mise en scène, e a expressão da consciência, fertilizada pela revelação do mundo, gerasse o mito da estrutura. Esses modelos ocupariam, assim, regiões temperadas do mapa; próximos de seus respectivos pólos, mas atraídos também por uma linha intermediária.
Um segundo aspecto identificado por Wollen é fundamental para compreender este quadro. Houve um momento em que, por caminhos distintos, os dois hemisférios viram surgir uma versão materialista de suas propostas. A mitologia do materialismo nos anos 1970, como uma tomada de consciência e uma revisão dos mitos ontológicos, teve como horizonte um estado no qual a tecnologia fílmica não seria vista como neutra, e quando todo o sentido produzido nos filmes remeteria ao processo de mediação concreta efetuado pelo dispositivo. No eixo materialista, o processo de refração do mundo e da consciência pela ideologia seria tornado evidente pela organização dos materiais composicionais. É significativo, entretanto, que as duas direções se mantenham ligadas ao que Wollen chamou de extroversão e introversão.
Nota-se em textos dos Cahiers sob a editoria de Comolli a referência constante à “materialidade da imagem/som”, algo que à primeira vista sugere uma proximidade com os casos mais extremos do cinema estrutural. Mas o materialismo dessa tradição é, sintomaticamente, definido por técnicas e critérios que ainda gravitam em torno das preocupações de Bazin. Quando Jean-Pierre Oudart elabora sua crítica do “efeito de real”, um de seus alvos é precisamente o cinema experimental, que, por sua ótica, “recusa o dispositivo cênico da representação” e “fetichiza o objeto fílmico, pretendendo constituir o discurso a partir da própria materialidade das imagens”. Em oposição a isso, Oudart faz a defesa de nomes como Godard e Straub, que não operam na mesma recusa. O materialismo aqui é caracterizado, portanto, não por uma rejeição das fundações realistas, mas por uma incorporação delas a um projeto de desconstrução[22]. É um processo similar que ocorre na vanguarda inglesa, definida pela rejeição dos aspectos ontológicos descritos por Sitney. Os argumentos de Peter Gidal e Malcolm Le Grice, e por conseguinte as operações empregadas em seus filmes, envolvem uma defesa das mesmas estratégias formais do cinema estrutural, porém dissociadas de qualquer interesse pela imaginação. O acesso e a investigação dos materiais fílmicos não constituem para eles um desejo de representar a mente humana ou as formas elementares do cinema; devem, em vez disso, operar os códigos derivados das condições concretas com as quais os cineastas se depararam, e com as qualidades próprias do dispositivo. Esse deslocamento faz com que o cânone delineado tenha ainda pontos de ligação com a vanguarda americana. Como um filtro aplicado à morfologia de Sitney, irão defender os nomes que consideram válidos dentro de seus próprios modos de articulação, além de antecessores e cineastas que não estiveram na área de interesse dos americanos – nomes como Kurt Kren, ou o casal Birgit e Wilhelm Hein[23]. Nos termos de Wollen, o materialismo francês, por seu interesse em um cinema que trabalha “o dispositivo cênico”, permanece extrovertido, ao passo que o materialismo inglês, voltado aos procedimentos “intra-fílmicos”, mantém o direcionamento introvertido.
É significativo que esses modelos, como os pontos cardeais de um mapa, se definam por uma rejeição a um ponto central do campo. O que parece localizado nessa região central é, talvez não um mito, mas um aglomerado de noções abordadas por direções variadas no decorrer dos anos, e que serviu para caracterizar justamente a linhagem dominante após a “dissociação das sensibilidades” dos anos 1930: as ideias que foram agrupadas em torno da expressão “linguagem cinematográfica”. Bazin, Brakhage, Comolli e Gidal foram, todos eles, críticos da proposta de que o cinema pudesse constituir uma linguagem, ainda que a compreensão do que seria essa linguagem tenha sido diferente para cada um deles. Em todos os casos, é como se aceitar a função comunicativa do cinema, a arbitrariedade de suas técnicas, bem como uma certa moderação na presença das vocações realista e da montagem, e de todo o circuito entre a consciência, o mundo e o dispositivo, fosse antitético ao projeto mítico. Esse ponto liga, talvez, a disposição mítica de forma mais profunda à definição mesma de uma vanguarda, à sua condição de existência. Na medida em que apresenta uma visão sobre o que cinema é ou deveria ser – uma origem, conduzindo a um destino –, uma mitologia cinematográfica não pode senão se voltar contra a difusão e dispersão dos potenciais cinematográficos que constituem, afinal, a nota dominante na indústria desde a introdução do som. Imaginar as coordenadas deste campo se torna, assim, sinônimo de imaginar os modos pelos quais as noções de linguagem cinematográfica poderiam ser revistas, transfiguradas, levadas em diferentes direções.
É o princípio de qualquer disciplina comparativa analisar uma classe de objetos para que deles possam emergir critérios próprios, derivados de sua fatura e valorização interna, mais do que de áreas ou disciplinas externas a eles. O pensamento comparativo é, por vocação, um pensamento reflexivo: ao dispor lado a lado premissas contrastantes, é levado a questionar não as soluções específicas, mas os problemas comuns aos quais elas se referem. Descrever oposições, identificando os eixos em que se dão as polaridades, faz com que os termos de um mito evoquem indiretamente os de outro. Deste fato decorre a necessidade de suspender o juízo quanto à validade ou objetividade na descrição de cada um dos mitos. Mais do que compreender as formulações isoladas, o objetivo de uma visão comparativa é compreender o espaço no qual se localizam as diferentes propostas[24]. A comparação é, em última instância, a definição de um novo contexto para as ideias, o que toma aqui a forma dos direcionamentos tomados criticamente e criativamente pelo cinema. Nesse sentido, o mapeamento sugerido a partir de Michelson e Wollen não é – não pode ser – uma resolução do problema das duas vanguardas, ou o ponto final no entendimento de suas implicações, mas sim a organização inicial e necessária para entender o que deste problema é importante no pensamento do cinema como um todo.
Ao menos cinco pontos merecem destaque, e podem servir como vias de acesso a explorações futuras desse quadro.
O primeiro envolve a história do problema das vanguardas, o contexto em que surgiram e se desenvolveram os mitos aqui descritos. Tanto o mito da vocação realista como o mito da montagem como pedra fundadora surgiram já no período silencioso, e funcionaram como uma polaridade básica nas primeiras décadas do cinema; definiram uma separação geral e rudimentar do mapa cinematográfico em dois hemisférios. Essa divisão, ainda que evidente, não contradiz o que Michelson chamou de uma “comunidade de aspirações”: a ideia de que, nos anos 1920, vários projetos de cinema, apesar de radicais em suas afirmações, distribuíram seu interesse por todo o espectro, demonstrando aceitação e mesmo interesse por projetos divergentes. O elogio de Eisenstein a Griffith, de Buñuel a Keaton, de Vertov a Clair são apenas alguns dos exemplos mais característicos. A dissociação traumática teria ocorrido nos anos 1930. A chegada do som foi a mudança mais impactante; mesmo que prevista, instalou uma crise, forçando todos os mitos até então a revisarem suas premissas e seus horizontes. A industrialização acelerada em Hollywood e a ascensão dos regimes totalitários na Europa tornaram problemática a inserção de vários artistas em novos contextos de produção, e a guerra pôs fim às intensas comunicações teóricas da década anterior. É neste momento, como um marco simbólico, que Eisenstein sonha com a integração do som a um cinema capaz de organizar o conjunto de invenções do período silencioso.
Nas décadas seguintes, isoladas pela guerra e pelo radicalismo discursivo, as linhagens identificadas por Michelson e Wollen foram constituídas. É significativo que ambos os grupos tenham se organizado em seus territórios como verdadeiros movimentos, e que tenham convergido em espaços de projeção e debate, bem como em publicações voltadas à crítica – de um lado, a Cinemateca Francesa e os Cahiers du cinéma; de outro, o Anthology Film Archives e a Film Culture. Nos anos 1960, tanto a nouvelle vague como o cinema experimental americano se tornaram referências incontornáveis para vanguardas emergentes em todo o mundo: foram exemplos de um modernismo forjado em condições adversas; de proximidade e diálogo entre cineastas e críticos; de originalidade criativa e de propostas para um cânone histórico; de atenção à necessidade de estabelecer uma alternativa ao sistema industrial. Com ampla influência e bem sucedidas em vários níveis, essas tradições não poderiam senão atrair críticas às suas premissas, e cada uma delas se viu, nos anos 1970, alvo de revisões e questionamentos.
Essa trajetória leva a um segundo ponto: a constituição de uma mitologia crítica como uma espécie de paradigma. Nenhum estudo do cinema ou de qualquer arte pode ser feito sem ao menos um corpo implícito de crenças metodológicas que permite a seleção e interpretação dos objetos. Se as crenças não são fornecidas pelo discurso dos artistas, são supridas por críticos e teóricos[25]. Conforme se acumulam e se organizam, as proposições ganham em coerência interna, delimitando um conjunto de valores e interesses. Como todo objeto estético, um filme possui diferentes níveis e aspectos, mas um mito não pode senão privilegiar alguns em detrimento de outros. Em busca de coerência, uma mitologia busca naturalmente os objetos que melhor permitam explorar aquela região do cinema que primeiro instigou a sua atenção. Os mitos não ganham, com isso, um maior poder descritivo; mais do que provar a importância de certas obras, dão a elas um contexto privilegiado. Na medida em que se atém a esse contexto, o crítico é capaz de realizar descobertas, perceber novas formas, dar nome e sentido a certas experiências cinematográficas. Na medida em que se atém apenas a este contexto, o crítico é também incapaz de compreender o sentido e o valor de outras experiências. A história das duas vanguardas é um exemplo representativo desse aspecto. Em todas as suas etapas, somos lembrados que o crítico que interpreta o filme de acordo com uma mitologia não se limita a simplesmente olhar a obra; sabe o que quer encontrar, concebe seus termos e dirige sua atenção de acordo com esses mitos. Por essa mesma razão, no debate entre mitos distantes, cada um deles mostra-se capaz de satisfazer apenas os critérios ditados para si mesmo. A história e a teoria devem reter desses juízos o único valor que jamais tiveram: um valor tático, um reagrupamento de forças tendo em vista a criação e promoção de certas obras, bem como a demolição de outras, mas apenas indiretamente a compreensão dos fenômenos cinematográficos[26].
Um terceiro ponto, então, seria a absorção relativa das obras pelas mitologias críticas. Com base nessas descrições, pode-se considerar que há sempre três tipos de filmes: aqueles que parecem bem iluminados por um mito; aqueles cuja natureza parece indicada pelo mito, mas cujos detalhes só parecem compreensíveis ou apreciáveis com alguma articulação fora de seus perímetros; e aqueles que parecem anomalias, que recusam a assimilação pelo mito. A identificação desses tipos permitiria talvez destacar os objetos mais reveladores das contradições e limitações da crítica. Já no período em que os Cahiers eram regidos por Bazin, houve ao menos um cineasta cuja obra foi tangencial aos ideais dos soviéticos. Quando o termo “direção de espectadores” é citado por Alfred Hitchcock, não se está distante do mito da montagem; este é o cerne das descobertas de Kulechov, frequentemente apontado por Hitchcock como o árbitro do “cinema puro”. Se é verdade que o diretor de Um corpo que cai (Vertigo, 1958) explorou em diversas oportunidades a fluidez da câmera e a presença simultânea dos atores no espaço cênico, é também verdade que algumas de suas sequências mais emblemáticas são inteiramente construídas ao redor de um padrão de montagem. A centralidade de Hitchcock na crítica francesa não levou à eleição de Eisenstein como profeta da modernidade; o posto foi ocupado por Rossellini, um cineasta em todos os sentidos antitético à vanguarda soviética; o interesse por Hitchcock permitiu, entretanto, a recepção de um nome como Orson Welles, para quem Eisenstein foi uma das principais influências. A leitura de Hitchcock por Rohmer, como a de Welles por Bazin, não desconsidera a montagem, mas a submete a uma visão realista – na melhor das hipóteses, a vê como complementar; na pior, como acessória. O inverso ocorre quando Brakhage, admirador de Eisenstein e Welles, faz o elogio de Intolerância (Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages, 1916), praticamente ignorando a dimensão narrativa do filme de Griffith, e afirmando que a integridade formal da obra seria mantida ainda que sua projeção fosse desfocada e de cabeça para baixo. No horizonte imaginado por Brakhage, o fluxo plástico e a organicidade rítmica suplantam o interesse dramático, e todo o nexo de motivações e expectativas decorrente do reconhecimento de motivos realistas é ignorado. Quando não há discordância sobre quais aspectos do mesmo filme devem ser privilegiados, há discordância sobre quais filmes do mesmo cineasta merecem ser integrados à tradição. O elogio de Rivette a Eisenstein nos anos 1950 é feito com menção à sua fase sonora, ao passo que a fase silenciosa é privilegiada desde o início pela vanguarda americana, e o elogio de Mourlet à fase americana de Lang é praticamente invertido por Noël Burch, que destaca as maiores contribuições do período alemão. O inevitável nessas operações é a adaptação da complexidade das obras ao modelo mítico, para que o projeto crítico seja operacional. Mais do que a compreensão, ou o trabalho descritivo e interpretativo que busca se afirmar pela adequação ao objeto, o resultado é uma permanente transformação do objeto de acordo com os critérios selecionados pelo mito, e que deverão ser necessariamente respondidos por mitos adjacentes ou adversários. Um mito que não é complementado por seu contramito não tem o seu verdadeiro alcance revelado.
Um quarto ponto seria a ideia de que estas limitações ocorrem mais na crítica do que na realização. Há certamente nomes ligados a uma vanguarda que parecem ter cruzado o meridiano; que travaram contato direto com o outro lado, sendo finalmente por ele influenciados. No cinema francês, no período em que as discussões ao redor das vanguardas já haviam se estabelecido, dois exemplares seriam Philippe Garrel e Chantal Akerman. Ambos tiveram um primeiro gesto inspirado pela nouvelle vague, mas já em seus primeiros anos demonstraram também um interesse pelo cinema independente americano, sobretudo pela geração associada aos filmes estruturais. A presença de Andy Warhol na obra de Garrel, como a de Snow em certos filmes de Akerman, é um dado fundamental tanto para a trajetória desses cineastas como para compreender quais influências foram possíveis e frequentes nesse momento. O mesmo ocorre na direção contrária: neste caso, o exemplo mais representativo é Yvonne Rainer, que se desenvolveu no ambiente dos filmes estruturais, influenciada sobretudo por Hollis Frampton, mas que apontou Godard como o grande impulso para a sua entrada no cinema. Não é casual que essas passagens tenham ocorrido nos anos 1970, o ponto de maior difusão do debate acerca desses temas, e quando as duas tradições foram revistas pela crítica materialista. O próprio cruzamento de perspectivas se tornou uma hipótese de trabalho para os cineastas, e na segunda metade da década a aplicação de táticas do cinema estrutural a filmes informados por teorias externas (psicanálise, semiótica, marxismo, feminismo) gerou obras fundamentais como Film About a Woman Who... (Yvonne Rainer, 1974), Jeanne Dielman (Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles, Chantal Akerman, 1975) e Riddles of the Sphinx (Laura Mulvey e Peter Wollen, 1977), narrativas rigorosamente compostas, reflexivas em seu caráter textual e formal, atentas à inscrição das ideologias nas convenções, e que investigam os modos pelos quais a disposição cênica e temporal constitui ela mesma um discurso. Frampton e Godard talvez sejam os nomes essenciais neste momento, eles que serviram como críticos internos de suas respectivas linhagens, que reconheceram o valor tanto da montagem como da narrativa, e que tiveram como horizonte uma visão de conjunto do cinema, um olhar capaz de organizar e dar sentido aos choques e às transformações de sua história. Em todos esses casos, foi a aceitação da relatividade dos mitos, da flexibilidade do campo formal e da mobilidade possível ao cineasta que pareceu mover a criatividade dos envolvidos.
Um quinto ponto, finalmente, diz respeito à própria moldura das reflexões aqui apresentadas. O argumento inicial no texto de Michelson – a noção de uma “comunidade de aspirações” – é, ele mesmo, um mito de origem. Michelson reconhece o caráter mítico, referindo-se a esta visão do período silencioso como “edênica”, mas seus comentários não projetam um destino em que as vanguardas retomariam a harmonia anterior. Na medida em que as inovações técnicas, o contexto de produção e a transformação dos próprios meios críticos são fatores cruciais esse processo, a retomada deste cenário no futuro não parece viável, ou mesmo plausível.
Um outro mito, entretanto, pode ser projetado; um mito que talvez não possa servir de guia à criação, e que se baseia, na verdade, na distinção fundamental entre a atividade criativa e a atividade crítica. Trata-se de um mito de destino para a crítica, e que podemos chamar, retomando uma analogia de Northrop Frye, de mito da crítica bem-temperada. Frye lembra que, nos primórdios dos instrumentos de teclas, era comum afinar uma escala perfeitamente, de modo que toda música composta naquela tonalidade soasse harmoniosa. Uma consequência era a restrição do número de tons aos quais o compositor poderia acessar, pois quanto mais distantes da escala de referência, menos harmoniosos seriam os sons. A concessão foi o sistema de temperamento igual, em que a escala é dividida por intervalos regulares, a ponto de nenhuma tonalidade soar perfeitamente, mas todas soarem com o mesmo grau de harmonia, permitindo ao compositor passar livremente de um tom a outro[27]. A analogia, se aplicada à crítica, revela um caminho possível no tratamento dos mitos. Um mito nada mais é que a afinação da sensibilidade tendo como base as exigências de uma região determinada do espectro das formas cinematográficas. Na medida em que considera o que há de mais singular nas obras surgidas nessas dependências, o mito pode soar de maneira harmoniosa; mas, quanto mais se afasta dessas condições, mais numerosas tornam-se as dissonâncias. Uma consequência é que os críticos tornam-se incapazes de modular a composição de seu discurso, isto é, se tornam incapazes de perceber ou apreciar regiões ou hemisférios inteiros da imaginação cinematográfica. Os mitos, quando aplicados ao juízo, não podem senão distorcer os critérios de outras regiões, o que leva com frequência à busca por critérios externos ao cinema; como se, na ausência de uma compreensão ampla do espectro, o crítico se visse forçado a preencher o vácuo com outros princípios coordenadores, como a história, a geografia, ou teorias de outras disciplinas. As concessões aceitas pelos defensores de um mito envolvem, em geral, algo que não é um mito, raramente o espaço comum aos diferentes mitos.
Este mito de destino supõe uma recusa da crítica como sendo “a continuação da arte por outros meios”. Supõe que a arte fornece as experiências, mas não o conhecimento sobre elas, razão pela qual a crítica deveria se voltar inteiramente à busca desse conhecimento. A distinção remete ao contraste entre noesis e dianoia, entre a apreensão imediata e a mediação discursiva. Há, com isso, um deslocamento da função polêmica da crítica, e uma negação do gosto como valor, sendo este associado ao domínio das opiniões e conjecturas. A concessão operada por este mito seria, portanto, concebida para orientar o trabalho crítico, dando a ele uma visão de conjunto e um propósito comum, mais descritivo que prescritivo – em lugar de uma perspectiva absoluta, um campo de perspectivas relativas, organizadas por referências derivadas dos próprios objetos. Um dado fundamental, e que serve como ligação entre os diferentes projetos míticos sob uma visão positiva, é que esta noção metacrítica pode surgir apenas com o estudo das perspectivas individuais, como se o acúmulo de observações parciais fizesse com que elas fossem afiadas umas pelas outras, e como se o acordo de subjetividades pudesse sugerir a objetividade. Um outro dado, igualmente fundamental, é que essa projeção considera para a atividade criativa a mais completa liberdade em relação a uma possível consistência do campo. Dos críticos, espera-se a consistência em relação a este quadro; dos artistas, espera-se que criem com base em mitos, pessoais ou desenvolvidos coletivamente, mas que se mantenham fiéis a estes mitos ou que garantam a consistência conceitual deles apenas enquanto forem necessários à criação.
O que encontramos neste mito, portanto, é a proposta de um limite para a atividade crítica, uma ordenação para que suas energias sejam focalizadas. Cada abordagem isolada na crítica seria necessariamente integrada ao conjunto, e reconfigurada pelo nexo de relações. Supondo que o campo cinematográfico permanece em equilíbrio durante todas as suas fases, a homeostase permitiria a cada nova elaboração crítica, a cada nova proposta, ainda que subjetiva, parcial, dependente das vicissitudes históricas, ser colocada em perspectiva com todas as outras. Se fosse possível observar o processo à distância, veríamos a participação de cada uma das células críticas na constituição do organismo cinematográfico, contribuindo com ele sem determinar seu agenciamento, submetendo-se a ele sem dele ter uma apreensão completa. Isso significaria que o trabalho de compreender a ordem do cinema como um todo seria sinônimo de um estudo sistemático das condições de possibilidade da crítica. Significaria, em outras palavras, que o destino da crítica é a teoria.
Notas:
[1] Jean-Claude Biette, “Le papillon de Griffith”, Cahiers du cinéma n.º 388, outubro de 1986, pp. 10-11.
[2] Jacques Rivette, “Lettre sur Rossellini”, Cahiers du cinéma n.º 46, abril de 1955, p. 14.
[3] Ver, por exemplo, o livro de Jacques Aumont, Moderno? Por que o cinema se tornou a mais singular das artes (Campinas: Papirus, 2008). O relato de Aumont é sintomático por aliar uma consciência aguda do contexto francês a um reforço das mesmas premissas.
[4] André Bazin, “O mito do cinema total”, in O que é o cinema?, trad. Eloisa Araújo Ribeiro (São Paulo: Cosac Naify, 2014), p. 39. Bazin publicou a primeira versão do texto em 1946, na edição 6 da revista Critique; essa versão foi revisada para o primeiro volume de sua coletânea Qu’est-ce que le cinéma? em 1958.
[5] André Bazin, “Montagem proibida” (1956), O que é o cinema?, p. 92.
[6] Dziga Vertov “Nascimento do cine-olho” (1924), trad. Marcelle Pithon, in A experiência do cinema, ed. Ismail Xavier (Rio de Janeiro: Graal, 2003), p. 262.
[7] Eliot chamou este método de “correlato objetivo”. Ver T. S. Eliot, “Hamlet” (1919), in Selected Essays (Londres: Faber and Faber, 1969), p. 145.
[8] Ver Sergei Eisenstein, “Dramaturgia da forma do filme” (1929), in A forma do filme, trad. José Carlos Avellar (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002), p. 69. Para uma análise detalhada do caráter dedutivo da sequência, ver Noel Carroll, “For God and Country”, Artforum, vol. 11, n.º 5, janeiro de 1973.
[9] Alexandre Astruc, “Naissance d’une nouvelle avant-garde: la caméra-stylo”, L’écran français n.º 144, 30 de março de 1948.
[10] Três anos antes, em um texto que teve influência considerável na crítica francesa, Maurice Merleau-Ponty formulou esse argumento sobre o cinema em sua relação com a psicologia Gestalt. Ver “O cinema e a nova psicologia” (1945), trad. José Lino Grünewald, in A experiência do cinema, pp. 115-116. Ao se perguntar sobre como representar mais efetivamente a vertigem no cinema, Merleau-Ponty afirma: “Sentiremos isso bem melhor apreciando exteriormente, contemplando esse corpo desequilibrado a se contorcer sobre um penhasco, ou esse andar vacilante, tentando adaptar-se na desorientação do espaço. Para o cinema, como para a psicologia moderna, a vertigem, o prazer, a dor, o amor, o ódio traduzem comportamento.”
[11] Jacques Rivette, “L’essentiel”, Cahiers du cinéma n.º 32, fevereiro de 1954, p. 44.
[12] Jacques Rivette, “Notes sur une révolution”, Cahiers du cinéma n.º 54, Natal de 1955, pp. 17-21, e Michel Mourlet, “Apologie de la violence”, Cahiers du cinéma n.º 107, maio de 1960, pp. 24-27.
[13] “Trajectoire de Fritz Lang”, Cahiers du cinéma n.º 99, setembro de 1959, pp. 19-24. Mourlet não foi o primeiro ou o último a defender essa interpretação de Lang. No contexto dos Cahiers, dois outros exemplos seriam Jacques Rivette, “Le main”, Cahiers du cinéma n.º 76, novembro de 1957, pp. 48-51, e Jean Douchet, “L’étrange obsession”, Cahiers du cinéma n.º 122, agosto de 1961, pp. 48-53.
[14] Michel Mourlet, “Sur un art ignoré”, Cahiers du cinéma n.º 98, agosto de 1959, pp. 36-37. Mourlet foi provavelmente influenciado pelas reflexões de Étienne Souriau no teatro. Ver, por exemplo, Étienne Souriau, As duzentas mil situações dramáticas [1950], trad. Maria Lúcia Pereira (São Paulo: Ática, 1993). Os dois trechos a seguir poderiam constar nas defesas da mise en scène por Mourlet: “O microcosmo cênico tem o poder de por si só representar e sustentar satisfatoriamente todo o macrocosmo teatral, sob condição de ser tão ‘focal’ ou, se preferirem, a tal ponto estelarmente central, que seu foco seja o do mundo inteiro que nos é apresentado. Esta organização estelar do universo da obra, organização tal que um certo ponto de tensão inter-humana lhe serve de centro e de núcleo, e, limitado e encerrado no cubo cênico, irradia em volta toda a cosmicidade da obra, tal é a condição fundamental do teatro” (pp. 19-20). “Uma situação dramática é a figura estrutural esboçada, num momento dado da ação, por um sistema de forças – pelo sistema das forças presentes no microcosmo, centro estelar do universo teatral; e encarnadas, experimentadas ou animadas pelos principais personagens daquele momento da ação. Sistema de oposições ou atrações, de convergências em choque moral ou de explosão destrutiva, de alianças ou divisões hostis...” (p. 38). Souriau foi também um dos responsáveis por difundir no cinema o termo diegese, em “La structure de l’univers filmique et le vocabulaire de la filmologie”, Revue internationale de filmologie n.º 7-8, 1951.
[15] Annette Michelson, “Film and the Radical Aspiration”, Film Culture n.º 42, outono de 1966, pp. 34-42+136.
[16] Sergei Eisenstein, “Sirva-se” (1932), trad. Teresa Ottoni, in A forma do filme, pp. 104-105. Annette Michelson analisou as reflexões de Eisenstein sobre o livro de Joyce em “Reading Eisenstein Reading Ulysses: Montage and the Claims of Subjectivity”, Art & Text n.º 34, primavera de 1989, republicado em sua coletânea On the Wings of Hypothesis: Collected Writings on Soviet Cinema (Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2020).
[17] A exposição mais concentrada da tese de Sitney está em “The Idea of Morphology”, Film Culture n.º 53-54-55, primavera de 1972, p. 20. Seu livro Visionary Film (1974) é, em grande parte, uma amplificação e documentação dessa tese.
[18] As formulações teóricas mais célebres de Brakhage constam em Metaphors on Vision (Nova York: Film Culture, 1963); algumas delas foram incluídas na compilação A experiência do cinema, editada por Ismail Xavier. A influência do romantismo inglês na descrição do “cinema visionário” é reconhecida por Sitney, que dedica Visionary Film a Harold Bloom, autor de The Visionary Company: A Reading of English Romantic Poetry (1971). Um comentário de Northrop Frye sobre William Blake talvez seja uma referência ainda mais clara para a defesa de Brakhage por Sitney: “O visionário é aquele que passou do olhar à visão, nunca o que evitou observar, que não treinou a si mesmo para observar claramente, ou que generaliza a partir de um estoque de memórias visuais. Se há uma realidade além de nossa percepção, devemos intensificar o poder e a coerência da nossa percepção, pois nunca chegaremos à realidade de outra maneira. Se a realidade for infinita, então a percepção deve também ser infinita. Visualizar, portanto, é realizar. O artista por excelência é aquele que luta para desenvolver sua percepção em direção à criação, seu olhar em direção à sua visão; e a arte é uma técnica para realizar, pela ordenação da experiência sensorial, uma realidade mais elevada do que aquela dada pela experiência desordenada.” Northrop Frye, Fearful Symmetry: A Study of William Blake (Princeton University Press, 1947), pp. 25-26.
[19] Ver Gustave Flaubert, Correspondance, III (Paris: Louis Conard, 1927), p. 346.
[20] O ensaio de Sitney, “Structural Film”, gerou uma quantidade imensa de polêmicas, sobre todos os seus aspectos: a terminologia, a descrição dos principais modos, o cânone de filmes e cineastas. Publicado originalmente em 1969 na revista Film Culture, o texto foi revisado nos anos seguintes e republicado em coletâneas, e como parte do livro Visionary Film (1974). No volume Film Culture Reader (1970), a crítica de George Maciunas é incluída ao final do texto de Sitney. Outras críticas, também significativas, são: Malcolm Le Grice, “Abstract Film and Beyond”, in Structural Film Anthology, ed. Peter Gidal (Londres: BFI, 1978); Paul Arthur, “Structural Film: Revisions, New Versions, and the Artifact”, Millennium Film Journal n.º 2, primavera-verão de 1978; Bruce Jenkins, “A Case Against ‘Structural Film’”, Journal of the University Film Association, vol. 33, n.º 2, primavera de 1981. No catálogo da mostra Cinema estrutural (realizada na Caixa Cultural do Rio de Janeiro em 2015), organizado por Patrícia Mourão e Theo Duarte, consta uma tradução do artigo de Sitney, bem como outras reflexões acerca do tema.
[21] Os artigos de Wollen dedicados ao problema são “The Two Avant-Gardes”, Studio International, vol. 190, n.º 978, novembro-dezembro de 1975, pp. 171-175, e “‘Ontology’ and ‘Materialism’ in Film”, Screen, vol. 17, n.º 1, 1º de março de 1976, pp. 7–25, e “The Two Avant-Gardes: Europe and America”, Framework: The Journal of Cinema and Media n.º 14, primavera de 1981. A troca de cartas entre Wollen e Sitney, também na revista Framework, n.º 18, 1982, é indicativa das divergências entre os dois quanto a essas questões.
[22] Jean-Pierre Oudart, “L’effet de réel”, Cahiers du cinéma n.º 228, março-abril de 1971, p. 25. Outros textos essenciais para essa linha argumentativa são Jean-Louis Comolli e Jean Narboni, “Cinéma/Idéologie/Critique”, Cahiers du cinéma n.º 216, outubro de 1969, pp. 11-15, e Jean-Louis Baudry, “Cinéma, effets idéologiques produits par l’appareil de base”, Cinéthique n.º 7-8, 1970. É significativo que as críticas de Brakhage ao “aparelho de base”, embora precedam em vários anos o texto de Baudry, não tenham sido absorvidas ou debatidas com a mesma atenção no contexto francês. Wollen se refere à influência de Bertolt Brecht na vanguarda ligada aos Cahiers, e um complemento pode ser feito com a influência de Viktor Chklóvski nas vanguardas associadas ao cinema experimental. Os conceitos de ostranenie e Verfremdungseffekt têm pontos de contato e intersecção que talvez sirvam para adensar os diálogos entre os dois campos. A discussão já havia sido iniciada no próprio contexto britânico do qual Wollen fez parte. Ver, por exemplo, Stanley Mitchell, “From Shklovsky to Brecht: Some Preliminary Remarks Towards a History of the Politicisation of Russian Formalism”, Screen, vol. 15, n.º 2, verão de 1974.
[23] Ver Malcolm Le Grice, Abstract Film and Beyond (Cambridge: The MIT Press, 1978), e Peter Gidal, “Theory and Definition of Structural/Materialist Film”, in Structural Film Anthology (Londres: British Film Institute, 1978).
[24] No final dos anos 1970, a primeira década com uma produção acadêmica mais sólida, dois trabalhos apresentaram visões de conjunto das teorias de cinema: Dudley Andrew, The Major Film Theories: An Introduction (1976) e Ismail Xavier, O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência (1977). Ambos reconheceram a importância de uma caracterização do próprio campo onde essas teorias se encontram, suas coordenadas e linhas de força, bem como os critérios comparativos necessários para estabelecer o diálogo entre elas.
[25] O termo “paradigma” foi difundido por Thomas Kuhn em sua obra The Structure of Scientific Revolutions (1962). Apesar de Kuhn ter resistido, durante toda a sua carreira, à adaptação do conceito ao domínio estético, uma leitura deste livro pode servir para compreender mais detalhadamente o aspecto metodológico e quase sociológico da crítica.
[26] Um exemplo de como o diálogo entre as diferentes mitologias poderia beneficiar a reflexão crítica, tornando as avaliações mais integradas historicamente, seriam as classificações do cinema contemporâneo pelos Cahiers: termos como “cinema de fluxo” e “filme-dispositivo”, que em suas descrições assemelham-se aos parâmetros explorados pela vanguarda americana (respectivamente Brakhage e os filmes estruturais), mas que, em decorrência do contexto da publicação, não deram a essas relações a devida ênfase. No Brasil, um trabalho dedicado à linhagem da mise en scène e que serve como via de acesso a essa questão é Luiz Carlos Oliveira Jr., A mise en scène no cinema: do clássico ao cinema de fluxo (São Paulo: Papirus, 2013). O recorte com base na “mitologia Cahiers”, justificado pelo tema, faz com que apenas nas últimas frases do livro as limitações dessa mitologia tomem a frente, e é sintomático que não haja menção a possíveis complementos ou correções desses termos por outras linhagens críticas. O comentário final, nesse sentido, representa uma lacuna a ser preenchida.
[27] Frye recorre à analogia no início de seu livro The Well-Tempered Critic (1963), mas as mesmas ideias são retomadas por ele em diversas ocasiões. A “Introdução polêmica” da Anatomia da crítica (São Paulo: É Realizações, 2014) é a declaração mais completa de suas premissas. |
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