O FILME E A ASPIRAÇÃO RADICAL
Para Noël Burch
A história do cinema, como a da Revolução em nossa época, é uma crônica de esperanças e expectativas, instigadas e suspensas, testadas e desapontadas. Eu vim a conhecer e me importar com o cinema em uma cidade que tradicionalmente abrigou e instigou essas esperanças e expectativas. Ela é não apenas a capital política e intelectual de seu país, mas também a capital cinematográfica. De maneira muito simples, a distância entre a Place de l’Opéra e os estúdios em Joinville é uma questão de estações de metrô, não de um voo a jato transcontinental. Eu devo pedir que tenham em mente este fato elementar, pois determinou muito do que eu terei a dizer sobre a maior parte das coisas. Mais do que isso, propôs os termos de uma metáfora geral, ainda que um tanto crua, de minhas preocupações hoje. Falar do Filme e da Aspiração Radical é necessariamente invocar instâncias de convergência e dissociação[1].
Duas declarações primeiramente, porém: não minhas, mas retiradas dos escritos de homens de sensibilidades e vocações um tanto distintas, vivendo e trabalhando a uma distância de quase duas gerações. O primeiro, Benjamin Fondane, um escritor e crítico, um homem da esquerda, morreu, ainda jovem, em um campo de concentração alemão. Escrevendo em 1933, ele disse:
Estamos comprometidos, com todas as nossas forças, com a denúncia de um mundo cujo fim catastrófico parece, mais do que nunca, inevitável. Exigimos sua devida liquidação, produza ela ou não um irremediável vácuo de insignificância ou uma renovação soberana através de meios revolucionários. Estes devem ser – e isto independe dos ferimentos internos profundos envolvidos nesta aspiração – os objetivos da vontade e da consciência hoje... Quanto ao cinema, a curva de seu desenvolvimento ascendeu rapidamente, apenas para afundar em um imediato declínio. Inchado a ponto de estourar, ludibriado com uma pompa absurda e meretrícia, com todo tipo de firula imaginável, hipertrofiou-se em uma indústria monstruosa. A atração foi meramente potencial, a mágica contida... as sementes de uma queda imperdoável, até que, com a violência de uma erupção vulcânica, os imensos escombros desabaram sob o peso de sua própria nulidade. E ainda assim, o cinema continua a nos interessar pelo que não é, pelo que falhou em se tornar, por suas possibilidades definitivas... Talvez o cinema seja a expressão de uma sociedade incapaz de sustentar um mundo... da mente. Talvez esta arte tardiamente concebida, filha de um continente envelhecido, irá perecer em sua infância. Talvez, também, a Revolução não deva ser completamente descartada.
A segunda declaração – apenas uma frase – foi escrita por uma estrela de cinema e publicada na revista Film Culture há um ou dois anos. A estrela em questão, um ator de charme e originalidade consideráveis, é Taylor Mead, e eu imagino que alguns de vocês o tenham visto em filmes produzidos independentemente. Taylor Mead disse: “Os filmes são uma Revolução”.
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O filme, nossa arte mais vivaz, é jovem o suficiente para lembrar seus primeiros sonhos, sua promessa ilimitada, e é assombrado, marcado por um trauma central e inerradicável de dissociação. A consequente culpa e a ambivalência – seus efeitos repressivos, e acima de tudo a maneira com que um princípio dissociativo tem alternadamente sofrido resistência ou sido assumido, convertido em um princípio estético, o modo como essa resistência ou conversão modificou ou redefiniu as aspirações cinematográficas – são, como tudo relacionado ao cinema, únicas na história da cultura ocidental.
Um sonho, o pressentimento de um meio, atravessou o século XIX. Quase toda forma de diversão popular característica da época – o álbum de família, o próprio romance, o panóptico em todas as suas formas – pode ser vista como uma prefiguração obscura e melancólica do cinema. Minha própria revelação do museu de cera como prefiguração aconteceu aproximadamente um ano atrás, quando escolhi, como um presente de Natal, acompanhar um pequeno e jovem americano educado na França ao Museu Grévin. Ocorreu a mim, enquanto caminhávamos pelos longos e escuros corredores labirínticos, pontuados pelo grande quadro que conta toda a história francesa, dos primeiros gauleses ao regime gaullista, que o museu de cera, em sua escuridão especial e alucinatória, sua ambiguidade espacial, sua imposição do movimento ao espectador, sua mistura de diversão e didatismo, é um tipo de protocinema[2]. E obviamente, o modo de discurso histórico é, acima de tudo, o dos primeiros filmes, que celebravam ocasiões estatais, festividades públicas, seguiam monarcas a batismos e execuções. A rapidez extraordinária do crescimento do cinema pareceu confirmar essa visão da fantasia melancólica de um século (apenas setenta anos se passaram desde que Méliès testemunhou a demonstração dos Lumière e produziu seu primeiro rolo). Parece confirmar também o clima geral de entusiasmo e acordo antecipatórios que movem a cinematografia e a crítica no período inicial e heroico. Esse clima parece, em retrospecto, edênico.
Considere a atmosfera em torno das primeiras discussões teóricas: o debate entre Eisenstein e Pudovkin sobre a natureza da montagem, envolvendo a concepção das imagens como “células” e não “elementos” implicados em conflitos dialéticos, em oposição à “ligação dos elos da corrente”. Ou a discussão, um tanto menos familiar aos historiadores, da função do intertítulo como se cristalizou durante a década de 1920 na França: a eliminação do texto, por Kirsanov, em nome da explicitação visual; a redução do intertítulo, por René Clair, ao mínimo possível; a ênfase colocada, por Desnos e os surrealistas, em seu uso exclusivamente poético; a subversão do “sentido aos interesses da poesia”. Enquanto a controvérsia se desenvolveu – e com a intensidade e inventividade únicas que caracterizam o discurso crítico na França –, a tecnologia se preparava para transcender o problema. A declaração de que o “chiado” ou o “ruído dos freios” não era menos real ou “presente” por ser entendido em vez de ouvido foi tornada comicamente irrelevante; o problema foi simplesmente cancelado pela chegada do som.
De um modo geral, entretanto, a discussão, frutífera ou acadêmica, se deu em um contexto de ampla concordância no que diz respeito às direções prováveis e desejáveis do meio. Estilos, formas, invenções e preocupações teóricas eram principalmente complementares, não contraditórias. Um espectro, em vez de uma polaridade de possibilidades, estava envolvido. A admiração dos surrealistas pela comédia muda americana, refletida na obra de Artaud e Dulac, entre outros; o interesse universal pelas conquistas do cinema russo; o débito reconhecido abertamente por Eisenstein a Griffith, e o do jovem Dreyer a ambos – atestam uma certa comunidade de aspiração. Eisenstein, em seu belo ensaio sobre “Griffith, Dickens e o cinema hoje”, disse que “o que nos fascinou não foram apenas esses filmes, mas também suas possibilidades”. E falando sobre a montagem: “Sua fundação foi assentada pela cultura cinematográfica americana, mas seu uso consciente e completo, e seu reconhecimento mundial, foram estabelecidos pelos nossos filmes”.
O entusiasmo, o regozijo dos artistas e intelectuais não envolvidos diretamente no meio foi imensa. De fato, uma certa euforia envolveu o cinema e as teorias iniciais. Pois havia, finalmente, uma noção real de que as aspirações revolucionárias do movimento modernista na literatura e nas artes, por um lado, e as de uma utopia marxista, por outro, poderiam convergir nas esperanças e promessas, ainda indefinidas, do novo meio.
Havia, entre os intelectuais preocupados com o potencial revolucionário do cinema, tanto social quanto formal, uma reverência geral e tocante pela ideia de sua especificidade. Havia, acima de tudo, uma apreensão imediata, atravessando diferenças teóricas, de seu status privilegiado, de seu destino único.
Em um ensaio sobre “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”, cuja influência é evidentemente forte na estética de Malraux, Walter Benjamin ataca reacionários como Werfel que, relegando o cinema à articulação da fantasia e do feérico, estavam dedicados à redução de seu alcance, em uma tática de repressão. A expressão mais intensamente eufórica da nova paixão pela convergência entre estética modernista e ideologia utópica é “De la cinéplastique” de Élie Faure, um verdadeiro ensaio de estética-como-ficção-científica que prefigura a transformação radical, pelo cinema, da própria natureza da percepção espaço-temporal, do processo e da história da consciência.
As antecipações e especulações, e ainda mais significativamente, as invenções e conquistas dos americanos, russos, franceses, alemães e escandinavos foram predicadas, então, sobre apreensões complementares das possibilidades morfológicas e sintáticas do meio, o qual evoluiu no interior de um quadro de acordo e reconhecimento mútuos, estilhaçado, finalmente, pela crescente e traumática consciência do princípio de dissociação inerente na arte e em sua situação.
O ponto de choque é facilmente localizado na história: aquele momento, no final dos anos 1920, em que a natureza “hermafrodita” de uma tecnologia que já havia se expandido e se sedimentado em uma indústria não podia mais ser ignorada. Sendo o instrumento clássico da revolução industrial a divisão de trabalho, a geração de aventureiros audazes, artistas-empreendedores e diretores-produtores, como Griffith, foi substituída por empregados pagos. As consequências definitivas envolveram algo análogo à dissociação de uma sensibilidade. Isto, por sua vez, rapidamente engendrou um registro de limites e convenções que serviram para inibir, desviar e reformular o esforço cinematográfico.
Estamos lidando com uma queda da Graça. Para homens como Griffith, Eisenstein, von Stroheim e Welles, e muitos dos talentos mais brilhantes e radicais, foi criada, como sabemos, nos jardins da Califórnia, uma atmosfera irrespirável, uma corrupção que prejudicou grande parte do melhor trabalho feito em qualquer lugar.
Intelectuais e cineastas, igualmente, aqui e no exterior, reagiram com uma imediata tensão de desconfiança e, em muitos casos, de afastamento. A resistência predominante à introdução da faixa sonora, por exemplo, poderia certamente demonstrar uma ocultação ou um reflexo da hostilidade às expectativas do acelerado desenvolvimento do meio como um instrumento de cultura de massa. Um filósofo francês, conhecido meu, diz ter parado de ir ao cinema em 1929. Para Fondane, “o filme sonoro só é bom na medida em que é idiota”. E para Artaud “a verdade cinematográfica se encontra na imagem, não além dela”. A resistência ao som – e foi uma resistência ao verbo, não à música, que, desde o início, encontrou um lugar na convenção cinematográfica – expressava uma nostalgia por uma era de inocência muda e esperança intocada. Era, em resumo, uma atitude pastoral.
A desilusão, o sentido de frustração moral e estética expressos por Fondane eram gerais. A história do cinema moderno é, entretanto, em grande parte, a da acomodação das forças repressivas e corruptoras da situação posterior a 1929. Um registro complexo de limites e convenções engendrados por essa situação tem sido utilizado produtivamente. Precedentes históricos são abundantes, mas poucos, ou nenhum, atingiram um grau comparável de paradoxo dialético, de complexidade, e de escandalosidade.
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É a aceitação do princípio dissociativo, sua sublimação e conversão definitiva a propósitos estéticos que caracteriza a cinematografia recente e avançada na França e em outros lugares na Europa. É a rejeição quase categórica desse princípio e a aspiração a uma inocência e organicidade que move os esforços dos cineastas “independentes” que compõem algo como uma vanguarda americana. Toda discussão sobre a natureza e as possibilidades da cinematografia avançada hoje, da estética cinematográfica e de suas futuras possibilidades, deve, a meu ver, levar em conta essa divergência de radicalismos. Deve ainda levar em conta o fato de que a questão é, como Walter Benjamin comentou, “não se estamos lidando com uma arte” (e alguns, aparentemente, ainda se colocam essa questão), “mas se a emergência desse meio não transformou a própria natureza de toda a arte”.
A resistência geral neste país[3] à noção dessa transformação assumiu seu aspecto mais crucial não em círculos despreocupados com cinema, mas antes naqueles supostamente movidos por uma dedicação ao seu desenvolvimento. O desconforto e a hostilidade de muitos – de fato, da maioria dos – críticos de cinema aos aspectos do cinema contemporâneo que ultrapassam, contradizem ou transcendem os modos e valores de observação psicológica são familiares; eles nos dão, na verdade, tanto o contexto como o objeto para essa série de ocasiões conhecidas como “festival”. Certamente é verdade que o caráter retardatário de nossa crítica de cinema reflete uma ansiedade em relação ao modo como o cinema do pós-guerra, tanto na Europa como na América, tem em seus melhores momentos transcendido as convenções de uma sensibilidade formada pelo cânone pré-modernista de um século XIX predominantemente literário. Tanto Amos Vogel como Richard Roud chamaram corretamente a atenção para este fato em textos publicados na ocasião da abertura do festival. Mais triste, e mais perturbador ainda, eu diria, é a revelação, por este fato, de que a rejeição crítica de princípios formais e técnicos de disjunção envolvendo som, montagem, ou qualquer um dos outros parâmetros do cinema, representados nas obras de Bresson, Resnais ou Godard, de um lado, ou na de Anger, Breer e Peter Emmanuel Goldman, de outro, é parte de uma contradição ou de um regressismo mais geral, básico e poderoso. Deve-se simplesmente encarar o fato de que grande parte da geração que alcançou a maturidade nos anos 1920, que foi educada pelo, e comprometida com o, radicalismo formal de um Pound, uma Stein, ou um Joyce, está preocupada hoje – absurda e incrivelmente, ao que parece – com, digamos, os romances de Saul Bellow e Norman Mailer! Se o ponto crucial do desenvolvimento cinematográfico se encontra – como eu acredito que se encontra – na avaliação e redefinição da natureza e do papel da estrutura narrativa, podemos dizer que a história do academicismo na cinematografia e na crítica de cinema tem sido a da substituição de formas e valores literários por valores teatrais – e isso em um século que viu um florescimento da poesia americana.
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O mal-estar crítico e as contradições, assim, logicamente se focaram na última estação em dois filmes de Jean-Luc Godard: O pequeno soldado (Le petit soldat, 1960-1963) e Alphaville (Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution, 1965), apresentados pela primeira vez em Nova York no contexto do Lincoln Center Festival. Eu digo “logicamente”, pois é precisamente na medida em que Alphaville constitui uma instância realmente memorável da reconsideração da natureza e das possibilidades de certas convenções narrativas que eu quero considerá-lo brevemente neste ponto.
Alphaville é uma meditação ansiosa, na forma de uma história de suspense, sobre a agonia e a morte do amor, da liberdade e da linguagem em uma sociedade aprisionada na dialética autoperpetuadora do progresso tecnológico. Trata do congelamento profundo do sentimento. Agora, argumentar ou contestar a validade dessa ideia como um tema de discurso me parece algo questionável em si mesmo, mas atacar a “história” exceto na medida em que serve de suporte para uma estrutura cinemática foi, acima de tudo, demonstrar insensibilidade à “declaração” central do filme.
O ensaio violento das liturgias conteúdo-versus-forma que saudaram Alphaville não apenas atestam, de maneira negativa, a importância central de Godard. Junto com alguns de seus contemporâneos europeus ele domina o cinema agora, e muito do que é feito em qualquer lugar deve ser situado em relação à obra desses homens. Acima de tudo, entretanto, a complexa declaração do filme em relação às possibilidades da convenção narrativa transcende, em interesse e importância, a natureza de seu discurso, e a hostilidade demonstrada em relação a esse discurso eu tomo como simplesmente representativa de uma realocação (ou relocação) da hostilidade à sua declaração formal, cinematográfica.
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François Truffaut, refletindo um tanto casualmente sobre a história do cinema, uma vez dividiu seus protagonistas em dois tipos: os criadores de “espetáculo” ou entretenimento, como Méliès, e os experimentadores ou inventores, como Lumière. A isto, Godard respondeu que ele sempre tentou fazer filmes “experimentais” disfarçados de entretenimento. Alphaville é tal filme. Suas complexidades conceituais e formais se fundem em uma metáfora elaborada e precisamente articulada de imanência, de ambiguidade de localização e deslocamento, tanto no seu modo espacial quanto no temporal.
A Paris de hoje, seus prédios públicos, escritórios, hotéis, garagens, corredores, escadarias e elevadores são revelados àqueles em relação íntima com sua paisagem, como invadidos pelo futuro. Fronteiras entre passado, presente e futuro são – como as distinções entre invenção e entretenimento – abolidas por uma série de estratégias formais: uma prise de conscience assegurada por uma prise de vues, ou revelação por imaginação. Este filme, rodado inteiramente em locação, é um filme de des-locação. E, enquanto estrutura narrativa, iluminação, montagem, produzem uma transformação visual, temporal ou situacional, também um jogo contínuo com a linguagem transforma as coisas conhecidas e vistas. Assim, as moradias de baixo-orçamento desenvolvidas na Paris pós-1945, conhecidas como Habitations à loyers modiques, são as clínicas e manicômios do futuro: Les hôpitaux des longues maladies. As avenidas periféricas da cidade, les boulevards extérieurs, se alteram e se expandem em uma sugestão irrevogavelmente inquietante das rotas do espaço interplanetário. Função e escala de objeto e lugar são continuamente alteradas, enquanto imagem e som convergem sobre o sítio e a situação na exploração de uma figuração cinematográfica do deslocamento, das ambiguidades do tempo e da história. Como disse Gertrude Stein, “a composição não está lá, mas estará lá, e nós estamos aqui. Isto é há algum tempo para nós, naturalmente.” A mutante – a mudança dentro da – simultaneidade de semelhança e diferença, do ser e do vir-a-ser, enquanto nós somos, “há algum tempo, naturalmente”, estrutura o tempo-espaço dentro do qual a mente (e Alphaville é “sobre” o nascimento da mente e da sensibilidade, o renascimento da linguagem como um renascimento do amor) é restrita à função: o deslocamento em relação ao tempo. O tempo “passado-futuro” do qual Godard fala é nossa situação presente.
A progressão ou narrativa de Alphaville é, assim, a passagem de uma revelação a outra; suas peripécias são percepções, estruturadas pelo ritmo e tensão de uma história de detetive, de “busca pela verdade”. Frente a isto, as acusações de “trivialidade” ou “pretensão” se tornam vergonhosamente irrelevantes. O filme “declara” sua preocupação com a criação de uma morfologia; a concentração está no ritmo, na tensão e na coerência sintática através da narração – narração sendo, neste caso, uma forma de “relacionar” no sentido mais pleno do termo: um modo de criar estratégias relacionais através de discurso.
Alphaville permanece, então, como uma instância memorável da dedicação crítica, compartilhada pelos maiores cineastas europeus, às convenções do cinema comercial de Hollywood, e da conversão dessas convenções ao uso do cinema avançado. Pois a dedicação tem agido como contexto e pré-requisito para o radicalismo formal. (E é interessante considerar que a adesão de Godard ao filme da Monogram[4], à produção da “série B”, é paralela, ou antecipada pelo apego vitalício de Eisenstein aos primeiros filmes que chegaram à Rússia quando ele era um garoto. Ele fala com carinho de filmes como The House of Hate [George B. Seitz, 1918] e A marca do Zorro [The Mark of Zorro, Fred Niblo, 1920].) A importância da história de suspense, como refinada por Hitchcock para o uso mais à frente por homens como Resnais e Godard, encontra-se em seu caráter paradigmático como forma narrativa, como “veículo” de invenção dramática e formal. Aperfeiçoada em Hollywood na época seguinte à quebra da Bolsa, foi adotada e refinada, sublimada pelos interesses de um radicalismo formal.
A primeira e certamente mais suntuosa antecipação dessa estratégia é Os vampiros (Les vampires, Louis Feuillade, 1915-1916), exibida integralmente aqui pela primeira vez no festival do ano passado. Junto com Alphaville, dominou o evento. Feito por um homem de imaginação absolutamente intrépida, sua inventividade formal é sustentada por um firme comprometimento com a noção de cinema como técnica de narrativa para um público de massa. Eu discuti em outra ocasião a maneira pela qual Os vampiros não apenas introduz os temas desenvolvidos em Alphaville, e o modo como o cinema de Méliès e Feuillade esboça, no contexto das primeiras etapas do meio, os princípios e estratégias dos quais a arte e o cinema surrealista forneceram um resumo posterior[5].
“Por favor, acredite em mim”, disse Feuillade, “quando eu digo que não são os experimentadores que eventualmente irão obter o devido reconhecimento no cinema, mas antes os realizadores de melodrama – e eu me considero um de seus maiores devotos... Eu não tentarei de maneira alguma me desculpar (por esta visão)... Eu acredito que chego mais próximo da verdade.” Foi a aderência estrita à lógica desta visão que garantiu, para Feuillade, uma margem de improbabilidade, de abertura, da intensidade onírica que dá a Os vampiros um lugar entre as obras-primas do cinema.
Predicada sobre o desenvolvimento de uma convenção narrativa ao mesmo tempo estrita e elástica o bastante para acomodar uma tensão entre a probabilidade dramática e a fantasia, entre a continuidade do suspense e a descontinuidade da estrutura – entre discurso e poesia, em resumo –, a obra de Feuillade se relaciona mais com o futuro do cinema que com o seu passado. O que significa dizer, como Robbe-Grillet já disse, que “a imaginação, quando realmente viva, está sempre no presente”. O fascínio de Alain Resnais por Feuillade é a confirmação parcial disto. A obra de Resnais, como a de seus contemporâneos europeus, perpetua o comprometimento com os limites e estímulos de determinada forma; acima de tudo, ao forçar os limites dessa forma, exemplifica um comprometimento com o valor da forma em si que move o melhor do cinema avançado na Europa hoje.
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Agora, se considerarmos, como o faremos, que a aspiração revolucionária, tanto formal como política, alcançou um momento de consumação no cinema russo dos anos 1920 e do início dos anos 1930, saberemos também que a fusão paradigmática foi dissolvida pela contrarrevolução do stalinismo. Enquanto isto aconteceu (e a instalação do stalinismo em sua forma mais ou menos definitiva data de 1927, o ano da expulsão de Trotski da União Soviética, apenas dois anos antes da introdução do som no cinema), o cinema europeu e a arte europeia como um todo abandonaram uma certa totalidade de aspiração. O processo de dissociação, a cisão entre aspectos formais e políticos dos esforços radicais ou revolucionários foi criada de maneira irremediável – ao menos até nossa época. O resultado foi ou uma reação ou uma sublimação da aspiração revolucionária em um radicalismo puramente formal. Os vestígios da experiência política revolucionária e da tradição são doravante expressos na forma de nostalgia ou frustração. A arte politicamente orientada, em seu melhor, torna-se uma crônica de ausência, de negação, uma análise da dissociação, e, na melhor tradição modernista, uma declaração formal da impossibilidade do discurso.
A nostalgia e a frustração são explicitamente proferidas em O pequeno soldado de Godard, por Michel, o herói: “No início dos anos vinte, os jovens tiveram a revolução. Malraux, por exemplo, Drieu la Rochelle e Aragon. Nós não temos mais nada. Eles tiveram a Guerra Civil Espanhola. Nós não temos sequer uma guerra que seja nossa.” A articulação formal dessa nostalgia por um impulso revolucionário e por uma esperança envolve uma sucessão de paradoxos e fracassos fascinantes. O caso de Resnais, que, praticamente sozinho em sua geração, tentou articular um forte comprometimento político, é particularmente fascinante. Eu tenho em mente não apenas Hiroshima mon amour (1959), mas também Muriel (Muriel ou le temps d’un retour, 1963). Em ambos os filmes, ele tem uma dificuldade visível em situar o comprometimento dentro da estrutura total da obra, em encontrar um tropo visual que não irá apenas flexionar o estilo, ou distender a estrutura. O resultado é uma cisão rítmica, dramática e visual, a articulação estilística da afonia.
As duas passagens especificamente políticas nesses filmes são ambas distanciadas, destacadas como espetáculos ou diversões. Em Hiroshima, a demonstração antiguerra é inserida como uma sequência fílmica encenada dentro do filme, enquanto que em Muriel a guerra da Argélia é evocada, não mostrada, em um filme amador, por um comentário verbal agônico (o relato de uma jovem torturada pelos soldados franceses), em contraponto à série de planos amadores e inócuos que parodiam o mito da vida hilária da caserna.
Esta sequência constitui a articulação mais brilhante e definitiva da desintegração de uma arena cinematográfica para o discurso político. O desespero em relação a essa desintegração é a “declaração” política central do filme. A intensidade da “declaração”, entretanto, é amplificada ainda mais pelo distanciamento ainda maior da declaração ressaltada de si mesma (a distância entre imagem e comentário). Seu isolamento da textura da obra como um todo, sua disjunção particular e estilística, sua própria cor descolorida, estão em leve desacordo com a disjunção e a cor inventada do todo. Através de uma refração espetacular e estilística, Resnais propõe uma imagem do escândalo vergonhoso que gerou a Quinta República. Seu tropo é a cisão. A quebra, a falha, o intervalo ou a cisão rítmica e visual criados por esse interlúdio de “diversão” é a forma da declaração de afonia de Resnais. Ela declara sua nostalgia pelo cinema que não pôde ser feito; ela encarna o conflito do artista com o princípio dissociativo e com a política de dissociação.
E é fascinante, mas angustiante além da compreensão, ver, em A guerra acabou (La guerre est finie, 1966), a última tentativa de Resnais de assumir o que ele obviamente considera a responsabilidade discursiva de sua posição, a lógica diabólica desse princípio em operação. Como Alexandre Nevsky (Aleksandr Nevskiy, Sergei M. Eisenstein e Dmitri Vasilyev, 1938), A guerra acabou é a crônica da derrota de um artista; o filme representa uma inversão completa, a negação mais concreta, de uma forma e de um estilo. Neste filme, são as sequências eróticas que assumem o aspecto de interlúdios ou diversões dentro da estrutura geral, e a inversão a um hieratismo de estilo que, é claro, conhecemos e amamos: o de Hiroshima e, acima de tudo, o de O ano passado em Marienbad (L’année dernière à Marienbad, 1961). Essas passagens agora produzem as cisões que estimulam nossa nostalgia. Mais dolorosamente ainda, entretanto, elas declaram a nostalgia do próprio Resnais por suas concretizações passadas. Vivement Harry Dickson!
Lucien Goldmann, escrevendo há alguns anos no Les temps modernes sobre a suposta atrofia da consciência histórica e social dos diretores da nouvelle vague, disse, com um suspiro, que a energia e a vitalidade política pareciam concentradas na esquerda, enquanto o talento cinematográfico foi reservado à direita. Deixando de lado o gosto caracteristicamente conservador e marxista de Goldmann, o problema precisa ser reafirmado – e muito mais explicitamente do que é possível nesta ocasião particular. Colocando de maneira mais sucinta, entretanto, podemos reformulá-lo da seguinte maneira: se para os jovens russos do período imediatamente posterior à Revolução o problema foi, como disse Eisenstein, “avançar em direção a novas e ainda não-realizadas qualidades e meios de expressão, elevar a forma mais uma vez ao nível de conteúdo ideológico”, o problema para Resnais e seus pares é elevar, ou antes acomodar, o conteúdo ideológico às exigências formais de uma sensibilidade modernista. No fim das contas, qualquer tipo de ideologia – seja surrealista, marxista, ou o anti-humanismo do “novo romance” – possibilita, no melhor dos casos, uma hipótese de trabalho frutífera para o artista. A concepção de montagem de Eisenstein, derivada da ortodoxia dialética, não é tão convincente teoricamente quanto é revigorante esteticamente. A energia, a coragem e a paixão intelectual que sustentaram tanto a teoria como a obra foram, claro, entre as mais nobres de nosso século. Eisenstein é um modelo da cultura de nossa era – em suas derrotas como em seus feitos, até a própria qualidade fragmentária da sua obra!
A percepção de sua derrota, visível em Alexandre Nevsky, é tão particularmente dolorosa porque constitui um exemplo único do que podemos chamar do pathos da dissociação elevado ao extremo do estilo acadêmico. Deste pathos, autores como Babel e Maiakovsky foram poupados – pela morte ou pelo suicídio. O que restou da aspiração à arte revolucionária na União Soviética após a derrota de Eisenstein teve, doravante, que recapitular. Na Europa, essa aspiração foi finalmente, no cinema que nos interessa, sublimada em um radicalismo formal concentrado; em outro lugar, assumiu o aspecto de subversão. Isto nos leva ao cinema americano de inclinação “independente”.
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Apesar de generalizações sobre o cinema americano estarem sujeitas às objeções usuais, devemos, como indiquei brevemente no início desta fala, começar as considerações sobre essa produção apoiados nas convenções já discutidas. O cineasta com o qual nos preocupamos aqui foi, de fato, levado a abandonar as táticas de reconciliação básicas do cinema europeu como um todo. Mais importante, esta distinção é, por sua vez, predicada sobre uma negação, crítica ou apocalíptica, da sociedade de classe média que sustentou Hollywood, de sua estética, de sua indústria e sua arte, que continua a sustentar – independente de quão precária ou caprichosamente – a atividade da maior parte dos diretores europeus. Esta diferença básica de comprometimento, acima de tudo, começa a se fazer presente em discussões entre cineastas e críticos franceses e norte-americanos. Quando Louis Marcorelles, dos Cahiers du cinéma, declarou, como o fez na última primavera, quando se dirigia a um grupo de cineastas independentes e críticos, que os filmes americanos são amadores, despreocupados com os problemas de comunicação de massa, e, logo, negligenciáveis, ele está, é claro, entregando-se ao luxo polêmico de ignorar as imensas dificuldades confrontadas por artistas que, trabalhando em uma sociedade que, diferente de muitos países europeus (e especialmente o seu próprio), preserva a santidade da “livre iniciativa” ao evitar os subsídios estatais que criam uma situação mais aberta ao jovem europeu. Ele revela, contudo, uma insensibilidade extraordinária à pressão que força o artista a uma relação artesanal com uma indústria poderosa. Ele zomba, acima de tudo, da firmeza com a qual eles procuram recriar a linguagem cinematográfica, para si mesmos e para seus contemporâneos.
Muitos de nossos melhores cineastas independentes, como Kenneth Anger, Robert Breer, Peter Emmanuel Goldman, Jonas Mekas, Shirley Clarke, estão comprometidos com uma estética de autonomia que de maneira alguma viola ou exclui sua visão crítica da sociedade na qual eles tentam trabalhar como podem.
Existe, dentro dos círculos “independentes”, outra direção de estilo ou esforço que eu gostaria de considerar agora, já que representa um aspecto militante de uma aspiração radical do cinema americano. Ele está postulado em uma concepção do cinema como sendo, no sentido mais amplo do termo, redentora da própria condição humana. Esta atitude, ainda que admirável, gera as mais difíceis e as mais inibidoras contradições para os radicais contemporâneos. Sob o fardo da redenção, a integridade formal que salvaguarda o radicalismo pode e deve, finalmente, se dissolver. Eu me refiro ao cinema representado pela obra de Stan Brakhage, e, em alguma medida, à crítica de Jonas Mekas – que está sentado na primeira fileira com um gravador. Eu gostaria, é claro, de projetar alguns filmes ou sequências para ilustrar esta consideração, mas devo me contentar com algumas citações de escritos críticos – e da volumosa correspondência de Brakhage.
“Qual a utilidade do cinema se a alma apodrece?” diz Mekas. “Não é uma questão do filme ser bom ou mau artisticamente. É questão de... um novo entendimento da vida”.
Brakhage, falando em um encontro em Berlim, em dezembro de 1965 (e esta passagem, um tanto longa, é extraída, diferente das anteriores, não da revista Film Culture, mas de uma reportagem sobre esta ocasião em Berlim, em um artigo publicado, de acordo com a minha memória, no ano passado, no Village Voice).
“Esta câmera”, disse Brakhage,
Eu levo comigo para todos os lugares agora... Eu a levei na noite passada para a Berlim Oriental. Eu estava, desde a entrada, em um estado de terror que antes não imaginava poder existir. Finalmente, a tensão subiu até que eu me senti compelido a fazer uma imagem, que é o único momento em que eu trabalho, quando esta compulsão ou necessidade surge diretamente de algo vivido. Eu não tinha nada com o que trabalhar além de ruas vazias e algumas luzes, e trabalhei com isso, com um filme de alta velocidade, e tentei fazer uma impressão de meus sentimentos apenas com essas luzes enquanto estava lá, no interior, o que foi uma experiência incrível para mim. Eu sempre considerei a visão como algo que vem de mim na forma de uma imagem, seja uma visão de olhos fechados, os pontos e traços e formas que surgem quando os olhos estão fechados, e que podem ser vistos quando eles estão abertos. A memória, a lembrança das imagens ou a captura da luz na imediatez dos olhos abrindo. Eu capturei as imagens como pude, de modo que elas irão refletir o tremor ou o sentimento de qualquer parte do meu corpo; de modo que seja uma extensão, de modo que se torne uma coisa para internalizar a luz... Eu não sei o que precisarei fazer quando chegar em casa na montagem para capturar a qualidade desse sentimento e dizer algo dessa experiência.
Agora, para muitos de nós, imagino, e particularmente para aqueles que, como eu, estiveram por algum tempo preocupados com a pintura e a escultura contemporâneas e os problemas de método crítico derivados desse desenvolvimento, esta declaração tem um traço familiar – e implicações altamente problemáticas. Se, para homens como Anger e Breer, ou para Resnais e Godard, a arte e a aspiração radical fornecem a base para um ethos, a arte realmente se torna, para Brakhage, “nada mais que uma construção ética”, e o artista um ferrótipo do “herói moral”. A retórica é a do expressionismo abstrato, e eu arrisco dizer que as páginas de Rosenberg na Film Culture representam na Nova York de 1966 o último retiro da autoridade ativa do action painter.
Como um prelúdio para uma breve consideração sobre a natureza e as consequências dessa autoridade, aqui está uma passagem de um ensaio sobre de Kooning, por Harold Rosenberg:
Como para de Kooning a arte deve descobrir sua forma na atualidade da vida de um artista, não pode impor a si mesma sobre seu praticante como outras profissões o fazem. A arte se torna um caminho pelo qual o artista evita um caminho...
Por uma determinação mútua, a arte e o artista sustentam a abertura um do outro à multiplicidade da experiência. Ambos resistem à estilização e à absorção a um tipo. O fim estético ao qual de Kooning aplicou o termo “sem estilo” deriva e é uma experiência dessa filosofia da arte e do ser.
Ao conceber a arte como modo de vida, de Kooning torna seu engajamento em sua profissão total, no mesmo sentido da absorção de um padre ou santo por sua vocação. A ideia é falha. Falta à pintura a estrutura de valores pela qual os sistemas éticos ou religiosos podem sustentar o indivíduo.
Esta expressão lúcida de reserva pelo teórico da action painting em relação a uma estética-como-moralidade não é de modo algum surpreendente; é o reconhecimento inevitável dos perigos e limites de certo radicalismo e de sua retórica.
Aqui, entretanto, estão os pensamentos de Godard sobre o assunto (e devemos ter algum dia um Saber e sabedoria de J. L. Godard; ele é um aforista na grande tradição de Chamfort): “Entre estética e ética, uma escolha deve ser feita, é claro. Entretanto, é óbvio que uma palavra contém um pouco da outra.” “Confiar na sorte significa ouvir vozes.” “Se os caminhos da arte são imprevisíveis, é porque os caminhos do acaso não o são.” E finalmente, “fazer filmes se parece com filosofia moderna, digamos, Husserl, digamos... uma aventura, mais a filosofia dessa vida, e a reflexão sobre a vida”.
* * *
Pintores, escultores e seus críticos estão envolvidos, neste momento, em um tipo de reavaliação punitiva de uma retórica que passou pelo pensamento da action painting, em um levantamento crítico da arena cujos espaços medem a relação de suas suposições filosóficas com suas metáforas. Pode ser prematuro demais exigir do cineasta independente ou underground (confinado, como ele está, a uma posição ainda mais marginal na sociedade) o rigor crítico que agora começa a informar a reavaliação da action painting e de sua estética.
Para voltar, brevemente, mas mais especificamente à obra e ao pensamento de Brakhage, eu diria que a noção da câmera como uma extensão do corpo ou do sistema nervoso me parece altamente questionável, e que, no fim das contas, limita e viola a função da câmera. Certamente este modo de pensamento coloca em questão o poder fundamental do instrumento como expresso pela metáfora da câmera como olho, com certeza uma metáfora maravilhosamente sensível e flexível, esse supremo instrumento de mediação, que também é o “olho da mente”, cujas possibilidades transcendem infinitamente as limitações de um automatismo rudimentar. Se o cinema deve incorporar, e de acordo com esta estética ele incorpora, o drama e o páthos da própria criação, então podemos perguntar se a história do academicismo no cinema – que, como venho sugerindo, propõe a substituição de formas literárias por teatrais – não é então simplesmente estendida pela paródia acrítica da ortodoxia do expressionismo abstrato.
Minha intuição é de que a obra de Resnais e Godard (para citar apenas artistas representados neste festival) constituem interpretações da dimensão agonizante infinitamente mais radicais e poderosas; suas “declarações” proclamam o reconhecimento das dinâmicas do meio – e isso da maneira mais aberta e menos prescritiva possível.
Estas “declarações” de modo algum excluem necessariamente a possibilidade de estímulo ou plenitude de outras artes em desenvolvimento. Na América, a obra de Robert Breer, por exemplo, possui um imediatismo produzido pela eliminação da narrativa como trama, ou trama reconcebida como progresso, envolvendo uma complexa lógica visual, alta velocidade de imagens, e o uso da visão subliminar. Todos estes fatores articulam uma aspiração cinematográfica à condição de “objeto” instantaneamente apreendido, uma aspiração compartilhada pela pintura mais avançada de hoje. Ao invés de fundir em uma con-fusão, esta obra propõe uma situação em que o cinema e a pintura podem convergir dentro de uma tradição de radicalismo formal. Estes filmes, em sua autonomia intransigente, de modo algum excluem ressonâncias plásticas adicionais, mas são movidos por uma noção de estrutura como progresso-no-tempo tão absoluta e convincente que pouco espaço ou tempo é deixado para que algo “aconteça”.
A vantagem extraordinária do cinema americano hoje reside em parte nas possibilidades destas convergências e fertilizações mútuas. Talvez o cinema americano seja único em seu acesso a uma multiplicidade sem precedentes de esforços vitais desde a situação pós-Revolucionária na Rússia. Pensamos em seu já estabelecido, apesar de ainda embrionário, contato com a nova música, dança, teatro, pintura e escultura. E todas essas são, por sua vez, claro, elevadas, e talvez um tanto ameaçadas por uma confrontação forçada com a tecnologia em sua forma mais paroxística e disseminada.
É precisamente neste ponto que podemos antecipar as dificuldades que podem logo confrontar os grandes nomes do cinema europeu, mais particularmente na França. Se o cinema e a literatura têm fertilizado e sustentado um ao outro de maneira tão impressionante na França pós-guerra (e isso dentro de um contexto de ontologia antiliterária do cinema), isto é, acredito eu, apenas na medida em que ambos estiveram envolvidos em um refinamento de suas respectivas ontologias: a colaboração Robbe-Grillet-Resnais é, claro, uma instância suprema deste tipo de intimidade entre forças independentes.
Mas é interessante – e também perturbador – que o contexto intelectual, extra-cinematográfico do cinema francês tem sido (com a exceção de Resnais e Bresson) e continua a ser quase exclusivamente o mesmo do romantismo e do surrealismo. Em todo o corpus do cinema pós-guerra, eu citaria por alto apenas quatro exemplos de trilhas ou faixas sonoras compostas realmente significativas, e isso durante a notável renovação da música pós-weberniana na França: a trilha serialmente composta por Michel Fano para L’immortelle (Alain Robbe-Grillet, 1962-1963), a trilha de Henze para Muriel, a trilha concebida de forma interessante, apesar de questionável, de Barbaud para As criaturas (Les créatures, Agnès Varda, 1966), e acima de tudo a absolutamente memorável trilha falada de As férias do Sr. Hulot (Les vacances de Monsieur Hulot, Jacques Tati, 1953) – certamente a mais profundamente weberniana, em toda a sua maravilhosa economia, em seu uso inventivo do silêncio!
Em nosso país, o questionamento dos valores da autonomia formal levou à tentativa de dissolução das barreiras entre os meios. Talvez, entretanto, isto ocorra porque nossas hierarquias e distinções sociais e econômicas permanecem um tanto insensíveis à aspiração radical dos cineastas e dos artistas como um todo. As distinções hierárquicas, as barreiras entre as formas, são, é claro, infinitamente mais vulneráveis. O cinema, à beira de ganhar a batalha do reconhecimento de sua especificidade – e qualquer grande cineasta e crítico deste último meio-século lutou esta batalha –, está agora dedicado a uma reconsideração de seus objetivos. O vencedor agora questiona sua vitória. A emergência das novas “intermídias”, a ressurreição do antigo sonho da sinestesia, da fertilização mútua da dança, teatro e cinema, como nas peças de teatro de Robert Whiteman, na obra de Ken Dewey (e ambos são, sintomaticamente, representados no festival deste ano) constituem uma síndrome da crise desse radicalismo, tanto formal como social.
Em um país cujo poder e afluência são mantidos pela dialética de uma guerra econômica, em um país cujo sonho de revolução tem sido sublimado no reformismo e frustrado por uma prosperidade equivocada, o radicalismo cinematográfico é condenado a uma política e estratégia de subversão social e estética.
“Viver”, como disse Webern, citando Hölderlin, “é defender uma forma”. É da força de suas formas que o poder de negação essencial do cinema, sua “liquidação de elementos tradicionais de nossa cultura”, como Benjamin colocou, irá derivar e sustentar seu poder catártico.
Dentro da estrutura de nossa cultura, crianças de dez anos estão agora filmando séries em 8 mm. – em grande parte ficção científica, segundo me dizem – em seus próprios quintais. Este, talvez, seja o fato mais interessante sobre o cinema. Considerando esta nova acessibilidade do meio, tudo pode acontecer. O sonho de Astruc, da câmera como caneta, é transcendido: a câmera se torna um brinquedo, e o elemento lúdico é restaurado no empreendimento cinematográfico. Pensamos em Méliès, ao mesmo tempo filho e pai do cinema, e nos alegramos com a promessa de sua reencarnação na geração de pequenos americanos criando filmes de ficção científica em seus quintais, após a escola. Aqui, acredito eu, está a exaltação do futuro do cinema, de seu potencial radical definitivo. E, como disse André Breton, agora um venerável radical, “a obra de arte é válida se, e apenas se, estremece com uma noção de futuro”.
Notas:
[1] No texto original, Annette Michelson utiliza às vezes o termo cinema, e às vezes film. A distinção representa uma ênfase frequente nos autores ligados à vanguarda americana, que buscavam destacar a materialidade do meio, e o fato de que o cineasta é um filmmaker, alguém que “faz filmes”. Em uma entrevista a Mimi Poser durante o Summer Arts Festival de 1972, Michelson questiona o uso da palavra “diretor”, pois privilegia um certo modo de produção que não condiz com a situação artesanal dos cineastas experimentais. É significativo o contraste com a crítica francesa, especialmente os Cahiers du cinéma, que muitas vezes utilizam o termo metteur en scène. Dois textos que servem como exemplos dessas posturas contrastantes são os de Hollis Frampton, “For a Metahistory of Film: Commonplace Notes and Hypothesis”, Artforum, vol. 10, n.° 1 (setembro de 1971), e Jean-Claude Biette, “Qu’est-ce qu’un cinéaste?”, Trafic n.° 18 (primavera de 1996). [N.T.]
[2] Por esta razão, os comentários de Erwin Panofsky em “Style and Medium in the Moving Pictures” (Transition Magazine n.º 26, Nova York, 1937) parecem interpretar erroneamente a ordem e inverter a intenção e o significado das coisas. Eu diria que o cinema, ao invés de “acrescentar movimento a obras de arte estacionárias”, realizou o desejo por movimento que informa a concepção do próprio museu de cera. Isto se torna aparente, é claro, apenas quando consideramos a experiência, tanto cinética como visual, dentro de todo o espaço e da sequência do espetáculo, em vez do aspecto individual do tableau como tal. Esta aspiração ao movimento e o imediatismo elevado que confere à experiência é, acredito, devido ao espetáculo adicional fornecido pelo Musée Grévin em “The Chamber of Transformations”, uma memorável instância inicial da fusão “ambiental” de luz mutável, som e décor.
[3] As menções a “este país” e “este festival” são devido ao texto ser baseado na participação de Michelson no Festival de Nova York de 1965. [N.T.]
[4] Monogram Pictures foi um estúdio que integrava o que era comumente chamado de Poverty Row, um grupo de pequenos estúdios da era dourada de Hollywood que ficou famoso pela produção de filmes de ação e aventura. A Monogram Pictures produziu e lançou filmes de baixo orçamento de 1931 a 1953. [N.T.]
[5] Michelson refere-se ao texto “Breton’s Aesthetics: The Peripeties of a Metaphor, or Journey Through Impossibility”, Artforum, vol. 5, n.º 1 (setembro de 1966). [N.T.]
(Film Culture n.º 42, outono de 1966, pp. 34-42+136. Republicado em P. Adams Sitney [ed.], Film Culture Reader, Praeger, 1970, pp. 404-421. Traduzido por Lucas Baptista) |
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