“ONTOLOGIA” E “MATERIALISMO” NO FILME[1] Desde que o cinema foi inventado, teóricos têm levantado o problema da sua essência e embarcado no projeto de uma ontologia. Destacadamente dentre esses estava, é claro, André Bazin, cujos escritos reunidos foram publicados sob o título Qu’est-ce que le cinéma? (quatro volumes, Paris 1958-1962; traduzidos parcialmente como What is Cinema?, dois volumes, Berkeley 1967[2]) – uma coletânea na qual logo o primeiro ensaio confronta a questão da ontologia da imagem fotográfica. Esse ensaio é ilustrado por uma fotografia do Santo Sudário de Turim, uma instância de registro duplo, e contém numerosas analogias, por agora bem conhecidas, entre a fotografia e a modelagem de uma máscara mortuária, a preservação de uma mosca em âmbar e a mumificação. Para Bazin, a fotografia – e por extensão a cinematografia – era um processo natural de registro, um processo que excluía o homem e era, portanto, apesar de sua avançada tecnologia, pré-cultural em certo sentido, ou pelo menos a-cultural. “Todas as artes se fundam sobre a presença do homem; unicamente na fotografia é que desfrutamos de sua ausência (nous jouissons de son absence). Ela age sobre nós como um fenômeno ‘natural’, como uma flor ou um floco de neve cuja beleza é inseparável de sua origem vegetal ou telúrica” (vol. 1, p. 15; essa citação e as subsequentes referem-se à edição francesa[3]). O cinema seria baseado num automatismo natural que anularia a irreversibilidade do tempo: um determinismo rigoroso. Essa linha de argumentação levou Bazin a afirmar que a ontologia da imagem fotográfica era inseparável da ontologia de seu modelo, sendo até mesmo idêntica a ela. Através de processos ópticos e fotoquímicos naturais, o ser do evento pró-fílmico (os objetos ao alcance do campo visual da câmera) era transferido para o ser do próprio filme, a sequência de imagens registrada e subsequentemente projetada. Bazin via o destino do cinema como a recriação do mundo na sua própria imagem direta. Mas essa potencialidade do cinema, a potencialidade de um “realismo integral”, não poderia ser posta em prática mais rapidamente do que o ritmo permitido pelo desenvolvimento tecnológico. O progresso tecnológico já estava demarcado – primeiro, a invenção do próprio cinema; depois, o grande marco do som – e Bazin ansiava pela generalização da cor e pela perfeição do 3D. Ele teria, certamente, saudado a holografia. Ao mesmo tempo, aprimoramentos na película cinematográfica e nas lentes reduziram a necessidade de luz artificial e tornaram possível uma maior profundidade de campo na imagem, correspondendo, assim pensava Bazin, à ubíqua limpidez da percepção natural. “Por outro lado, o cinema é uma linguagem” (vol. 1, p. 19[4]). O que Bazin quis dizer com isso? A presença da linguagem deve significar, é claro, a passagem da natureza à cultura, a intervenção do agenciamento humano, o primado do pensamento. Bazin fala da “linguagem” do cinema como se ela fosse um fardo necessário. É como se, apesar de tudo, a necessidade da linguagem fosse infligida ao cinema pelas suas inadequações técnicas; tal fardo não poderia ser dispensado ainda. Em duas ocasiões diferentes, Bazin utiliza a metáfora do “perfil de equilíbrio” de um rio (vol. 1, p. 139[5]). Nos primórdios do cinema, aprimoramentos técnicos trouxeram consigo o aprimoramento das formas de expressão, das figuras de linguagem que são, então, ultrapassadas e tornadas obsoletas por novos aprimoramentos técnicos. Assim, o cinema silencioso viu o desenvolvimento da montagem “russa”, do primeiro plano etc., como formas de compensar a ausência do som. A assimilação do som ao longo dos anos 1930 levou eventualmente a uma nova situação, a um novo perfil de equilíbrio, quando essas figuras de linguagem podiam ser dispensadas. De fato, no contexto de outros aprimoramentos técnicos – o retorno do arco de carbono sem o seu ruído, a Mitchell blimpada com lentes revestidas, o filme pancromático altamente sensível[6] – tais figuras puderam não apenas ser dispensadas, mas Bazin pôde vislumbrar um cinema no qual haveria um “apagamento” e uma “transparência” da técnica e do vocabulário formal associado a ela. Nessa nova fase, o conteúdo reassumiria sua primazia sobre a forma, e Bazin não nos deixa qualquer dúvida de que esse domínio do conteúdo é adequado e desejável, a supressão, por fim, de uma lamentável, mas necessária, perversão. “A linguagem quer ser obliterada.” A frase de Siertsema[7] resume a visão de cinema de Bazin, um cinema no qual a essência estaria em outro lugar, no evento pró-fílmico, e que, devido ao automatismo do registro fotográfico, poderia apagar a linguagem e torná-la transparente de forma muito mais bem-sucedida do que em qualquer outro meio. A primeira geração de grandes cineastas – os profetas do Antigo Testamento, como Bazin os via – estava predestinada a ser de retóricos, não porque eles estavam comprometidos com o formalismo ou com a arte pela arte, mas porque eles podiam apenas compensar uma ausência, acima de tudo a ausência do som, adicionando (e Bazin deixa muito claro que a linguagem é uma adição ou um suplemento). Ainda assim, mesmo nessa época houve diretores que anteciparam o futuro – Flaherty, Murnau e von Stroheim são os nomes que Bazin cita com mais frequência – ao reduzirem o excedente formal e linguístico tanto quanto as condições permitiam. Nos seus trabalhos, “a ausência da banda sonora [...] tem significação contrária ao silêncio de O gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, Robert Wiene, 1920). [...] Ela é uma frustração, e não o fundamento de uma forma de expressão” (vol. II, p. 38[8]). A abordagem de Bazin do cinema se defrontou com dois difíceis problemas, o da ficção e o da interioridade – problemas que o romance pareceu muito mais próximo de resolver do que o cinema, e o que explica o porquê de Bazin ainda olhar para a literatura como uma arte exemplar. De fato, Bazin viu um caminho para o retrato da interioridade no uso de um discurso literário ou quase literário na banda sonora, como um complemento à pobreza da imagem. Ele também desenvolveu a ideia de que o close-up poderia revelar a interioridade – a velha noção do rosto como uma janela d’alma. É aqui, é claro, que ele revela sua herança católica e personalista mais nitidamente, onde o seu naturalismo habitual dá lugar a um idealismo extremo. É válido notar também que Bazin chancelou a validade de Sangue de um poeta (Le sang d’un poète, Jean Cocteau, 1930-1932) como “um documentário sobre a imaginação” (vol. I, p. 122[9]); ele morreu em 1958, antes da década de O ano passado em Marienbad (L’année dernière à Marienbad, Alain Resnais, 1961) ou de Dog Star Man (Stan Brakhage, 1961-1964), mas não é impossível que ele pudesse vir a estender o conceito de “realidade integral” para incluir a interioridade. Mais curiosa ainda foi a tentativa de Bazin de resolver o problema da ficção. Ele foi levado a aceitar a necessidade de um mínimo de montagem, simplesmente a fim de produzir o efeito de irrealidade, ainda que não o suficiente para ameaçar o realismo básico do filme. Ele fala de uma “franja” ou “margem” de ilusão necessária para permitir um fluxo e refluxo entre o imaginário e o real. Abrir mão da primazia do real seria trair a essência do cinema, mas, por outro lado, muita realidade desvelaria o artifício do qual a ficção deve depender. Numa frase que deve produzir um choque de reconhecimento em qualquer um que tenha lido o artigo de Freud sobre “Fetichismo” (Standard Edition, vol. 21[10]), Bazin aponta que é necessário para a plenitude estética (“plénitude esthétique”) que “nós acreditemos na realidade dos acontecimentos, mesmo sabendo que houve trucagem” (vol. I, p. 124, grifos do próprio Bazin[11]). Enquanto crítico e teórico, Bazin era um conservador. Se eu me detive por um tempo sobre suas visões, é porque as questões sobre as quais ele escreve também confrontam teóricos com hipóteses e conclusões bem diferentes. Estou pensando no problema da relação entre uma ontologia do cinema – ainda que, talvez, uma ontologia materialista – e a linguagem ou a semiótica, o problema da ilusão e da anti-ilusão, o problema histórico do impacto do som. É no primeiro desses que eu gostaria particularmente de concentrar-me: era um problema central para todo o sistema de pensamento de Bazin, enquanto outros assuntos eram vistos por ele como subsidiários ou decorrentes. É também um problema que, seja ele abertamente colocado ou não, subjaz à teoria e à prática de todos os teóricos e cineastas. O grande mérito de Bazin foi tê-lo tornado manifesto e ter concentrado sua atenção e sua característica sutileza de pensamento sobre ele. Primeiro, a ontologia. O ponto imediato que devemos notar é que a preocupação com a ontologia claramente se deslocou do mainstream, representado por Bazin, para a vanguarda. Logo após ter ganhado o prêmio em Knokke[12], em 1968[13], Michael Snow foi questionado pelos editores da Cinim[14], na Inglaterra: “Por que Wavelength?” Ele respondeu:
Várias ideias emergem dessa resposta: a aspiração ao cinema puro, em contraste à reivindicação de Bazin por um cinema “impuro”; o idealismo tenaz, o qual Snow expressa, em outro momento, ao comparar seu filme com drogas psicotrópicas[15]; o característico gosto pós-duchampiano por trocadilhos. Mas é na palavra “Ontologia” que eu quero concentrar a atenção. O tema é retomado por P. Adams Sitney em “Michael Snow’s Cinema”, Michael Snow/A Survey (Art Gallery of Ontario, 1970, p. 83): “Snow descobriu intuitivamente, em quase todos os seus filmes, uma imagem capaz de evocar a noção metafísica de categorias do ser.” Ele segue citando Ortega y Gasset ao referir-se ao ponto crucial do modernismo como sendo “o impulso para dar às obras de arte a integridade de objetos e liberá-las do fardo da mimese humana”. A ironia deve se abater sobre o leitor familiarizado com a obra de Bazin: é a própria mimese que é, agora, associada à custosa intervenção do “humano”, do cultural, enquanto a obra de arte é retornada à objetividade integral da natureza, existindo como puro ente. Essa linha de pensamento, vagamente aludida por Snow, burilada por Sitney, que permanece, em última instância, comprometido com um romantismo muito tradicional, é retomada, em um contexto diferente e elaborada mais coerentemente, por Regina Cornwell, escrevendo sobre “Some Formalist Tendencies in the Current American Avant-garde Film”, na Studio International (vol. 184, n.º 948, 1972, pp. 110-114; ver também Kansas Quarterly, vol. 4, n.º 2, 1972, pp. 60-70). Cornwell também fala sobre ontologia: “Esses trabalhos estão preocupados com a ontologia, com os materiais e os processos do próprio filme.” Mas Cornwell desenvolve sua posição no contexto da história da arte, ao invés no da estética de uma forma geral. Ela cita Greenberg: “Rapidamente percebeu-se que a competência única e própria de cada arte coincidia com tudo o que era único na natureza de seu meio”; e, mais adiante, “a arte realista e naturalista desmantelou o meio, usando a arte para esconder a arte; a arte modernista usou a arte para chamar atenção para a arte” (“Modernist Painting”, Arts Yearbook n.º 4, 1961, p. 103). Seu propósito é, seguindo Greenberg, relacionar a ontologia do filme como uma preocupação com o filme reflexivo, o filme sobre filme, seus próprios processos e estruturas. O filme se torna, assim, uma investigação e demonstração de suas próprias propriedades, uma empreitada didática e epistemológica. Como tal, ele se situa dentro da história do modernismo de Greenberg e pós-Greenberg. Uma posição “modernista” similar é desenvolvida por Annette Michelson. Cito o seu “Paul Sharits and the Critique of Illusionism: An Introduction”, escrito para acompanhar o novo trabalho em projeção de Sharits exibido no Walker Art Center, em Minneapolis (Projected Images, Walker Art Center, 1974, pp. 22-25). Escrevendo sobre “o melhor do trabalho recente e atual” na vanguarda americana, Michelson afirma que “a ontologia do filme é a sua preocupação coletiva”. Ela remonta a origem dessa preocupação a Brakhage:
(Michelson alude aqui a uma distinção feita por Hollis Frampton em “Por uma metahistória do filme: notas triviais e hipóteses”, na edição especial da Artforum de setembro de 1971, editada pela própria Michelson: “Daqui em diante chamaremos nossa arte simplesmente: filme”). Devo acrescentar também que Michelson vai, no parágrafo seguinte, escrever sobre Olitski, retomando, mais uma vez, o paralelo greenberguiano com o seu próprio pensamento sobre o modernismo no filme. De “o que é o cinema?” a “a ontologia do filme”: passamos da ontologia que se baseia na possibilidade, inerente ao processo fotoquímico, de reproduzir os objetos naturais e os eventos sem a intervenção humana à exploração consciente do amplo espectro de possibilidades do processo fotoquímico e de outros processos envolvidos na feitura fílmica, interessados em combater, ou ao menos em estabelecer uma alternativa, ao cinema de reprodução ou representação, mimese ou ilusão. E essa passagem, esse deslocamento da noção de “ontologia” para um terreno muito diferente, se dá na brecha entre modernismo e tradicionalismo que marcou todas as artes durante as primeiras décadas deste século, embora tenha sido na pintura e na música que essa brecha foi mais profunda, em comparação à literatura e ao cinema, de modo que esse deslocamento é também marcado por uma mudança na perspectiva de comparação entre o cinema e as outras artes. Há algumas outras observações que devem ser feitas. Tanto Cornwell quanto Michelson mencionam os “materiais” do próprio filme, a “materialidade” do suporte fílmico. Michelson relaciona esse interesse pela “materialidade” (historicamente determinada pelos modos e relações de produção específicos dentro do setor independente do filme – o necessário interesse do artesão ou do manufator pelos seus materiais e as suas ferramentas, proclamado como um fim em si mesmo em face à competição com a produção capitalista em larga escala) ao modelo fordista, dedicado à produção em massa para o lucro do cinema ilusionista. Assim, a busca por uma ontologia pode ser ela mesma deslocada do campo do idealismo – os modos metafísicos do ser de Sitney são evocados como tão teológicos quanto qualquer coisa o é por Bazin – para o campo do materialismo. De fato, essa possibilidade tem sido retomada de forma polêmica pelo realizador de filmes e teórico Peter Gidal, em sua cruzada pelo “filme estrutural/materialista” contra a recaída de outros no idealismo ilusionista e no romantismo (ver “Definition and Theory of the Current Avant-garde: Materialist/Structuralist Film”, Studio International, vol. 187, n.º 963, 1974, pp. 53-56 e “Theory and Definition of Structural/Materialist Film”, Studio International, vol. 190, n.º 978, novembro-dezembro de 1975, pp. 189-196). A própria Michelson está bem ciente de que, ao falar de “materialidade” dessa forma, está necessariamente adentrando um outro debate. Como ela coloca, há “uma crise maior, internacional em seu escopo, interdisciplinar e transformacional” cujos efeitos não são sentidos apenas na vanguarda americana, mas também na “estética pós-brechtiana do cinema... europeu” (p. 25). A tentativa de se construir um cinema “materialista” tem sido o pilar dos filmes pós-1968 de Jean-Luc Godard e do Grupo Dziga Vertov (Michelson também escreveu extensamente sobre Vertov) e outros como Jean-Marie Straub também estão preocupados com a materialidade do filme: “Os distribuidores de filmes de arte ainda não entenderam que o cinema é uma arte muito material, até mesmo materialista”, disse Straub certa vez[16], falando sobre qualidade de projeção, e seria possível encontrar tantas outras observações do tipo, particularmente no que diz respeito ao tópico do som. Ainda assim, há uma chance de confusão aqui, porque o sentido de “materialismo” usado por Godard, seguindo Brecht, e os defensores de Godard ou de Straub e Huillet é, em certa medida, diferente do sentido de materialismo tal como usado pelo próprio Straub, mais próximo da preocupação com a “materialidade” sobre a qual Michelson escreve. Percebemos essa possibilidade de confusão também nos escritos de Gidal, onde os dois sentidos de materialismo são frequentemente justapostos. Em seus filmes e trabalhos teóricos, ele tomou o cuidado de evitar qualquer sugestão de que o materialismo pudesse ser reduzido simplesmente à representação ou documentação, mapeamento etc., do processo material ou da substância do filme, ou de que a representação pudesse ser eliminada por completo. Seu objetivo tem sido produzir filmes que são materialistas precisamente porque “apresentam” em vez de “representarem” reflexivamente seus próprios processos ou substâncias. O evento pró-fílmico não é o filme em si; o trabalho não é uma ilustração ou o registro de sua própria feitura, mas é construído de tal forma que deve ser percebido, primeiramente, como um produto final trazido à existência por procedimentos (colocação em foco, colocação em quadro etc.) que não têm finalidade extrínseca, os quais não são designados para nenhum outro fim que não seja a produção de um filme como tal. Seu objetivo é construir uma estética “anti-ilusionista” para um meio que é “ilusionista” por natureza (uma antiontologia, por assim dizer) e um materialismo que pode ser interpretado como dialético em vez de mecânico. O conteúdo representacional do trabalho – seu próprio quarto, por exemplo, como em Room Film 1973 (1973) – é colocado como um resíduo necessário, porém, não significante. É aqui, é claro, que o sentido de materialismo de Gidal difere, crucialmente, de qualquer sentido pós-brechtiano de materialismo, o qual deve estar preocupado com o significado do que é representado, ele mesmo localizado no mundo material e na história. Brecht concebeu seu teatro como essencialmente materialista no seu conteúdo político e no seu efeito psicológico, no seu papel em uma luta contra o teatro aristotélico baseado na empatia, projeção e introjeção. Para Godard e o Grupo Dziga Vertov, Brecht foi um grande precursor, cujo trabalho eles leram em um contexto muito específico[17]: a insistência de Althusser em uma leitura materialista de Marx; a crítica de Lacan ao neofreudianismo e à psicologia do ego; a revista Tel Quel e seu desenvolvimento de uma teoria do texto, uma semiótica baseada no caráter material do significante e a prática da escrita como uma subversão dos códigos convencionais, especialmente aqueles da representação, e uma “desestruturação” do sujeito consciente (i.e. autoconsciente) em favor de um sujeito fissurado e dividido por uma articulação com a ordem do inconsciente e com o próprio corpo dele ou dela. Dessa forma, o conceito brechtiano um tanto quanto simples de materialismo no teatro foi traduzido para o cinema em termos de uma releitura e de uma reformulação (reescrita) que presumiram um aparato conceitual mais sofisticado, a ponto de se tornar esotérico. É agora que devemos retornar à observação de Bazin: “Por outro lado, o cinema é uma linguagem.” Seria mesmo? O mesmo período que viu a mudança no conceito de ontologia, discutida acima, viu também o alarmante desenvolvimento de uma semiologia associada, acima de tudo, ao trabalho de Christian Metz (ver, especialmente, Language and Cinema, The Hague, 1973[18]). O principal feito de Metz foi, até o momento, estabelecer que o cinema é um sistema multicanal e multicódigo. Esses códigos podem ter diferentes tipos de condições: há aqueles que, tal como a própria linguagem verbal, apesar de componentes do sistema geral do filme, são, no entanto, não-cinemáticos, na medida em que têm uma existência independente, propriamente sua, fora do cinema, e frequentemente precedendo a invenção deste. Paralelamente a esses, há os códigos especificamente cinemáticos dos movimentos de câmera, edição etc. Os códigos não-cinemáticos estão em operação, devemos notar, no evento pró-fílmico e inscritos no discurso do filme pelo processo de reprodução fotográfica, ele próprio um código icônico ou código de analogia baseado no reconhecimento. (Os códigos não-cinemáticos podem ser modificados ou alterados, em alguma medida, devido à sua inscrição dentro do filme-texto: assim, o código gestual adquire uma forma “dialética” especificamente fílmica, diferente daquela da vida cotidiana ou do teatro.) Podemos, agora, retomar a questão do “modernismo” no filme. Existem aqui duas tendências. Primeiro, a supressão ou exclusão dos códigos não-cinemáticos – aqueles da música, linguagem verbal, gestos, expressão facial, narrativa etc. Isso está de acordo com o objetivo de desenvolver um cinema “puro”, no qual estariam em funcionamento principalmente (ou apenas) os códigos cinemáticos. Segundo, a redução dos próprios códigos a seus substratos materiais (“suporte material”) – óptico, fotoquímico – até a exclusão de qualquer dimensão semântica outra que não a referência de volta ao material do próprio significante, que assim se torna seu único campo de significação. Isso envolve a negação da reprodução como objetivo do processo fotográfico, já que o fato da reprodução introduz necessariamente um significado extrínseco – o evento/objeto fotografado/reproduzido – ou ao menos, se não um significado no estrito senso, um referente ou denotatum. Posto de outro jeito: a luz não é mais vista como um meio pelo qual o evento pró-fílmico é registrado no filme, mas como o próprio evento pró-fílmico e, ao mesmo tempo, como parte do processo material do próprio filme, tal como é transmitida através da lente e, de fato, da tira de celuloide no projetor – para que assim a tira possa ser vista como o meio para a transmissão (e absorção) da luz, o material virgem básico. A discussão mais extensa dessas tendências, tanto em relação ao conceito de ontologia quanto ao da linguagem, encontra-se em Paul Sharits:
Esse retorno de Sharits à questão ontológica de Bazin, a fim de respondê-la num sentido completamente diferente, segue-se, imediatamente, após uma discussão da conquista da “objetividade” na arte não-objetiva, primordialmente através da “intensificação da materialidade”, mas também através de sistemas seriados, característicos dos próprios filmes de Sharits, é claro, também reminiscente aqui das observações de Fried[19] a respeito do serialismo no trabalho dos seus “três pintores americanos” eleitos: Noland, Stella e Olitski (“Introduction”, Three American Painters, Fogg Art Museum, 1965, pp. 3-53). De fato, essa seção do artigo de Sharits termina com uma evocação de Stella como exemplar de “‘autorreferência’ através da tautologia formal”.
Sharits não exclui totalmente a referência icônica – apesar de assim ter feito em alguns trabalhos isolados – porque registrar ou gravar é um “fato físico”, intrínseco ao filme, diferentemente desse aspecto na pintura. De fato, Sharits vê na dupla natureza do filme (o processo de gravar e o processo óptico/material) uma “problemática equivocidade do ‘ser’ do filme”, a qual “é provavelmente a questão ontológica mais básica do cinema”. Assim, ele comenta o problema colocado por Film in Which There Appear Edge Lettering, Sprocket Holes, Dirt Particles, Etc. (George Landow, 1965-1966)[20], em que tanto aparecem imagens/registros de partículas de sujeira quanto partículas de sujeira de verdade são projetadas na tira de filme em questão. Snow levanta um ponto muito semelhante quando ele compara seu interesse em Wavelength (1966-1967) com aquele de Cézanne ao explorar a tensão entre a superfície bidimensional “pictórica” e o “espaço” tridimensional, ou o efeito do espaço produzido na superfície (“Letter from Michael Snow to P. Adams Sitney and Jonas Mekas”, op. cit., p. 5). Este também é um marco na visão Greenberg-Fried da história da arte.
Quando Sharits aborda a linguagem e a linguística (ele sugere um novo campo da “cinemática”, mais ou menos equivalente àquilo que é conhecido, hoje, como semiologia ou semiótica do filme) sua principal preocupação é buscar por unidades abaixo do nível do plano, correspondendo, portanto, mais a fonemas do que a morfemas. Seu interesse é mais na fonologia do que na sintaxe: a divisão no fluxo de ar, a contínua “onda sonora emanando da boca de alguém que fala” em unidades discretas ou módulos. É por isso que ele concentra sua atenção mais no quadro do que no plano, o qual é, como ele analisa, uma unidade física, tanto quanto linguística, distinta. O problema que Sharits está tocando aqui é o da “dupla articulação”. A linguagem verbal é articulada em dois níveis, sendo que um deles – o fonológico – subjaz ao outro. Os semiólogos se dividem sobre a questão do número de articulações a serem atribuídas ao filme e também sobre como – e se – elas formam uma hierarquia. Sharits desenvolve a ideia de que o procedimento de investigação mais proveitoso reside em fazer filmes que sejam, de fato, experimentais no sentido estrito da palavra. Tais filmes, feitos por “pesquisadores”, produziriam informações sobre sua própria estrutura “linguística” (“cinemática”). Assim, o filme autorreferente é uma ferramenta de investigação dos problemas da linguagem do filme e do ser-filme unidos no nível da unidade mínima.
Aqui, é difícil de se notar como a linguagem ou a semiótica se diferenciam da ontologia, exceto naquele sentido de como o som vocal pode ser diferenciado da linguagem. O som vocal – a produção de ondas sonoras através da ação de várias partes do corpo humano (órgãos vocais ou de fala) numa corrente de ar fluindo desde os pulmões – é o substrato material da linguagem verbal sem o qual a linguagem não poderia existir (talvez se devesse acrescentar: ou sem nenhum outro substrato material equivalente, tal como na linguagem americana de sinais ou na escrita, as quais se baseiam nos movimentos corpóreos, num fluxo de tinta etc.). Existem sons que claramente não fazem parte da linguagem verbal – grunhidos, soluços, tossidas, gemidos – mas que podem, ainda assim, ser expressivos e pertencer ao campo da semiologia como um fenômeno paralinguístico. Eles também formam uma dimensão daquilo que Julia Kristeva chama de chora semiótica em La révolution du langage poétique (Paris, 1974), os meios de expressão pré-linguísticos ou pré-simbólicos que não são dependentes do ato tético pelo qual um tema de discurso é criado.
O que interessa a Sharits é a forma pela qual um protocolo pode ser criado a fim de estruturar esse substrato material – um sistema serial ou um cálculo, talvez um sistema aleatório – de forma que a estruturação não seja mais dependente de um nível superior de organização. Assim, no método cut-up de Burroughs, letras não são mais organizadas em palavras, palavras não são mais organizadas em frases[21]. De forma similar, os frames não precisam mais ser organizados em planos ou os planos em sequências. Tanto as sentenças quanto as sequências são organizadas, na escrita ou na realização convencional de filmes, de modo a convir a um determinado significado. Em outras palavras, a necessidade de referência e denotação governa a estruturação de todos os diversos níveis dali para baixo. Essa necessidade de capturar uma semelhança do mundo pode ser dispensada no cinema, com a consequente introdução de novos protocolos estruturais. Isso não deve acarretar na falta de sentido, porque um princípio de “autorreferencialidade” é introduzido, sendo o filme sobre si mesmo e sobre a sua própria estrutura. O filme, por causa da sua “dualidade de ser”, pode ser tanto um objeto autônomo quanto também a sua própria representação – assim, ontologia e semiologia podem coincidir (Sharits, op. cit., p. 32).
Na verdade, Sharits transita entre dois conceitos de representação: mimetismo de primeira ordem = referência icônica convencional; mimetismo de segunda ordem = procedimento de mapeamento múltiplo, como no exemplo de Landow mencionado acima, ou também um método de chamar a atenção para fenômenos cinemáticos que normalmente devem ser ignorados. Nesse sentido, ele cita Brakhage pelo seu uso de “‘erros’ (borrões, emendas, flares, flash frames, linhas do frame etc.)”. Isso funciona, na verdade, não tanto como um efeito de mapeamento múltiplo, mas como aquilo que os linguistas, na terminologia da Escola de Praga (ver: Paul L. Garvin, org.: A Prague School Reader on Esthetics, Literary Structure, and Style, Georgetown, 1964), chamaram de “realce”. O filme de Landow usa a própria tira do filme, adicionada ao processo de projeção e alterada por ele (acúmulo de partículas de sujeira), como o objeto/evento pró-fílmico para um outro filme. Brakhage está meramente retendo – no caso dos borrões e dos flash frames – elementos do filme que normalmente seriam descartados. Ele nos torna conscientes, assim, do substrato material ao não remover instâncias que não possuem referência icônica e que, portanto, seriam suprimidas normalmente: na verdade, ele as traz deliberadamente ao primeiro plano.
Cornwell faz uma observação muito similar quando, ao escrever sobre o uso do grão por Gehr[22] (cf. assim como em Axiomatic Granularity, Paul Sharits, 1972-1973), ela aponta para o fato de que, normalmente, tomamos consciência do grão apenas como um pequeno obstáculo a ser ignorado, se possível – caso contrário trata-se de uma distração – como quando um filme rodado em 16 mm. é transferido para 35 mm. Ela dá, como outro exemplo, o uso dos riscos em S:TREAM:S:S:ECTION:S:ECTION:S:S:ECTIONED (Paul Sharits, 1968-1971) em contraste com a necessidade de, se possível, ignorar-se os riscos durante a projeção de um filme convencional (“Some Formalist Tendencies in the Current American Avant-garde Film”, op. cit., p. 111). O próprio Sharits é explícito sobre as possibilidades estruturais daquilo que é considerado normalmente como falha ou erro, ações equivocadas. Esses são os pontos nos quais aquilo que não era propositado revela o que é possível propositar. É claro, onde Sharits vê as falhas como simples interrupções de um sistema de nível menor em um de nível maior, elas poderiam também ser interpretadas como instâncias de deslocamento simbólico.
O próprio Brakhage é bem claro a respeito de pelo menos um dos propósitos desse tipo de realce: “A emenda, aquela barra preta separando dois tipos de branco, operando esteticamente como um tipo de pontapé ou um chacoalhão que retira o espectador do invólucro escapista, ou como um lembrete (como são os flares, os riscos etc. nos meus filmes) do artifício, da arte” (“A Moving Picture Giving and Taking Book”, Film Culture n.º 41, verão de 1966, pp. 47-48). Essa passagem, com o seu eco surpreendentemente brechtiano, formulada, porém, numa retórica muito diferente da de Brecht, lembra-nos do papel desmistificador que o realce pode desempenhar, quebrando processos de envolvimento imaginário. Mas ao mesmo tempo, deve servir também como um alerta. No que diz respeito a praticamente qualquer outra coisa, Brakhage é claramente o polo oposto a Brecht. Sua concepção do artista, sua visão de mundo são de um idealismo não mitigado. Para Brecht, é claro, o ponto do efeito de estranhamento[23] não era simplesmente quebrar o envolvimento e a empatia do espectador, de forma a chamar a atenção para o artifício da arte (i.e. um modelo centrado na arte), mas uma forma de demonstrar o funcionamento da sociedade, uma realidade obscurecida por normas habituais de percepção, pelos modos habituais de identificação com “problemas humanos”. De fato, essa realidade também não era acessível ao poder da visão interna, ela tinha de ser abordada e exposta cientificamente. Para Brecht, o conhecimento sempre tinha precedência sobre a imaginação.
Não havia, então, para Brecht, a questão do abandono de todo o âmbito de referências fora da peça (ou filme – apesar de apenas Kuhle Wampe ou: quem é o dono do mundo? [Kuhle Wampe oder: Wem gehört die Welt?, Slatan Dudow, 1932], um trabalho marginal e colaborativo, existir para indicar o modo como Brecht poderia ter pensado a questão em termos de cinema). Ele não igualava o anti-ilusionismo com a supressão de qualquer significado que não um significado tautológico. Tampouco o fazem Godard/Grupo Dziga Vertov ou Straub-Huillet. Se há algo em comum entre o filme “estrutural” ou “modernista” e a “estética pós-brechtiana”, sobre a qual Michelson escreve, isso não consiste nem no movimento em direção à “objetividade” e autorreferencialidade exclusiva nem no simples ato de realçar o substrato material. Essa “estética pós-brechtiana” não é postulada na busca por uma ontologia, ainda que uma ontologia materialista. Ela tem que ser abordada pelo viés da linguagem, aqui dialética.
A objeção de Brecht ao teatro tradicional burguês era de que ele fornecia um substituto para a vida: uma experiência simulada, no âmbito do imaginário, da vida de uma outra pessoa ou outras pessoas. No lugar disso, ele desejava, na verdade, uma representação – uma imagem, um diagrama, uma demonstração: ele utiliza todas essas palavras[24] – na qual o espectador permanecesse externo e através da qual ele/ela adquirisse conhecimento sobre a (e não ganhasse experiência da) sociedade na qual ele/ela mesmo/mesma vivesse (não a vida de outro/outros). O anti-ilusionismo de Brecht não deve ser visto, então, como anti-representacional (Brecht se considerava um “realista”), mas como anti-substitucionismo, por assim dizer. Uma representação não seria, contudo, uma mera afinidade ou semelhança à aparência de seu objeto/referente; pelo contrário, ela representaria a sua essência, precisamente aquilo que não apareceu à primeira vista. Dessa forma, um intervalo de espaço tinha de ser aberto dentro do âmbito da percepção – um intervalo cuja importância Brecht tentou salientar com o seu conceito de “distanciamento”.
É aqui que o conceito de “texto” deve ser introduzido – um conceito desenvolvido no mesmo ambiente intelectual que, como mencionado, determinou a leitura de Brecht por Godard e outros[25]. Brecht queria encontrar um conceito de “representação” que desse conta de uma passagem da percepção/reconhecimento ao conhecimento/compreensão, do imaginário ao simbólico: um teatro ainda de representação, até mesmo de mimese, mas também um teatro de ideias. Mais ainda, uma das lições a ser aprendida desse teatro didático, desse teatro de ideias, argumentos, julgamentos, era precisamente a de que ideias não podem ser separadas de seus substratos materiais, de que elas têm determinações materiais, de que “o ser social determina o pensamento” tal como a fórmula clássica (derivada do prefácio de Marx a Uma contribuição para a crítica da economia) estabelece. Brecht era, é claro, um materialista militante, no sentido político (leninista).
Ideias, portanto linguagem: é apenas com um sistema simbólico (em vez de icônico) que os conceitos podem ser desenvolvidos, que pode haver contradição e, assim, argumento. Contudo, ao mesmo tempo, ideias que não eram simplesmente concebidas ou comunicadas através de significantes que poderiam ser ignorados, que poderiam ser efetivamente desmaterializados pelo processo soberano do pensamento. Um trabalho que reconhece, portanto, a primazia do significante no processo de significação. Isso não envolveria a redução do significante puramente ao substrato material, uma semiótica da pura apresentação, nem a mera interrupção de um fluxo, de um continuum de significados pela quebra desmistificadora, um lembrete ou cesura de um significante percebido como uma interrupção, uma descontinuidade dentro de uma sobrepujante continuidade.
Um texto é estruturado, primeiramente, no nível do significante. É a ordenação dos significantes que determina a produção de significados. Normalmente, momentos nos quais o significante interrompe o discurso são percebidos como lapsos, erros, equívocos. Devemos ser claros, contudo, que estamos falando agora não sobre “ruído”, interrupções ou destruições do processo de significação em si, mas de momentos nos quais um significante equivocado – uma metátese, o deslocamento de um fonema – muda o sentido, altera ou nega o fluxo de significados, diverge, subverte, converte. Enquanto Sharits está interessado na reestruturação do ruído, a fim de promover informações autorreferentes de segunda ordem, estamos falando aqui sobre a produção de uma nova – não intencionada, não antecipada, inconscientemente derivada – significação, através de operações levadas a cabo pelos significantes. Os significantes de primeira ordem permanecem, mas eles não são mais o produto soberano do ato intencional de um sujeito, de um ego transcendental, o gerador de pensamento que encontra na linguagem uma corporificação, como uma necessidade instrumental para a comunicação e troca de ideias entre sujeitos equivalentes, alternando-se como fonte e receptor.
Já existe uma forma de discurso que corresponde a essa concepção do texto: a poesia – ao menos em certo sentido do termo. A poesia tem regras que governam a ordenação dos significantes independentemente do significado: métrica, rima etc. Tradicionalmente, elas são vistas como adornos. Frequentemente, pode ser esse o caso. Outra abordagem – a dos formalistas russos, especificamente Chklovski e Jakobson – tem sido a de se enxergá-las como meios pelos quais a linguagem é desautomatizada, seus materiais e princípios de construção (dispositivos) realçados, renovando, assim, a nossa percepção e dando ao mundo – que é sempre, em certo sentido, o mundo da linguagem – uma nova densidade e frescor. Posteriormente, Jakobson desenvolveu a mesma linha de pensamento, postulando a função poética da linguagem como autorreferente à própria mensagem[26]. Aqui, é claro, estamos em território familiar e não nos deveria surpreender que tanto Sitney (“A ideia de morfologia”, Film Culture n.º 53-54-55, primavera de 1972, p. 5) quanto Cornwell (“Some Formalist Tendencies in the Current American Avant-garde Film”, op. cit., p. 111) citam Chklovski, transferindo suas observações acerca da literatura a fim de aplicá-las ao filme.
Todavia, o conceito de texto que eu estou desenvolvendo aqui tem uma implicação diferente. Os dispositivos formais da poesia (não puramente formais, é claro, porque envolvem o som ou material gráfico – a substância da expressão tanto quanto a sua forma, como diria Hjelmslev[27]) podem, de fato, produzir sentido. Esses dispositivos e, de fato, aquilo que é frequentemente abordado como estilo são mais do que adornos suplementares ou mesmo dispositivos de distanciamento, autorreferenciais ou tautológicos. O estilo é um produtor de sentido – esse é o axioma fundamental de uma estética materialista. O problema é desenvolver a eficácia do estilo para além daquela idiossincrasia espontânea ou da mera maneira de se escrever, pintar ou filmar, fundamentalmente subordinada à soberania do significado. Estou falando do estilo no sentido em que se deveria falar do estilo, a ordenação dos significantes, em operação na escrita de Tender Buttons, de Gertrude Stein, ou de Finnegans Wake, de James Joyce. (Se eu estivesse escrevendo em francês, usaria o termo “écriture”, seguindo Roland Barthes[28]).
Esse conceito de texto não exclui – pelo contrário, é construído sobre – a necessidade de se produzir, além dos significados, sentido. Ele vê o sentido, contudo, como um problema material e formal, o produto de determinações materiais e formais em vez da intenção de um ego cogitans, um sujeito pensante e consciente (i.e. autoconsciente). De fato, o próprio conceito de tal sujeito é dissolvido pela produção textual nesse sentido, tal como Kristeva e outros têm repetidamente argumentado. Isso não significa, é claro, que o sujeito consciente da ideologia é simplesmente substituído por um automatismo ou por um processo aleatório. Pelo contrário, ele transforma o pensador, o ser que imagina ou o observador em um agente que está trabalhando com a linguagem e a partir dela, de forma a fazer algo que não pode ser preconcebido com precisão, que deve permanecer problemático e, em certo sentido, inacabado, interminável. Essa manufatura não deve suprimir seu substrato material, a atividade sensível que é o seu processo de produção, mas tampouco essa atividade sensível é o seu próprio horizonte.
Desse ponto de vista, a tradição “modernista” não-objetiva, em pintura, não pode ser vista como a única alternativa ao realismo burguês e ao representacionalismo, os quais ela expulsou. Michelson apontou corretamente que tanto Godard quanto a vanguarda americana de realizadores desenvolveram uma “crítica do ilusionismo cinemático” e, é claro, essas duas críticas têm muito em comum, mas elas também diferem em certos aspectos cruciais. Ilusionismo não deve ser confundido com significação. A revolução decisiva da arte do século XX pode ser vista na transformação do conceito e do uso do signo mais do que na rejeição de qualquer significação, excetuando-se a tautologia, o círculo fechado de presença e autorreferência. Anti-ilusionismo não implica sequer necessariamente anti-representacionalismo, o qual não pode ser interpretado como ilusionista quando não está mais a serviço de uma criação alternativa (a produção de um substituto imaginário do mundo real). Nesse sentido, os “procedimentos de mapeamento múltiplo” descritos por Sharits são – tal como o plágio de Brecht ou a “intertextualidade” de Kristeva – importantes procedimentos anti-ilusionistas que podem produzir a transição do imaginário para o simbólico nos espaços e sobreposições de um palimpsesto. Desse modo, o ilusório imediatismo da “leitura” é destruído e substituído por uma decifração produtiva, a qual deve ir de nível a nível, dentro de um volume – em vez de seguir uma superfície que apresenta a si mesma como alteridade de algo profundo, um sentido que jaz, em vez de no texto material, em outro lugar, na transação/troca ideal entre consciências.
Dizer, no entanto, que as duas correntes anti-ilusionistas aqui discutidas são em vários aspectos divergentes, diferentes uma da outra, não significa que elas não possam ser combinadas. As operações no significante visadas por Godard parecem limitadas no contexto do cinema da vanguarda americana – há uma ausência das figuras as quais Sitney descreve em “Structural Film” (Film Culture Reader, Nova York, 1970, p. 327) como típicas do filme “estrutural”: frame fixo, flicker, impressão em looping, dupla exposição. (Apesar de Godard usar orquestradas panorâmicas que vão e vêm, planos únicos das mais diversas durações, riscos no filme etc.) Por outro lado, a vanguarda americana tendeu a evitar os experimentos de Godard no uso da linguagem verbal na trilha sonora, pelo menos até recentemente, e, é claro, não há nem de longe a mesma preocupação com a significação e seu papel ideológico ou contra-ideológico. A empreitada mais radical da vanguarda americana tem sido, como vimos, a exploração da “voz” em vez da “linguagem”, enquanto que o objetivo de Godard tem sido o de construir os elementos de uma nova linguagem para expressar um novo conteúdo. Ainda que diferentes, claramente esses dois objetivos podem ser relacionados[29].
Finalmente, eu gostaria de retornar ao meu ponto de partida – Bazin. Bazin via o sentido como algo transferido ao cinema pelo material, por isso os processos automáticos de registro fotográfico. Fundamentalmente, o sentido residiria no evento pró-fílmico e a importância estética do filme seria a de que ele poderia generalizar através dos processos de impressão e tornar permanentes, tal como uma múmia, eventos e significações que de outra forma seriam locais e perdidos. Com isso, sua ontologia transferiu o fardo do sentido para fora do cinema, para os códigos não-cinemáticos. A “linguagem” do filme virtualmente se esmaeceria na medida em que o próprio cinema se apossasse da realidade integral, a qual era o seu destino místico. Linguagem e ontologia estavam em essência numa espécie de relação inversa.
A corrente modernista buscou, em completo contraste, expulsar os códigos não-cinemáticos, deixando o resíduo chamado “filme”. Para Bazin, isso implicaria um completo abandono do sentido, com exceção do sentido secundário adicionado pelo retórico, agora não mais um fingidor, mas um usurpador. Ainda assim, a ontologia é, como vimos, reintroduzida – pela ideia de objetividade do próprio filme, o qual é também o seu próprio significado, através do processo circular de autorreflexão, autoexame, autoinvestigação. O filme agora se volta não em direção à “natureza” do evento pró-fílmico, mas em direção à “natureza” de seu próprio substrato material que pode, de fato, tornar-se o seu próprio evento pró-fílmico através dos procedimentos de mapeamento múltiplo, vistos como ontologicamente inerentes ao meio. Novamente, qualquer significação heterônoma é proscrita.
O anti-ilusionismo não precisa, contudo, desembocar necessariamente nesse tipo de tautologia, uma involução do próprio projeto ilusionista. Uma inversão das relações de dominação entre códigos não-cinemáticos e cinemáticos, entre significado e significante, pode levar à produção do filme-texto, em vez do filme-representação ou do filme-objeto. A realização de filmes pode ser um projeto de sentido com horizontes para além de si mesma, no campo geral da ideologia. Ao mesmo tempo, ela pode evitar as armadilhas do ilusionismo, de simplesmente ser um substituto do mundo, parasitária da ideologia, a qual ela reproduz como realidade. O imaginário tem que ser des-realizado; o material tem que ser semiotizado. Começamos a ver agora como o problema do materialismo é inseparável do problema da significação, que ele começa com o problema do material na/da significação, no modo como esse material desempenha o papel duplo de substrato e de significante.
Os eventos cataclísmicos que mudaram o curso das artes nas primeiras décadas deste século foram vistos por muitos como uma radical e irreversível ruptura. Com o passar do tempo, muitos vieram a enxergar o modernismo como uma simples metamorfose de um tipo de arte fatalmente comprometida pela ideologia burguesa, reproduzida e gerada dentro das condições postas pelo mercado ou pelo estado, cada vez mais atuantes nas artes. Ainda assim, sente-se que algo estava certamente em jogo naquela época heroica: que as conquistas dos cubistas, dos futuristas, da destruição do sistema clássico de perspectiva e harmonia, a primazia da narrativa e do “realismo” eram mais do que um agrupamento estratégico. Seria, de fato, paradoxal se o filme – uma forma ainda em sua infância quando da ocorrência dessas mudanças decisivas – pudesse reestabelecer o sentido de direção que as outras artes parecem ter, com frequência, perdido.
Notas:
[1] Este artigo foi apresentado, originalmente, num simpósio sobre cinema organizado pela revista Diacritics, na Universidade de Cornell, em abril de 1975.
[2] O autor se refere aos volumes organizados e traduzidos por Hugh Gray: What is Cinema? Vol. I. Berkeley: University of California Press, 1968; What is Cinema? Vol. II. Berkeley: University of California Press, 1971. Em português, foram publicadas duas edições, também de coletâneas parciais, dos textos de Bazin: O cinema: ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991; O que é o cinema?. São Paulo: Cosac Naify, 2014. Ambas as edições foram traduzidas por Eloisa de Araújo Ribeiro. [N.T.]
[3] Tomaremos como referência as traduções para o português a partir da última edição brasileira da coletânea. [N.T.]
[4] p. 34, na última tradução brasileira. [N.T.]
[5] p. 103, na última tradução brasileira. [N.T.]
[6] Ver Patrick Ogle: “Technological and Aesthetic Influences upon the Development of Deep Focus Cinematography in the United States”, Screen, vol. 13, n.º 1, primavera de 1972, pp. 45-72.
[7] Berthe Siertsema (1917-2001), antropóloga e linguista holandesa. [N.T.]
[8] p. 150, na última tradução brasileira. [N.T.]
[9] p. 88, na última tradução brasileira. [N.T.]
[10] Sigmund Freud: “Fetichismo”, Obras completas de Sigmund Freud – vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996. [N.T.]
[11] p. 90, na última tradução brasileira. [N.T.]
[12] O Festival Internacional do Cinema Experimental de Knokke-le-Zoute – conhecido também como EXPRMNTL – possuiu apenas cinco edições, entre os anos de 1949 e 1975. Sediado na Bélgica e sob a direção de Jacques Ledoux, o evento teve importância capital na divulgação e discussão do cinema experimental e de vanguarda. [N.T.]
[13] Aqui o autor parece se referir à quarta edição, iniciada em dezembro de 1967. Isso porque o festival começava nos últimos dias do ano, adentrando e tendo seu encerramento nos primeiros dias de janeiro do ano seguinte. [N.T.]
[14] Primeira revista da London Film-makers’ Co-op (cooperativa de produção dos cineastas independentes). Teve apenas três edições publicadas, entre 1967 e 1969, tendo sido editada por Philip Crick e Simon Hartog. [N.T.]
[15] “Os meus filmes são (para mim) tentativas de sugerir a mente em determinado estado ou certos estados de consciência. Eles são equivalentes às drogas nesse aspecto.” Michael Snow, “Letter from Michael Snow to P. Adams Sitney and Jonas Mekas”, Film Culture n.º 46, outono de 1967, pp. 4-5.
[16] Discussão entre Jean-Marie Straub, Glauber Rocha, Miklós Jancsó e Pierre Clémenti, organizada por Simon Hartog e filmada em Roma, fevereiro de 1970. Gravação publicada sob o título “The Industry and European New Cinema”, Cinemantics n.º 3, julho de 1970.
[17] Para as ideias de Godard durante o período crucial do final dos anos 1960, ver Kinopraxis n.º 0 (sic), publicada por Jack Flash, “que pode ser contatado em Av. Telegraph, 2533, Berkeley”, “sob uma rubrica datada de maio de 68”, que na verdade é de 1970. Esse folheto contém uma coletânea das entrevistas dadas por Godard.
[18] No Brasil: Christian Metz, Linguagem e cinema. São Paulo: Perspectiva, 1971. [N.T.]
[19] Michael Fried (1939-), crítico e historiador da arte norte-americano. [N.T.]
[20] Film in Which There Appear Edge Lettering, Sprocket Holes, Dirt Particles, Etc., 1965-1966, curta-metragem experimental dirigido por George Landow sob o pseudônimo de Owen Land. [N.T.]
[21] Ver Brion Gysin: Brion Gysin Let the Mice in, Something Else Press, West Glover Vt., 1973; e William S. Burroughs e Brion Gysin: The Exterminator, The Auerhahn Press, 1960.
[22] Ernie Gehr (1941-), realizador norte-americano. [N.T.]
[23] O autor emprega o termo no original, em alemão, numa expressão mista com o inglês que traduzida da forma como é cunhada por ele, mas preservando o conceito-chave no original, ficaria algo como “efeito-Verfremdung”. Optamos por seguir a tradução direta do alemão, tal como empregada pelos principais tradutores de Brecht no Brasil, para esse conceito. [N.T.]
[24] Por exemplo, Brecht fala sobre o teatro épico como “imagem do mundo”, nas notas para Mahagonny, e de peças como “representações”, no Pequeno Organon para o teatro.
[25] O conceito de “texto” é desenvolvido, especialmente, nos escritos do grupo Tel Quel. Ver, por exemplo, Philippe Sollers: “Niveaux sémantiques d’um texte moderne” (“Níveis semânticos de um texto moderno”), em Théorie d’ensemble, Paris, 1968, pp. 317-325.
[26] Ver: Viktor Chklovski, “Art as technique”, em Lemon e Reis (org.): Russian Formalist Criticism, Lincoln, 1965, pp. 5-57; e Roman Jakobson: “Concluding Statement: Linguistics and Poetics”, em Sebeok (org.): Style in Language, Cambridge, 1960, pp. 350-377.
[27] Louis Hjelmslev (1899-1965), linguista dinamarquês. [N.T.]
[28] Roland Barthes: Le degré zéro de l’écriture, Paris, 1953, traduzido como Writing Degree Zero, Londres, 1967 (no Brasil, O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2000). Barthes faz uma distinção entre “estilo” e “écriture” ou “escrita”, encarando o estilo como uma força cega em comparação à escrita marcada pela intencionalidade.
[29] Dentre os diversos sinais de uma possível convergência, eu gostaria de mencionar os escritos de Annette Michelson – o interesse, por exemplo, em Vertov e Eisenstein, o qual ela compartilha com Godard e com os teóricos europeus – e a posição tomada pela revista Afterimage. A relação do filme de vanguarda com a política é discutida por Chuck Kleinhans em “Reading and thinking about the avant-garde”, Jump Cut n.º 6, março-abril de 1975, pp. 21-25 [disponível em http://www.ejumpcut.org/archive/onlinessays/JC06folder/AvantGdeReading.html]. Para um tratamento mais detalhado, ver meu artigo “As duas vanguardas”, em Studio International, vol. 190, n.º 978, novembro-dezembro de 1975, pp. 171-175.
(Screen, vol. 17, n.º 1, 1.º de março de 1976, pp. 7–25. Traduzido por Guilherme Savioli) |
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