AS DUAS VANGUARDAS
A história do cinema se desenvolveu de forma desigual, de modo que na Europa hoje existem duas vanguardas distintas. A primeira pode ser vagamente identificada com o movimento Co-op e inclui a maioria dos cineastas discutidos neste número da Studio International. A segunda inclui cineastas como Godard, Straub e Huillet, Hanoun, Jancsó. Naturalmente há pontos de contato e características comuns entre estes dois grupos, mas eles também se diferenciam nitidamente em muitos aspectos: premissas estéticas, estrutura institucional, tipo de suporte financeiro, tipo de apoio crítico, origem histórica e cultural. Há também outros cineastas que não se encaixam perfeitamente em nenhum destes movimentos, e filmes que se posicionam no meio ou simplesmente em outro lugar – por exemplo, Deux fois (Jackie Raynal, 1969-1971) –, mas em geral esta distinção é válida.
No extremo, cada movimento tenta negar a condição de vanguarda do outro. Livros como Film Is de Steve Dwoskin ou Experimental Film[1] de David Curtis não discutem o crucial trabalho pós-1968 de Godard e Gorin, por exemplo. E defensores de Godard – e o próprio Godard – frequentemente denunciaram a “vanguarda Co-op” como desesperadamente envolvida com o mundo da arte burguesa e seus valores. As razões para tal rejeição são frequentemente irrelevantes ou equivocadas. De maneira alguma todos os diretores (para usar uma palavra tabu no outro campo) em um grupo trabalham com narrativa em 35 mm., como às vezes é possível presumir – Godard tem trabalhado em 16 mm. por anos e recentemente com vídeo (para mexer em outro vespeiro). De modo recíproco, muitos diretores da Co-op estão cientes de questões políticas e se enxergam de certa forma como militantes. (Não que a militância política seja em si mesmo uma garantia de vanguardismo.)
Este cenário se complica pelo fato de que na América só existe uma única vanguarda, centrada em várias Co-ops. Não há óbvios equivalentes de Godard ou Straub-Huillet, embora sua influência possa ser ocasionalmente vista – em Speaking Directly (Jon Jost, 1972-1973), por exemplo. Além disso, críticos e teóricos americanos de vanguarda possuem a tendência de ignorar seus colegas europeus ou de vê-los como derivativos. Os europeus – e particularmente os ingleses – tendem a reagir enfatizando suas credenciais, afirmando que vêm ocupando o mesmo território que os americanos há mais tempo e independentemente. Olhando de fora, esta discussão parece ter uma importância secundária. Afinal, ninguém nega que a capital do cinema narrativo ficcional de 35 mm. seja Hollywood, por mais inovadores que diretores europeus como Antonioni ou Fellini ou Truffaut possam ser. Do mesmo jeito, Nova York é claramente a capital do movimento Co-op. Consequentemente, visto de Nova York, Godard parece muito mais europeu que Kren ou Le Grice, um fato que simplesmente reflete as realidades do poder no mundo da arte, ao qual o movimento Co-op está intimamente ligado. De certa forma, o cinema de vanguarda Co-op europeu está mais próximo de Nova York do que o cinema californiano, e os principais críticos e referências – Sitney, Michelson – não são mais apreciados em São Francisco do que são em Londres.
Parece-me muito mais importante tentar compreender o que une e separa Godard e Straub-Huillet de um lado e, digamos, Gidal e Wyborny de outro, do que aquilo que une e separa a Europa e a América do Norte no âmbito das Co-op. Ademais, penso que a ausência de qualquer vanguarda do estilo de Godard na América do Norte acabará se provando uma limitação severa para o desenvolvimento do próprio Novo Cinema Americano, estreitando seus horizontes e o atrelando desnecessariamente ao futuro das outras artes visuais, condenando-o a uma condição secundária no mundo das artes. Uma relação próxima com a “arte” – pintura, pós-pintura – é ao mesmo tempo uma força e uma fraqueza.
Para melhor compreender esta cisão que se desenvolveu na vanguarda é necessário olhar para trás, para a história. Uma cisão similar pode ser vista nos anos 1920. De um lado havia os filmes feitos por Léger-Murphy, Picabia-Clair, Eggeling, Richter, Man Ray, Moholy-Nagy e outros – muitos deles discutidos no recente livro de Standish Lawder, The Cubist Cinema[2] – que procuravam ampliar o escopo da pintura, sair dos limites da tela, introduzir a dimensão do tempo, usar diretamente a luz bem como a cor, e assim por diante. Do outro lado havia os diretores russos, cujos filmes eram claramente vanguardistas, mas em outro sentido: A greve (Stachka, Sergei M. Eisenstein, 1924-1925), A montanha do tesouro (Zvenigora, Aleksandr Dovjenko, 1928), Um homem com uma câmera (Chelovek s kino-apparatom, Dziga Vertov, 1929). Somente no final da década houve um contato real entre os dois grupos – quando Lissitzky (cujas ideias sobre o espetáculo eletromecânico e cuja admiração por Eggeling o colocavam no grupo dos “pintores”) encontrou Vertov para discutir a exposição Film und Foto[3] de Stuttgart, e quando Eisenstein encontrou Richter em sua primeira viagem para fora de União Soviética e foi com ele para uma conferência em Le Sarraz, que acabou por representar o fim ao invés do começo de uma nova época.
Assim como hoje, parte da diferença percebida reside no histórico das pessoas envolvidas. Um grupo veio da pintura. O outro do teatro (Eisenstein), e poesia-sonora futurista (Vertov) – Dovjenko havia se instruído como pintor, mas deliberadamente desistiu, deixando todo seu material de pintura para trás em Kharkov quando partiu para Odessa e para os estúdios de cinema, buscando um rompimento completo com seu passado. E, é claro, existem ligações premonitórias entre estas correntes dos anos 1920 e as que existem hoje em dia – Godard e Gorin implementaram sua colaboração sob o nome de Grupo Dziga Vertov, Van Doesburg em 1929 já havia antecipado muitas das ideias do “cinema expandido” desenvolvido décadas depois: “O espectador irá se tornar parte do espaço do filme. A separação da “superfície de projeção” é abolida. O espectador não irá mais observar o filme, como numa apresentação teatral, mas irá participar dele opticamente e acusticamente”[4].
A pintura, pode-se argumentar, teve o papel primordial no desenvolvimento do modernismo nas outras artes. O rompimento, o corte – para usar uma terminologia althusseriana – a mudança de terreno que marcou a substituição de um paradigma ou problemática por outro, o começo do modernismo, o esforço da vanguarda histórica, foi uma ruptura que ocorreu preeminentemente na pintura, com as descobertas do cubismo. Não é difícil mostrar como a pintura afetou as outras artes, como o cubismo teve um impacto decisivo em Gertrude Stein e Ezra Pound, por exemplo, na literatura, e posteriormente em William Carlos Williams, Apollinaire, Marinetti, Maiakósvki, Khlébnikov – todos foram influenciados em momentos cruciais por seu contato com o cubismo. As inovações de Picasso e Braque foram vistas como tendo uma implicação além das fronteiras da pintura. Elas foram intuitivamente percebidas, desde muito cedo, como representando uma mudança semiótica, um novo conceito e prática de signo e significação, que agora podemos ver ter sido uma abertura de um espaço, uma disjunção entre o significante e o significado e uma mudança na ênfase do problema de significado e referência, o clássico problema do realismo, para aquele do significante e significado dentro do signo em si[5].
Quando olhamos para o desenvolvimento da pintura após a inovação do cubismo, entretanto, vemos uma tendência constante na direção de um desenvolvimento aparentemente ainda mais radical: a completa supressão do significado, uma arte de puro significante separado do sentido tanto quanto da referência, de sinn tanto quanto de bedeutung. Esta tendência rumo à abstração pode ser justificada de diversas formas – um significado transcendental poderia ser postulado, em termos simbolistas ou espirituais, um sentido localizado no uberwelt das ideias puras; uma teoria do formalismo, da arte como design puro, pode ser proposta; o trabalho da arte poderia ser defendido em termos da objetidade[6], essência pura; ela pode ser explicada como uma solução para um problema, frequentemente postulado pela relação entre um significante – uma forma de expressão, nos termos de Hjelmslev – e amparo físico e material (a matéria da substância de expressão).[7]
A literatura, por outro lado, sempre tendeu para formas de escrita em que o significado se mantém dominante. Modernismo pode ser interpretado em termos da expansão do argumento, novas técnicas narrativas (fluxo de consciência etc.) ou jogos com os paradoxos do sentido e referência (pirandellismo). É significativo, por exemplo, que muitos dos experimentos mais radicais, como as tentativas de poesia sonora, foram obras de artistas ou escritores trabalhando próximo de pintores: Arp, Schwitters, Van Doesburg entre outros. No teatro os desenvolvimentos mais radicais estavam invariavelmente associados com mudanças na cenografia e figurino, incluindo o uso de máscaras: o teatro Construtivista de Meyerhold na União Soviética, o teatro de Bauhaus de Schlemmer, Artaud. Neste contexto, devemos acrescentar, Brecht parece somente como pouco mais do que um moderado.
O cinema é uma forma de arte que existe em mais do que um canal, mais do que um meio sensorial, e usa uma multiplicidade de diferentes tipos de código. Tem afinidades com quase todas as outras artes. Música e língua verbal, assim como sons naturais e artificiais, podem formar elementos da trilha sonora. Teatro e dança podem ser elementos do evento fílmico, posicionados na frente da câmera para serem fotografados. Edição pode ser usada para desenvolver uma narrativa ou produzir um “ritmo visual” análogo à música. O próprio filme pode ser pintado ou pinturas podem ser animadas. Luz pode ser usada como um meio, e através da projeção uma terceira dimensão pode ser introduzida para produzir um tipo de escultura móvel de luz. Cinema também possui seus próprios códigos e materiais “especificamente cinemáticos”[8], associados com as diversas fases da produção do filme.
Como resultado desta variedade e multiplicidade, ideias foram despejadas no cinema por uma variedade de fontes das outras artes. Uma poderosa influência veio da pintura, trazendo uma tendência à abstração – pura luz ou cor; e design não figurativo – ou à deformação das imagens fotográficas convencionais, envolvendo fragmentação prismática e estilhaçamento, o uso de filtros ou vidro pontilhado, planos espelhados, close-ups extremos e microscópicos, ângulos bizarros, imagens negativas etc., tudo isto pode ser encontrado em filmes dos anos 1920. A edição buscava seguir princípios de associação (relacionados à poesia ou sonhos) ou analogias com música – planos de duração fixa, repetição e variação, tentativas de efeitos sinestésicos e teorias de contraponto.
Mas esta influência, e os filmes associados a ela, são marcados tanto pelo que eles excluíram quanto pelo que incluíram. Primariamente, é claro, a língua verbal estava ausente, assim como a narrativa. Durante o período mudo, a ausência de linguagem não foi destacada; era tratada como algo natural ao filme, mas em retrospecto sua importância pode ser notada. A linguagem também está excluída de muitos filmes vanguardistas, que são projetados ou em silêncio ou com trilhas musicais eletrônicas. Novamente, há motivos técnicos e financeiros para isto, mas esses desincentivos coincidem com uma estética que foi ela própria fundada em conceitos de forma e problema visuais os quais excluem a linguagem verbal do seu campo, e podem até ser ativamente hostis a ela. Esta é parte do legado da Renascença que sobreviveu ao rompimento modernista quase que inquestionavelmente, exceto em instâncias isoladas – Lissitzky, Duchamp, Picabia e algumas obras conceituais recentes de extrema importância.
Há outro ponto importante que deve ser destacado sobre o desenvolvimento do cinema em relação à história. Cineastas em determinado momento se tornaram insatisfeitos com a busca por “soluções cinéticas para problemas pictóricos”[9], como nos filmes de Man Ray e Moholy-Nagy, e começaram a se concentrar naquilo que eles viam como problemas especificamente cinemáticos. O cinema estrutural da última década representou um deslocamento do interesse do mundo da arte para o mundo do cinema, ao invés de uma extensão. A maneira de pensar permaneceu uma que os cineastas têm em comum com os pintores e outros artistas visuais, mas um esforço tem se desenvolvido na insistência da autonomia ontológica do filme. Assim, por exemplo, o trabalho de Gidal tem mantido em primeiro plano e é em certo sentido “sobre” o foco; o trabalho de Le Grice tem mantido em primeiro plano e é em certo sentido “sobre” revelação e projeção. A tendência da pintura de concentrar em sua própria esfera de material e significação, de ser autorreflexiva, foi traduzida para termos e preocupações especificamente cinemáticos, embora aqui novamente “especificamente cinemático” signifique primordialmente o rolo de película.
Portanto, o impacto das ideias de vanguarda do mundo das artes visuais acabou empurrando os cineastas para uma posição de “purismo” ou “essencialismo” extremo. Ironicamente, o cinema anti-ilusionista e antirrealista acabou compartilhando muitas das mesmas preocupações com os seus maiores inimigos. Um teórico como André Bazin, por exemplo, comprometido com o realismo e representacionismo, baseava seu comprometimento em um argumento sobre a ontologia e essência cinemática que ele via na reprodução fotográfica do mundo natural. Nós temos agora, de certa forma, tanto uma ontologia extrovertida quanto introvertida do cinema, uma buscando a alma do cinema na natureza do evento pró-fílmico, a outra na natureza do processo cinemático, o feixe de luz ou o grão de prata. A fronteira alcançada por esta vanguarda tem sido uma preocupação cada vez mais estreita com o filme puro, com filme “sobre” filme, uma dissolução da significação em objetidade ou tautologia[10]. Devemos adicionar, talvez, que esta tendência é ainda mais marcante nos Estados Unidos do que na Europa.
* * *
Como a outra vanguarda se posiciona? Aqui, como era de se esperar, a tendência vai na direção oposta. Os diretores soviéticos dos anos 1920, embora enxergassem a si mesmos como uma forma de vanguarda, também estavam preocupados com o problema do realismo. Na maior parte do tempo eles se mantiveram nos limites do cinema narrativo. As passagens e episódios mais vanguardistas dos filmes de Eisenstein (experimentos em montagem intelectual etc.) são apenas passagens e episódios, que aparecem como interpolações numa narrativa mais clássica e homogênea. Não há dúvida que a dramaturgia é modernista ao invés de tradicional – a turba como herói, tipagem, guignol etc. – mas estas não são características que podem ser atribuídas a um rompimento e sim a uma renovação do teatro clássico. São modos de atingir um efeito emocional intensificado ou apresentar uma ideia com vivacidade ou força inesperada.
Na obra de Eisenstein o significado – conteúdo no sentido convencional – é sempre dominante e, claro, ele chegou a rejeitar Um homem com uma câmera de Vertov como “distrações formalistas e brincadeiras desmotivadas com a câmera”[11], contrastando seu uso de câmera lenta com A queda da casa de Usher (La chute de la maison Usher, Jean Epstein, 1928), em que, de acordo com Eisenstein, a câmera lenta é usada para aumentar a pressão emocional, i.e. para alcançar um efeito em termos de conteúdo ou meta desejados. O filme de Vertov era um marco para a vanguarda e é um sinal de sua riqueza que ele possa ser visto como um precursor tanto do cinéma-vérité como do cinema estrutural, embora seja também, é claro, um sinal de sua ambiguidade, de sua incerteza, preso entre uma ideologia de realismo fotográfico e uma de inovação formal e experimentação.
Em termos gerais, o que encontramos nos cineastas soviéticos é o reconhecimento de que um novo tipo de conteúdo, um novo reino de significados, demanda uma inovação formal, no nível do significante, para sua expressão. Portanto, Eisenstein queria traduzir o materialismo dialético de sua visão de mundo, de uma abordagem focada no argumento para uma focada na forma, através de uma teoria da montagem que fosse em si dialética. A estética era ainda baseada no conteúdo, ela ainda via os significantes como primariamente como meios de expressão, mas ao mesmo tempo isto exigia uma transformação radical destes meios. Era uma estética que tinha muito em comum com as posições vanguardistas de, digamos, Léger ou Man Ray, mas que também mantinha uma distância, distância essa em que o medo do formalismo era sintomático. Era como se eles sentissem que era certo que, uma vez que o significante fosse libertado das amarras do significado, ele iria celebrar destruindo seu antigo mestre em um ataque de ultra-esquerdismo irresponsável e utopismo. O que, como pudemos ver, não estava totalmente equivocado.
O caso de Godard, trabalhando cerca de 40 anos depois, é um pouco distinto. Nos filmes pós-1968 de Godard temos um vislumbre de uma rota alternativa entre o conteudismo e o formalismo, um reconhecimento de que é possível trabalhar no espaço aberto pela disjunção e deslocamento do significante e significado. Claramente Godard foi influenciado pela teoria de Eisenstein da montagem dialética, mas ele a desenvolve de uma maneira muito mais radical. Em última instância, para Eisenstein, o conflito se dava primordialmente entre sucessivos significados de imagens. Embora reconheça uma forma de montagem dialética nas pinturas suprematistas de Malevich, ele mesmo se manteve nos confins da “naturalidade”. (Curiosamente ele identifica o meio do caminho entre naturalismo e abstração, que relaciona, surpreendentemente, com Balla e o “futurismo italiano primitivo”)[12]. Godard pega esta ideia de conflito e luta formal e traduz em um conceito de conflito, não entre os conteúdos das imagens, mas entre diferentes códigos e entre o significante e o significado.
Assim, em A gaia ciência (Le gai savoir, 1968-1969), que ele começou a filmar antes dos eventos de maio de 1968, mas completou depois, Godard tenta programaticamente “retornar ao zero”, decompor e depois recompor sons e imagens. Para Godard, o conflito se torna não simplesmente colisão através de justaposição, como no modelo de Eisenstein, mas um ato de negatividade, a divisão de uma unidade natural aparente, uma disjunção. A visão de Godard da comunicação burguesa é a de um discurso que adquire o seu poder através de sua aparente naturalidade, a impressão de necessidade que parece unir um significante a um significado, um som a uma imagem, de modo a prover uma representação convincente do mundo. Ele deseja não simplesmente representar um “mundo” alternativo ou uma “visão de mundo” alternativa, mas investigar todo o processo de significação a partir do qual uma “visão de mundo” ou ideologia é construída. A gaia ciência termina com as seguintes palavras na trilha sonora: “Este filme não pretende explicar o cinema ou mesmo constituir seu objeto, e sim, mais modestamente, oferecer alguns meios efetivos de se chegar nisso. Este não é o filme que precisa ser feito, mas ele mostra como, se alguém pretende fazer um filme, essa pessoa deve necessariamente seguir alguns dos caminhos percorridos aqui.”[13] Em outras palavras, o filme deliberadamente suspende o “sentido”, evita qualquer teleologia ou finalidade, no interesse da destruição e reorganização, uma recombinação da ordem dos sinais como uma experiência na dissolução de antigos sentidos e da geração de novos a partir do processo semiótico em si.
Posto de outra forma, A gaia ciência não é um filme com um sentido, algo a dizer sobre o mundo, nem é um filme “sobre” filme (que é, afinal, simplesmente uma parte limitada do mundo de interesse para cineastas e estudantes de cinema), mas um filme sobre a possibilidade do sentido em si, de gerar novos tipos de sentidos. A variedade de sistemas de signos existentes no cinema é então conduzida a uma nova forma de relação umas com as outras e com o mundo. Godard também não é, é claro, indiferente a quais tipos de novos significados são produzidos. Embora seu trabalho fique em aberto, ele não se oferece a um delírio de interpretação, como se o sentido pudesse ser introduzido à vontade pelo espectador. Significados não são fixados, ou fixados a uma distância considerável, como o são no cinema convencional, nem são completamente livres de qualquer limitação, como se o fim de uma arte dominada pelo conteúdo significasse o fim de qualquer controle sobre o conteúdo.
De certo modo, o trabalho de Godard retorna ao ponto de ruptura original em que a vanguarda moderna começou – nem realista ou expressionista, de um lado, nem abstracionista, de outro. De certo modo, o quadro Demoiselles d’Avignon não é nem realista, expressionista ou abstracionista. Ele desloca o significante do significado, afirmando – da maneira que o deslocamento exige – a primazia do primeiro, sem dissolver o segundo. Não é o retrato de um grupo ou um estudo sobre o nu no sentido representativo tradicional, mas por outro lado, vê-lo somente como uma investigação de problemas ou possibilidades formais e de pintura é esquecer seu título original, Le bordel philosophique. O mesmo pode ser dito, é claro, sobre O grande vidro. A batalha entre realismo/ilusionismo/“literatura” em arte e abstração/reflexão/modernismo de Greenberg, não é tão simples ou abrangente como às vezes parece ser.
Há outros dois tópicos que precisam ser mencionados aqui. O primeiro é a política. Como sugeri acima, é frequentemente afirmado que uma vanguarda é política e a outra não. Peter Gidal, por exemplo, defende seus filmes em bases que claramente implicam uma posição política. E os defensores de Godard e Straub-Huillet, ao distinguir seus filmes dos de Karmitz ou Pontecorvo, são frequentemente forçados a afirmar que ser “político” não é suficiente, que deve haver uma ruptura com as normas burguesas da diegese, subversão e desconstrução de códigos etc. – uma linha argumentativa que, a não ser que seja desenvolvida com cautela ou detida arbitrariamente em algum ponto seguro, conduz inevitavelmente a posições da outra vanguarda. No entanto, ao discutir Godard, o fato de que seus filmes lidam explicitamente com questões políticas e ideias é obviamente importante. Ele não deseja romper com a cultura política – marxista – em que mergulhou antes de 1968, e em que desde então só se aprofundou mais. Esta cultura, além disso, é uma cultura de livros e linguagem verbal. O ponto importante, entretanto, é que um filme como A gaia ciência – ao contrário de outros trabalhos de Godard em que ele sofre mais da influência de Brecht – não é simplesmente didático ou expositivo, mas apresenta a linguagem do marxismo, uma linguagem deliberadamente escolhida, como ela mesma problemática.
A política – a influência e presença dos escritos marxistas – tem sido um óbvio ímpeto e força para Godard, mas também se relaciona a outra questão – a do espectador. De maneira geral, a vanguarda Co-op, embora sem dúvida fosse ficar feliz de encontrar uma audiência de massa, lida bem com sua condição de minoria. Os representantes da cultura marxista são, de maneira geral, esteticamente conservadores e veem o vanguardismo como elitismo. Godard, como é bem-sabido, se defendeu contra esta acusação citando o dictum de Mao sobre os três tipos de luta e posicionando seu trabalho no cinema sob a bandeira de experimento científico ao invés da luta de classes, uma instância em que o trabalho teórico poderia ser justificado e ter precedência sobre o trabalho político, no curto prazo pelo menos. Todavia, também é claro que foi uma pressão para recuperar uma audiência de massa, popular, que levou à retração artística de Tudo vai bem (Tout va bien, Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, 1972), que abandona o vanguardismo por um didatismo estilizado, passado no interior de uma clássica estrutura realista, embora com algumas interpolações eisensteinianas.
O segundo tópico é o da “intertextualidade”, para usar a terminologia de Julia Kristeva[14]. Uma das principais características do modernismo, uma vez que a prioridade de referência imediata ao mundo real tenha sido questionada, era o jogo de alusão dentro e entre textos. Citação, por exemplo, possui um papel crucial em Demoiselles d’Avignon e em O grande vidro. Na escrita de vanguarda basta pensar em Pound e Joyce. Novamente, o efeito que se busca é quebrar a homogeneidade do trabalho, abrir espaços entre diferentes textos e tipos de discurso. Godard tem usado a mesma estratégia, não somente na trilha sonora, onde passagens inteiras de livros são recitadas, mas também na própria imagem, como nas citações de faroestes de Hollywood e do cinema novo brasileiro em O vento do Leste (Le vent d’est, Jean-Luc Godard/Jean-Pierre Gorin/Gérard Martin, 1969-1970). Similarmente, os filmes de Straub-Huillet são quase todos organizados em camadas, como um palimpsesto – neste caso, o espaço entre os textos não é semântico mas histórico também, os extratos textuais diferentes são resíduos de diferentes épocas e culturas.
É significativo talvez que os últimos filmes de Malcolm Le Grice tenham uma qualidade similar de intertextualidade nas suas citações de Lumière e Almoço na relva de Manet. O filme sobre Lumière é especialmente interessante – em comparação com, por exemplo, o remake de Bill Brand do filme de Lumière sobre a demolição de uma parede[15]. Não é simplesmente uma série de recombinações óticas, como anagramas cinemáticos, mas uma investigação sobre a própria narração, em que ao contrapor diferentes tons narrativos, por assim dizer, não se dissolve nem se repete a simples história de Lumière, O regador regado (L’arroseur arrosé, 1895), mas enfatiza o processo da narração em si. E isto, como vimos, é semioticamente bem diferente de enfatizar o processo de projeção. O caminho para o cinema narrativo não é proibido ao diretor de vanguarda, não mais do que o caminho para a linguagem verbal[16].
O cinema, como destaquei anteriormente, é um sistema múltiplo – a busca pelo especificamente cinemático pode ser enganosamente purista e redutiva. Para a maioria das pessoas, afinal, cinema é impensável sem palavras e histórias. Reconhecer este fato não é de maneira alguma aceitar uma atitude convencional ao cinema, ou ao papel da história e palavras nele, orientado por Hollywood (ou orientado por Bergman/Antonioni/Buñuel). É talvez a ideia, tão vigorosamente enraizada agora, de que o cinema é uma arte visual que trouxe consigo um bloqueio. Entretanto esta ideia é, obviamente, uma meia-verdade. O perigo que ameaça é que a introdução de palavras e histórias – de significados – irá simplesmente trazer de volta o ilusionismo ou representacionalismo com toda a força. Claramente este medo é o oposto da ansiedade de Eisenstein sobre as “brincadeiras desmotivadas com a câmera”. Há bons motivos para estes medos, mas certamente eles podem ser superados.
Tentei mostrar como as duas vanguardas que encontramos na Europa se originaram e o que é que as separa. Para ir além, eu teria que discutir também a estrutura institucional e econômica em que os diretores se encontram. As bases para o movimento Co-op, como muitas vezes é destacado, se encontra na produção artesanal, com cineastas que realizam eles mesmos o máximo possível de cada etapa do processo de produção do filme. Se há atores envolvidos, eles são frequentemente poucos, geralmente amigos do cineasta, muitas vezes outros cineastas. A outra vanguarda possui suas raízes no sistema comercial, e mesmo quando filma em 16 mm. Godard utiliza estrelas conhecidas no cinema comercial. A diferença não é simplesmente de orçamento – Dwoskin ou Wyborny fizeram filmes para TV assim como Godard, e Dwoskin é claramente muito mais convencional, embora eles sejam automaticamente atribuídos a lugares culturais diferentes. Ela é muito mais algo associado ao quadro de referência do cineasta, os lugares de onde vieram e a cultura com que se relacionam.
Os fatos deste desenvolvimento desigual também mostram que seria utópico esperar por uma simples convergência das duas vanguardas. O trabalho mais revolucionário, tanto de Godard como de Straub-Huillet, foi realizado em 1968 – A gaia ciência e O noivo, a atriz e o cafetão (Der Bräutigam, die Komödiantin und der Zuhälter). Em comparação, Tudo vai bem e Moisés e Aarão (Moses und Aron, 1973-1975) são um passo para trás. Godard trabalha cada vez mais isolado, desligado de qualquer obra coletiva real ou movimento. Em A gaia ciência, Juliet Berto diz perto do fim que metade dos planos do filme estão faltando, e Jean-Pierre Léaud responde que eles serão filmados por outros cineastas: Bertolucci, Straub, Glauber Rocha. Podemos agora ver quão errado estava Godard em alguns de seus julgamentos – os planos ausentes de seu filme poderiam ser fornecidos pela outra vanguarda – e não está claro que ele se deu conta disso.
Não obstante, embora uma simples convergência seja improvável, é crucial que as duas vanguardas sejam confrontadas e justapostas – este é parte do valor, por exemplo, do Festival de Cinema Independente de Bristol, contrariamente a Knokke ou Pesaro. A história da arte progride, como Viktor Shklovsky há muito destacou, por movimentos de cavalo. Durante a primeira década deste século, quando a vanguarda histórica embarcou em seu caminho, os anos do corte, o cinema estava ainda na sua infância, mal havia saído do parque de diversões e da caixa de música, e certamente não era a Sétima Arte. Por esta razão – e por outras, incluindo razões econômicas – a vanguarda demorou para se fazer presente no cinema e ainda é muito marginal, em comparação com a pintura ou música ou até mesmo a escrita. Entretanto, de certa forma, o cinema oferece mais oportunidades do que qualquer outra arte – a fertilização cruzada, que foi uma característica tão marcante daquelas primeiras décadas, a interligação e absorção recíproca entre pintura, escrita, música, teatro etc., poderia ocorrer no campo do cinema. Isto não é um apelo por uma maior harmonia, uma obra de arte total sinestésica no sentido wagneriano. Mas o cinema, por ser um sistema múltiplo, pôde desenvolver e elaborar as deslocações semióticas que marcaram as origens da vanguarda de uma maneira única e complexa, uma montagem dialética dentro e entre uma complexidade de códigos. Pelo menos, escrevendo agora como um cineasta, esta é a fantasia que eu gostaria de criar.
Notas:
[1] Stephen Dwoskin, Film Is...., Londres, 1975. David Curtis, Experimental Cinema, Londres, 1971.
[2] Standish Lawder, The Cubist Cinema, Nova York, 1975.
[3] Ver Sophie Lissitzky-Küppers, El Lissitzky, Londres, 1968.
[4] Theo Van Doesburg, “Film as Pure Form”, Form, verão de 1966, traduzido por Standish Lawder de Die Form, 15 de maio de 1929.
[5] Ver Victor Burgin, “Photographic Practice and Art Theory”, Studio International, julho/agosto de 1975.
[6] O termo deriva do ensaio de Michael Fried, “Art and Objecthood”, Artforum n.º 5, junho de 1967, pp. 12-23. Republicado em Minimal Art: A Critical Anthology. Nova York: eds. Battcock, 1968, pp. 116-147. [N.T.]
[7] Ver Roland Barthes, Elements of Semiology, Londres, 1967.
[8] Christian Metz, Language and Cinema, Haia, 1974.
[9] Barbara Rose, “The Films of Man Ray and Moholy-Nagy”, Artforum, setembro de 1971.
[10] Ver meu artigo vindouro sobre ontologia e materialismo no cinema, que será publicado em Diacritics.
[11] Sergei M. Eisenstein, “The Cinematographic Principle and the Ideogram”, Film Form, Nova York, 1949.
[12] Eisenstein, “A Dialectic Approach to Film Form”, op. cit.
[13] Jean-Luc Godard, Le gai savoir, Paris 1969. O roteiro, “Mot-à-mot d’un film encore trop réviso”, foi publicado pela Union des Écrivains formada durante maio de 1968. (Minha tradução).
[14] Julia Kristeva, Semeiotike, Paris, 1969.
[15] Ver Ian Christie, “Time and Motion Studies: Structural Cinema and the Work of Bill Brand”, Studio International, junho de 1974.
[16] Os cineastas paisagistas britânicos muitas vezes usam um novo tipo de narratividade, em que tanto o cineasta quanto a “natureza” como agente causal desempenham o papel de protagonista. Um evento pró-fílmico, que é um significado convencional (“paisagem”), intervém ativamente no processo de filmagem, determinando operações nos códigos “especificamente cinematográficos”.
(Studio International, vol. 190, n.º 978, novembro-dezembro de 1975, pp. 171-175. Traduzido por Bernardo Versiani) |
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