AS DUAS VANGUARDAS: EUROPA E AMÉRICA
Autobiografia: há cinco anos (1975) eu escrevi um artigo sobre “As duas vanguardas” para a Studio International. Meu principal propósito era delinear, um pouco esquematicamente (ainda que com as prudentes ressalvas usuais), dois tipos distintos de vanguardas cinematográficas. Eu não vou citar ou resumir o artigo, mas, em vez disso, dar algo mais próximo de um subtexto – a polêmica correnteza a percorrer debaixo da superfície. Eu queria juntar dois polos de atração: Nova York e Paris (talvez uma ambição tipicamente britânica). Nova York era o modernismo. Em termos de cinema: o Novo Cinema Americano, o “cinema estrutural” de Sitney e seus homólogos europeus e os análogos associados ao movimento da Co-op[1]. Paris era maio de 1968 e a teoria. Em termos de cinema: Godard, Straub-Huillet, Jancsó, Ōshima – o que eu batizei de “segunda” vanguarda, o grupo de cineastas criticamente impulsionados pela Cahiers (há muito, um ponto de referência para mim).
Parte do meu propósito, talvez eu devesse acrescentar, era ir além da controvérsia, da qual eu estava bem ciente, entre Sitney e Le Grice acerca da proeminência entre os cineastas “estruturais” americanos e europeus. Naturalmente, eu estava ultrajado por Sitney se referir à Europa como “a periferia” e por relegar quase que ao total esquecimento os cineastas europeus pós-1943. Eu achava que Le Grice, os Heins[2] e outros estavam certos em reafirmar a autonomia e a diversidade do cinema de vanguarda europeu. No entanto, ainda me parecia que Nova York era o centro ideológico para esse tipo de vanguarda – apenas porque Nova York havia se tornado o centro do mundo da arte e essa vanguarda estava intimamente ligada, em suas últimas fases, às artes visuais. Os termos nos quais essa vanguarda era discutida eram crucialmente dependentes do modernismo greenbergiano e em suas transposições ao minimalismo, conceitualismo, etc. (mais sobre isso depois). Eu queria ampliar a discussão a fim de incluir ambas as vanguardas – e ao mesmo tempo “enterrar” a polarização Europa-América ao deslocá-la para um subtexto.
Eu encerrava o artigo expressando a esperança de que as duas vanguardas pudessem convergir. Havia três razões para se desejar tal convergência (aparentemente de cunho histórico, o artigo era, na realidade, extremamente programático em sua estratégia). Primeiro, eu estava estabelecendo os fundamentos teóricos que eu julgava necessários para a Associação dos Cineastas Independentes[3], recentemente estabelecida na Grã-Bretanha. Meu objetivo (não apenas o meu, é claro) era evitar tanto o modelo americano – completa falta de contato entre os cineastas políticos e os de vanguarda – quanto o alemão – cooperação inicial, seguida de separações destrutivas. O desenho foi feito de forma que a Associação fosse capaz de unir cineastas militantes (Newsreel, Cinema Action) e formalistas (Co-op). Para tanto, o velho slogan “para novas ideias, novas formas” precisava ser revitalizado e amplificado. Segundo, eu ansiava pelo nosso (meu e de Laura Mulvey) próximo filme, Riddles of the Sphinx (1977), o qual havíamos concebido como uma tentativa de combinar as duas vanguardas, uma possibilidade que vimos sinalizada pelo trabalho de Yvonne Rainer nos Estados Unidos e de Chantal Akerman na Europa. Terceiro, eu queria levar a revista Screen – com a qual eu estava associado – para longe de um “parisianismo” unívoco e em direção a uma instância mais cosmopolita. (Um “parisianismo” pelo qual eu era parcialmente responsável por ter introduzido – apesar de eu ter apoiado Peirce ao invés de Saussure desde o início, algo pelo qual me senti extremamente grato à medida que lia mais linguística pós-Chomsky).
O objetivo então era combinar o modernismo de Nova York com a teoria parisiense (de 1968). As coisas parecem bem diferentes hoje em dia. O modernismo está em desarranjo e 1968 levou a imprevistas desaprovações e reinterpretações: o refluxo começou. Mesmo a Cahiers regressou à sua cinefilia pré-1968, classificando o período intermediário como um tempo de aberração e excesso. A forma como eu via as coisas cinco anos atrás começou a soar ingênua – ou ao menos malfadada. Contudo, eu penso que o impulso inicial era sólido. Aquilo que precisa de um tratamento muito mais denso e cuidadoso é a exata natureza do modernismo e da “nova teoria francesa” – e consequentemente das vanguardas associadas aos mesmos.
Eu agora vejo a história da vanguarda nas artes visuais – primeiramente pintura, secundariamente cinema – de uma forma muito diferente. Penso que aqui também deveríamos distinguir duas tendências distintas. Uma (a qual eu vejo como “modernismo”) é preocupada com a reflexividade (o filme enquanto filme, filme sobre filme) e com a redução semiótica (evidenciando uma categoria do significante ou, de forma mais radical, do substrato material; um movimento em direção à supressão ou suspensão do significado). A outra (a qual eu vejo como “vanguarda”) não é purista, rejeita pressupostos ontológicos ou investigações e está preocupada com a expansão semiótica (múltiplas mídias; montagem de diferentes códigos, signos e registros semióticos; heterogeneidade de significantes e significados). Foi o modernismo que se tornou dominante nos Estados Unidos do pós-guerra, após a supressão da vanguarda (especialmente na Alemanha e na União Soviética) antes mesmo do final dos anos 1930. Ainda assim, nos Estados Unidos, ambas as tendências estavam presentes: basta olharmos a polêmica Greenberg-Fried contra Duchamp e a “teatralidade”, ou a polêmica Sitney-Maciunas a respeito do cinema “estrutural”.
Na verdade, está claro que o movimento Fluxus teve um papel muito importante (ainda pouco reconhecido) na história da arte do pós-guerra. Ele serviu, por exemplo, como veículo de transmissão para as ideias de Cage e de seu exemplo para todas as outras artes. Se olharmos para o cinema “estrutural” americano e mais atentamente para a sua própria história, veremos que tanto Landow quanto Sharits estavam diretamente envolvidos com o Fluxus e que Tony Conrad também trabalhou próximo de La Monte Young. A influência do Fluxus foi impulsionada, penso eu, pelo fato do mesmo combinar um forte elemento de redução semiótica (significados absurdos ou mínimos, “literalidade”) com um forte elemento de expansão semiótica (múltiplas mídias, movimento para fora dos museus de arte e em direção ao espaço público, a ausência de qualquer purismo da pintura).
O Fluxus também foi capaz de criar raízes tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. O solo estava preparado pelas mesmas tendências que emergiram como DIAS[4] em Londres e como “material-aktion” na Áustria e na Alemanha, ambas possuindo estreita relação com o início dos movimentos de cooperativa e de “cinema estrutural” em seus respectivos países. Evidentemente, o Fluxus era um movimento, tal como o dadaísmo “clássico”, que não poderia nem se firmar nem se consolidar. Mesmo assim, nos atenta para a possibilidade de que o Novo Cinema Americano não estava necessariamente preocupado com as “metáforas da mente” (Sitney) ou com o “filme enquanto filme” (Le Grice) a não ser enquanto um aspecto de seu desenvolvimento – um desenvolvimento que não era, acima de tudo, simplesmente um ponto de chegada no decorrer de uma linha de progressiva purificação ontológica.
Caso contrário, na verdade, mal se poderia esperar extrair algum sentido de Landow ou até mesmo de Snow. Está tudo muito bem delineado na forma como Film in Which...[5] evidencia o substrato material das perfurações do fotograma, etc. (ainda que a poeira nos remeta a Duchamp), mas soa inadequado ter de lidar com Wide Angle Saxon (George Landow, 1974-1975), sem contar o filme mais recente de Landow, no qual ele parte da piada do casamenteiro judeu em Os chistes e sua relação com o inconsciente, de Freud. De forma similar, está claro que os principais intérpretes do cinema “estrutural” ficaram muito mais contentes com a trilogia Wavelength (Michael Snow, 1966-1967), Back and Forth (Michael Snow, 1968-1969), La région centrale (Michael Snow, 1971), do que com Rameau’s Nephew (Michael Snow, 1971-1974), o qual só faz sentido, mais uma vez, dentro de uma tradição duchampiana e não greenbergiana. (É interessante ver a forma como Le Grice lida com Kren – enfatizando consistentemente o “trabalho sobre o significante” ao invés da natureza quase inevitável do “significado”).
A conclusão à qual eu chego é de que o Novo Cinema Americano e suas contrapartes europeias em hipótese alguma formaram um movimento unitário, mas sim representaram duas tendências opostas, as quais têm estado com o modernismo e a vanguarda desde que o “natural” escopo renascentista de relações entre significante e significado foi derrubado pelo Cubismo. Uma tendência reflete a preocupação com a especificidade do significante, mantendo o significado em suspensão ou lutando para eliminá-lo. A outra tentou desenvolver novos tipos de relações entre o significante e o significado através da montagem de elementos heterogêneos. Está claro que é essa segunda tendência que é “convergente” com Godard e Straub-Huillet e sobre a qual, num longo prazo, deve-se nutrir expectativas de um potencial muito maior. É o modernismo que já cumpriu seu papel, não a vanguarda (apesar da crise de um ser necessariamente uma crise para o outro).
Isso nos leva de volta à segunda vanguarda e a Paris. Olhando em retrospecto sobre o que escrevi em 1975, percebo que eu já me sentia desapontado com o desfecho das aventuras de Godard na vastidão selvagem. Num primeiro momento, parecera para mim, como para muitos outros (basta olhar para Cahiers e Cinéthique), que a trajetória de Godard era aquela de 1968. O acompanhamento “teórico” para essa visão veio da Tel Quel, com a sua tentativa de elaborar posições teóricas as quais uniriam o marxismo, a psicanálise, a semiótica e a vanguarda. (Ou deveria eu dizer althusserianismo, lacanismo, “semanálise” e uma certa tradição da vanguarda: Artaud, Joyce, etc.). Mais uma vez, em retrospecto, é fácil ver que a “nova teoria francesa” era mais complexa do que parecia num primeiro momento e que tal como o Novo Cinema Americano ela continha diferentes tendências, mutuamente inconsistentes e contraditórias, talvez de forma ainda mais aguda.
Existem três pontos (muito soltos) que eu gostaria de colocar. Primeiro, a posição da Tel Quel era basicamente – como o situacionismo – um prolongamento da tradição dissidente surrealista (Artaud ao invés de Buñuel, Bataille ao invés de Breton, Mao ao invés de Trotski, etc.). Como tal, 1968 era a sua glória e o seu fim. Segundo, acabou que boa parte da “nova teoria francesa” era em sua origem “velha teoria germânica”: não apenas Marx e Freud, mas também Nietzsche, Husserl, Heidegger e assim por diante. De novo, parece agora parte do longo processo francês de digestão do pensamento alemão – e como tal, muito mais próximo de Sartre do que qualquer um estaria preparado para admitir. Terceiro – e esse é o ponto pertinente – o ressurgimento da semiótica acabou por ser anticientífico ao invés de científico. A responsabilidade aqui recai, é claro, nas próprias figuras que inauguraram a semiótica com esses bravos floreios de cientificidade: Barthes e Kristeva.
Essa virada contra a ciência se deve em parte à pressão das tradições da dissidência surrealista e do idealismo alemão que eu mencionei acima. Em parte, deve-se a um fracasso epistemológico em aceitar o papel de um componente empírico em qualquer ciência sem que a mesma recaísse em empirismo – uma falha de Althusser em particular, composta por uma crescente fascinação filosófica com a linguagem, o texto, o discurso, etc., completamente divorciada de qualquer teoria ou referência. Terceiro – e isso está conectado ao ponto anterior – havia sérias deficiências inerentes ao trabalho fundamental de Saussure: por exemplo, sua falta de qualquer teoria real da sintaxe, trazida a uma chocante e reveladora luz por Chomsky, e sua ambivalência acerca do lugar da referência em sua teoria do signo.
Fazendo essas (infelizmente devastadoras) críticas, devo frisar que acredito que o projeto da semiótica é mais importante de ser defendido agora do que em qualquer outro momento – conforme a onda de 1968 se retrai, cada vez mais ataques são feitos à semiótica, na esperança de que suas supostas deficiências façam com que ela colapse e que todo o empreendimento possa ser esquecido. As alternativas são, é claro, novas ondas de empirismo e impressionismo anglo-saxão. Felizmente, a semiótica do cinema (Metz, Bellour e outros) também foi muito menos afetada pelo revés anticientífico que eu descrevi do que o projeto da semiótica em geral. Tem sido um duplo problema o da semiótica no cinema: o fracasso, construído sobre uma base saussureana, em se encontrar conceitos suficientemente flexíveis para se estender o escopo da semiótica para além dos códigos clássicos de Hollywood e do cinema de arte, certamente em nenhum sentido que pudesse alimentar diretamente a realização; e em segundo lugar, uma tendência em se buscar teorias gerais do signo cinematográfico (ou “dispositivo” ou “imaginário”), ao invés de se frisar a pluralidade e heterogeneidade do cinema – como o próprio Metz enfatizou em um certo momento.
A falência em se desenvolver uma teoria da semiótica em relação ao cinema de vanguarda foi particularmente infeliz, porque foi aqui, em suas últimas fases, que a influência de Barthes, Kristeva etc., fez-se sentir de forma mais acentuada. Por fim, a semiótica começou a virar um explícito e militante projeto anticientífico (quem dirá não-científico). Na verdade, na Inglaterra, a Screen não estava completamente imune a esse tipo de derrapada, já que ela tentou sintetizar uma política pós-Cahiers com a teoria semiótica da qual essa já tinha se divorciado na França.
O projeto de uma semiótica do cinema capaz de lidar com os problemas da vanguarda começou a parecer mais e mais utópico, uma luta vã para frear a maré de irracionalismo. Na verdade, foi na área do cinema feminista e da teoria feminista do cinema na qual a linha se manteve mais firme. O feminismo foi ele mesmo, é claro, em parte um produto dos levantes políticos e intelectuais associados à 1968. O feminismo também demandou uma crítica da imagem e da narrativa em suas formas dominantes, a qual se inflexionou em direção à vanguarda. No momento, existe apenas o início de uma quebra na divisão em duas vanguardas e na separação entre vanguarda e trabalho teórico, mas é em relação ao próprio cinema feminista e dentro dele que a convergência está mais delineada. Muitos filmes recentes foram feitos num contexto no qual os escritos teóricos feministas forneceram a base e o encorajamento para o cinema.
P.S.: Desde que escrevi essas linhas, minhas previsões de contínuos ataques à semiótica têm se concretizado amplamente – Anderson, Brownlow, Durgnat e, é claro, o caso MacCabe[6] (tendo sido esse antecipado pelo pernicioso chamado de Durgnat por uma luta contra a infiltração da semiótica nas universidades e instituições culturais). Embora esses ataques particulares não possuam qualquer credibilidade intelectual (o de Durgnat – o mais ambicioso – invoca de maneira oportunista tanto Popper quanto Thompson como garantidores do empirismo mais idealmente científico e acadêmico com o qual ele traveste seu próprio trabalho), há muito com o que se preocupar quando se considera a situação política, propícia a um ressurgimento do neo-macartismo desenhado para eliminar o rescaldo de 1968. O que é especialmente preocupante é ver uma revista “progressista” como a Cinéaste lançando uma campanha contra o “estruturalismo” marxista e o cinema de vanguarda, usando não-marxistas para vilipendiar inimigos na esquerda marxista, enquanto flerta obsequiosamente com críticos pertencentes ao establishment, como Caroly e Sarris.
Por outro lado, é reconfortante que esses ataques emanem, acima de tudo, de uma geração pré-1968 que tenta fazer com que o relógio ande para trás. Há um outro importante ângulo de aproximação à situação atual. Apesar de que, como eu apontei anteriormente, o modernismo e a teoria parisiense estejam em desarranjo, é possível ver alguns realizadores e teóricos na Grã-Bretanha como herdeiros, não dessas duas tendências, mas das possibilidades de se desenvolvê-las. Tendo passado a década de 1970 oscilando entre diferentes pontos de atração intelectual e estética, chegou a hora de uma cultura britânica de cinema independente explorar o contexto intelectual e estético da década 1970 para os (seus) próprios propósitos.
Notas:
[1] Referência à London Film-makers’ Co-op. [N.T.]
[2] Referência ao então casal de cineastas alemães Birgit Hein e Wilhelm Hein. [N.T.]
[3] Independent Filmmakers Association (IFMA). [N.T.]
[4] Referência ao “Destruction in Art Symposium”, encontro de artistas e cientistas no Africa Center de Londres, em 1966. [N.T.]
[5] Film in Which There Appear Edge Lettering, Sprocket Holes, Dirt Particles, Etc. (1965-1966) é o título completo do filme de George Landow citado por Wollen. O “filme mais recente de Landow” a que se refere é On the Marriage Broker Joke as Cited by Sigmund Freud in Wit and Its Relation to the Unconscious or Can the Avant-Garde Artist Be Wholed? (1977-1979). [N.T.]
[6] Referência ao então professor de língua inglesa da Universidade de Cambridge, Colin MacCabe, impedido pelos seus pares de progredir na carreira acadêmica sob acusações de bigamia, tráfico de heroína e estruturalismo. [N.T.]
(Framework: The Journal of Cinema and Media n.º 14, primavera de 1981, pp. 9-10. Traduzido por Guilherme Savioli)
RESPOSTA DE P. ADAMS SITNEY A PETER WOLLEN
Prezada Framework,
A sua série de traduções de artigos teóricos do período do cinema silencioso marca o início de um dos mais valiosos e louváveis gestos que eu testemunhei nos últimos anos vindos de uma revista dedicada ao cinema. Parabéns! Sua última edição, a qual abriu com uma tradução introduzida de forma bastante convincente do seminal ensaio de Lukács, deixou-me entusiasmado, até eu ler o artigo “As duas vanguardas: Europa e América”, de Peter Wollen. A deturpação desse aparentemente inocente e racional ensaio exige uma resposta.
O Sr. Wollen usa uma convincente estratégia retórica: ele olha para uma série de controvérsias do alto de seu Olimpo. Ele não pode se rebaixar ao nível daqueles aos quais ataca parafraseando-os. Como uma rolha ao mar, ele está acima de tudo. Ainda assim, curiosamente, o oportunismo está em ação no seu ensaio. É claro que ele começa com um tom de autodepreciação, o qual torna a sua polêmica mais efetiva, já que camufla o seu autoengrandecimento. Poderia parecer, num primeiro momento, que ele admitiu a tolice de seu ensaio “As duas vanguardas”, no qual ele conclamava por uma síntese entre a energia da vanguarda americana e a política de alguns filmes europeus e japoneses. Na verdade, ele estava seguindo uma venerável tradição daquele artigo de cinco anos atrás: ele estava criando uma ficção histórica na qual ele poderia situar sua emergente carreira como cineasta. Valentão! Outros artistas muito mais distintos já haviam utilizado da mesma artimanha.
Sua mais recente contribuição acaba por ser não um repúdio daquele autoengano, mas sim meramente uma tentativa desesperada de revitalizá-lo e de recuperar suas perdas. Já que desta vez o meu trabalho e o trabalho de meus colegas são os bodes expiatórios de seu carreirismo, devem-se alguns esclarecimentos.
A estratégia mais ofensiva empregada pelo Sr. Wollen – apesar dela também ter pedigree – é assumir a mesma posição que eu articulei no capítulo de conclusão do meu livro Visionary Film (edição revisada, 1979) como se fosse uma compreensão original sua e, além do mais, como se fosse um argumento conclusivo contra os meus colegas americanos. No meu estudo sobre “Os anos 1970” naquele livro, eu apontei que a influência de Duchamp sempre foi um fator significante na história do cinema americano de vanguarda e que o mesmo era responsável pela mudança em direção aos jogos de linguagem no trabalho recente de George Landow e Michael Snow (dentre outros cineastas). Mesmo assim, lemos no artigo de Wollen que “os principais intérpretes do cinema estrutural” tiveram dificuldade em lidar com Wide Angle Saxon e com Rameau’s Nephew. Talvez eu esteja sendo um pouco presunçoso em me incluir entre os “principais intérpretes”. Mesmo assim, ele apenas nomeia a mim e a Malcolm Le Grice nesse contexto. Certamente, o Sr. Wollen não pode ser responsabilizado por não conhecer o meu ensaio sobre o último filme de Landow, inspirado pela interpretação de Freud acerca da piada do casamenteiro judeu, porque ele teve a sua publicação atrasada. Mas ele é um tanto quanto prematuro em assumir que nós, principais intérpretes do..., soamos “inadequados em lidar” com essas obras. Eu ainda estou esperando para ver os frutos de suas compreensões a respeito desse grandioso filme. Por outro lado, eu não entendo como ele pode ter ignorado minha consideração sobre Wide Angle Saxon e Rameau’s Nephew no Visionary Film, ou a análise de Regina Cornwell desse último filme em Snow Seen. (A Sra. Cornwell talvez seja a crítica de cinema americana com ligações mais próximas com a versão de Greenberg do modernismo – mas ela não tem nenhuma dificuldade evidente com esse filme. Nem deveria, já que todo o problema é um espantalho da polêmica do Sr. Wollen.) Empoleirado no alto de sua visão geral, o Sr. Wollen aponta nossas falhas. Que assim seja. Para um homem que nunca publicou nada sobre o filme de Snow nem sobre o filme de Landow, ao menos que eu saiba, a autoridade calcada na base do despejo de nomes a qual ele convoca para si é grotesca.
A questão não é sobre os meus escritos. Há algo mais profundo em jogo. Eu passei por esse ritual bobo de assinalar os parágrafos de aquecimento de Wollen apenas para alertar os seus leitores da dubiedade de seu tom objetivo. Astutamente ele introduz o seu argumento com alusões a filmes que são virtualmente desconhecidos na Inglaterra (acredito eu) e a um corpo crítico obscuro, a fim de dar sustância à sua hilária interpretação do modernismo.
Os assuntos sérios em jogo no artigo no Sr. Wollen estão interconectados de um jeito que ele não admite. Ele assinala o colapso do “modernismo”, tal como formulado por Clement Greenberg e seus seguidores, e o esvaziamento da semiótica estruturalista de Barthes e Kristeva. Naturalmente, ele não reconhece que a feroz crítica de Greenberg atingiu seu ápice mais de uma década atrás, enquanto que a bancarrota da semiótica como ciência apenas recentemente se tornou um constrangimento para quem aderiu à mesma. A diferença crucial entre Greenberg e tanto Kristeva quanto Barthes é que o primeiro era um ótimo escritor, um mestre dos esclarecimentos luminosos. Mas essa não é a única diferença. No seu período de maior influência, Greenberg tomou riscos enormes, colocando em jogo sua reputação nas pinturas de pessoas como Pollock, Still e Rothko. Ele teve a incrível felicidade de combinar suas compreensões críticas com uma prosa forte e clara. Nenhum crítico da pintura americana foi capaz de repetir isso, apesar de que muitos – Deus sabe quantos – tentaram, incluindo o próprio Greenberg, infelizmente, o qual o olho e a voz crítica perderam autoridade na década de 1960. Tanto Barthes quanto Kristeva nunca tiveram a coragem altiva de Greenberg. Eles eram acadêmicos cujo novo truque era discutir trabalhos já aceitos. A melancolia do Sr. Wollen a respeito do colapso de toda a empreitada pode estar ligado ao seu investimento como mercador anglo-saxão das ideias francesas.
O ponto importante e não mencionado é a qualidade. Greenberg primeiro ascendeu e depois decaiu com base nos artistas que ele defendeu. Minha discussão com Malcolm Le Grice, a qual Wollen se refere de forma críptica, residia na minha convicção de que os filmes da vanguarda britânica que eu havia visto no final dos anos sessenta e ao longo dos anos setenta, simplesmente não estavam no mesmo nível em termos de feitos artísticos dos trabalhos de uma dezena ou mais de americanos, os quais haviam se beneficiado de uma tradição de trinta anos. Além do mais, eu descobri que os teóricos mais estridentes dentre os britânicos e europeus (ex. Gidal, Hein) não faziam filmes da mesma intensidade e originalidade daqueles poucos que mexiam comigo, como os de Chris Welsby ou Klaus Wyborny.
Alguns anos atrás, Le Grice e eu debatemos esse assunto em público (o Sr. Wollen até estava presente). O aspecto mais interessante e certamente mais memorável da noite deve ter sido a imerecida graça com a qual meu notável antagonista saudou minha polêmica crescentemente agressiva (exacerbada pelo efeito de uma garrafa de conhaque Fundador que Jonas Mekas havia colocado entre nós e da qual eu consumi mais do que deveria). Durante o debate, Le Grice foi bem direto. Ele nos contou que seus escritos críticos respondiam em sua maior parte à necessidade, num momento histórico particular, em se publicizar o cinema inglês de vanguarda. Esse trabalho já estava feito e ele estava se aposentando como crítico. Não houve verdadeiramente uma discussão entre nós. Agora, o Sr. Wollen parece ter esquecido dessa noite, já que é conveniente para ele responsabilizar Le Grice, juntamente a mim, por não ter sido “capaz de lidar” com certos desdobramentos no cinema de vanguarda recente. Meu palpite é que apenas o Sr. Wollen sabe como lidar com eles, mas ele está muito ocupado passando por cima de toda a história para nos inteirar a respeito.
Agora ele repete o gesto de Le Grice por publicidade, sem admitir sua história. Ele chega até a reivindicar (apenas) Chantal Akerman como um exemplo significativo da síntese europeia a qual seu próprio filme aspira. Ainda assim, por trás dessa distorção da história da vanguarda europeia, jaz a negligência ou encobrimento de cineastas muito mais significativos, os quais não compartilham das visões políticas do Sr. Wollen. Peter Kubelka, Isidore Isou, Maurice Lemaître e Marcel Hanoun são figuras centrais da autêntica tradição de vanguarda no cinema europeu. Ainda assim, cada um deles é, à sua maneira, um embaraço para o porta-voz do atual eixo semiótico/feminista/marxista. Portanto, não são mencionados, assim como a repetida invocação de Landow da autoridade do logos cristão em seus filmes recentes não é reconhecida pelo Sr. Wollen, o qual “lida” com assuntos problemáticos ficando em silêncio.
A política da Framework em pesquisar a rica herança da teoria do cinema através da tradução de obscuras mas importantes contribuições de uma época na qual a teoria do cinema ainda não estava na moda, parece estar nas antípodas dos erros do artigo de Wollen. O melhor de Wollen é, na verdade, quando ele descobre que a “nova teoria francesa” é uma versão da “velha teoria germânica”. Eu apenas gostaria que ele tivesse coragem de admitir que esse reconhecimento coloca em questão a chique afirmação de que o bicho-papão do “idealismo” haveria sido superado. O pior de Wollen é, contudo, quando ele tenta fazer uma asserção clara: “A conclusão a qual eu chego é de que o Novo Cinema Americano e suas contrapartes europeias em hipótese alguma formaram um movimento unitário, mas sim representaram duas tendências opostas, as quais têm estado com o modernismo e a vanguarda desde que o ‘natural’ escopo renascentista de relações entre significante e significado foi derrubado pelo cubismo”. É onde ele entrega a sua ignorância das histórias da arte, da filosofia e da literatura e a sua preferência por dicotomias simplistas e cronologias dramáticas. Tendo falhado em ser um profeta com o seu artigo “As duas vanguardas”, ele agora realoca sua bonitinha polarização dentro da estrutura do próprio signo e dentro de uma banalidade da crítica de arte. Para fazer com que esse truque funcione, ele tem que reinventar a história do cinema de vanguarda americano e falsificar a crítica do mesmo. Curiosamente, ele quase alcança uma real compreensão. Por quinze anos, Annette Michelson e eu discutimos que o cinema americano de vanguarda apresentou, desde os anos quarenta, uma alternativa crítica ao reducionismo da versão de Greenberg do modernismo. No Visionary Film eu argumentei que a influência do surrealismo (que é vigorosamente posta de lado por Greenberg) foi decisiva na formação da vanguarda americana. Nunca houve uma fase greenbergiana daquele cinema, na verdade, a noção mesma de “modernismo” cinematográfico nesse sentido limitado é uma contradição, como o filósofo mais próximo de Greenberg, Stanley Cavell, insiste a todo custo. Ao aferrar-se ao desconexo apanhado de seu vocabulário semiológico, o Sr. Wollen esconde de si mesmo o reconhecimento de que a revolução que ele atribui ao cubismo já havia sido inscrita na divisão da primeira metade da Crítica da faculdade de julgar, de Kant, assim como na crítica de arte de Baudelaire e em outros numerosos monumentos da estética do século XIX. Sua tentativa desesperada de arregimentar o “progresso” da modernidade, para fixá-lo e assegurar seus ganhos, é pateticamente evidente na sua ladainha nostálgica da data “1968”, com a qual ele tempera o seu ensaio.
Até que o peso da tradição filosófica seja reconhecido e que a ilusão da ciência seja abandonada, a teoria do cinema tal como o Sr. Wollen a apresenta será uma tolice. Um exemplo vivo da combinação de ignorância, preconceito e política em nome da teoria do cinema, do qual o Sr. Wollen participou mas não pode ser inteiramente responsabilizado, é o volume de ensaios sobre O aparato cinematográfico, editado por Teresa de Lauretis e Stephen Heath. O Sr. Wollen contribuiu com “Uma visão histórica geral” (sobre o que mais!). Em nenhum lugar daquele livro aparece o nome de Stan Brakhage. Logo em 1964, seis anos antes das primeiras meditações acerca da ideologia do aparato cinematográfico por Comolli e Baudry, em seu ensaio teórico Metaphors on Vision, Brakhage investiu contra o viés convencional das lentes, o qual duplicava a perspectiva renascentista; o balanço de cor da película cinematográfica, o qual imitava os cartões-postais; a limitação dos tripés; o escopo do “foco”; a estrutura em formato de igreja do convencional lar do cinema. Ainda assim, nem um único sequer daqueles acadêmicos que contribuíram para aquele simpósio mencionou o seu precursor. É claro, a sua política é notoriamente distinta daquela dos organizadores do volume, e ele também não é nem francês nem semiólogo. Como eu disse, o Sr. Wollen não é o único responsável por essa falta de visão, mesmo assim, ele deveria conhecer a história se ele quer nos dar a sua “visão geral”. Como a olímpia voz da razão e da ciência no assunto da vanguarda cinematográfica, ele está mal-informado. Se, no entanto, ele estiver escrevendo como um cineasta, afirmando a primazia de sua estética e/ou de sua posição política, ele deveria ser mais franco com os seus leitores e colegas cineastas.
P. Adams Sitney
RÉPLICA DE PETER WOLLEN A P. ADAMS SITNEY
De forma breve,
1) Eu não fingi um descolamento desde o alto de meu Olimpo, mas sim deixei muito claro que estava sendo parcial e polêmico – tão parcial e polêmico quanto Sitney o é.
2) É racional que a minha abordagem teórica do cinema convirja com a minha prática como cineasta. Seria estranho se assim não o fosse. Isso não é carreirismo, é consistência. Poderia se chamar Metaphors on Vision de carreirista baseando-se no fato de que serve aos propósitos de Brakhage como cineasta.
3) Meu ponto acerca dos trabalhos recentes de Landow e Snow não era que Sitney não pudesse sequer escrever sobre esses filmes – é claro que ele pode – mas que ele não poderia escrever sobre eles nos mesmos termos que escreveu sobre o cinema estrutural. O novo último capítulo de Visionary Film está bem por si só, mas eu não penso que ele respeita o esquema de desenvolvimento o qual estruturou a primeira edição do livro.
4) A tentativa de Sitney em se manter consistente o coloca em apuros. Não é realmente possível limitar o impacto de Duchamp em Landow e Snow àquele de Cinema anêmico (Anémic cinéma, 1926) ou ignorar as muitas formas não-cinematográficas através das quais a influência de Duchamp foi transmitida. É simplesmente errado restringir a história do cinema apenas ao cinema, como se ele estivesse isolado das outras artes ou de outras correntes intelectuais e sociais.
5) As principais influências no meu trabalho não foram francesas – Peirce, Propp, Eisenstein, Freud, etc. Eu nunca escrevi sobre Barthes a não ser criticamente e comparativamente escrevi pouco sobre qualquer outro teórico francês.
6) Eu não vejo nenhum futuro em tentar reavivar o estéril debate Europa vs. América. Eu admiro o trabalho de Welsby e Wyborny, mas eu não acredito na “autêntica tradição de vanguarda” de Kubelka, Isou, Lemaître, Hanoun. Como que Kubelka e Hanoun são parte da mesma tradição?
7) É o lado Roussel do trabalho de Landow que mais me agrada – não o logos cristão.
8) Não me desculpo por insistir em 1968.
9) Sitney arrasta O aparato cinematográfico para a discussão apenas para jogar umas pedras em De Lauretis e Heath. O que ele diz não é relevante para o que eu escrevi aqui.
10) Ainda que relutante, eu estou pronto para conceder a Brakhage o seu lugar na história. Quando é que Sitney fará o mesmo em relação a Godard?
Peter Wollen
(Framework: The Journal of Cinema and Media n.º 18, 1982, pp. 57-58. Traduzido por Guilherme Savioli) |
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