A IDEIA DE MORFOLOGIA
por P. Adams Sitney



Não é nenhuma surpresa que um dos maiores desejos e aspirações dos cineastas independentes é ser original e, além de original, ser único. Quem leu o trabalho crítico de Jonas Mekas, o principal polemista do cinema de vanguarda dos nossos tempos, pôde perceber a enorme excitação que aconteceu nesse cinema no final da década de 1950, uma insurgência tomada pela total anarquia, uma revolta contra todas as formas antigas, a serem substituídas por algo novo e, no caso de cada cineasta, com algo diferente dos outros. Chegando nesse ambiente no final da década de 1950, presenciei no filme de vanguarda uma avalanche esmagadora de técnicas diversas, uma pletora de formas que fazia a cabeça girar. Cada filme parecia completamente diferente do anterior, e cada ano via o surgimento de formas aparentemente novas. Para alguém comprometido com o cinema de vanguarda, isso era muito animador; para um público não necessariamente comprometido, podia ser um tanto confuso.

É a experiência, não de um cineasta, mas de um grande compositor americano, Charles Ives, que revela esse mesmo espírito. Houve uma situação em que uma vez um pianista conseguiu entrar na casa de Ives, que era um tanto isolada (ele estava aposentado), e disse: “Quero aprender a tocar a Concord Sonata”, e Ives disse: “Ora, ninguém está interessado nisso, é complicada, não vale a pena.” Mas o pianista insistiu; ele era jovem, talentoso e ambicioso e convenceu Ives a deixar colocarem dois pianos na sua casa. O pianista estudou a partitura por muito tempo, até que finalmente chegou o dia da primeira aula. Eles tocariam a partitura juntos. Cada um abriu a sua, e os dois começaram a tocar muito lentamente o primeiro movimento da Concord Sonata para piano. Eles tocaram bem, e Ives começou a pegar um pouco de velocidade, então o pianista acelerou também. Então Ives foi acelerando mais e mais até que o pianista percebeu que não conseguia acompanhá-lo. Mesmo assim era um grande momento para ele, porque ele nunca havia escutado essa peça que havia estudado e apreciado tanto; então ele apenas ficou sentado acompanhando na partitura enquanto Ives tocava. Ives foi ficando cada vez mais entusiasmado e mais excitado; o pianista não conseguia mais acompanhar, virando as páginas da partitura cada vez mais rápido. Finalmente ele percebeu que o que Ives estava tocando não estava ali, e depois de cerca de dez minutos observando-o na sua inspiração profunda, ele arranjou coragem o suficiente para interrompê-lo e dizer: “Sr. Ives, me desculpe, mas o que você está tocando não está na partitura.” Ives parou por um momento e disse: “É cada um por si agora”, e voltou a tocar.

Em grande medida o espírito dessa história, seja verdadeira ou apócrifa, caracteriza boa parte da arte americana, especialmente o cinema americano de vanguarda. Mas nestas quatro palestras[1] não pretendo dizer a vocês que é impossível desenvolver uma teoria coerente sobre esse cinema, muito pelo contrário. Apesar das enormes dificuldades e das personalidades únicas apresentadas nos trabalhos destas pessoas bastante distintas, se olharmos de maneira generalizada o suficiente, e suspendermos por uma hora ou duas nossas reservas sobre se um filme ou cineasta se encaixa perfeitamente, e então começarmos a olhar para a totalidade dos trabalhos, começaremos, talvez, a delinear uma teoria geral para o filme de vanguarda. O problema básico envolve forma. O que são formas? O tema desta aula será a possibilidade ou não de encontrarmos uma morfologia sistemática – isto é, um paradigma de formas dentro do cinema de vanguarda.

Há várias abordagens que eu gostaria de experimentar. A primeira é uma comparação entre o cinema de vanguarda americano do final da década de 1940 com os seus predecessores europeus, primordialmente dos anos 1920. Gostaria de começar mostrando dois filmes: o primeiro é um trecho de Um cão andaluz (Un chien andalou, 1928-1929), de Luis Buñuel em colaboração com Salvador Dalí; e o segundo, Tramas do entardecer (Meshes of the Afternoon, 1943), de Maya Deren e Alexander Hammid, que será exibido inteiramente.

Antes de abordar esses filmes, gostaria de retornar um pouco e levantar algumas questões teóricas. Na Rússia, durante a Revolução, surgiu uma visão realmente revolucionária da crítica literária: o formalismo. Refiro-me primeiramente à crítica literária, como depois farei referência à história da arte, porque são as duas maneiras que temos de abordar os filmes de maneira séria. Infelizmente, não há um vocabulário nem um contexto intelectual em que o cinema como cinema possa ser visto; as únicas ferramentas são as da literatura e da história da arte, e com uma combinação cuidadosa e equilibrada das duas, pode ser possível começar a se aproximar de um vocabulário de crítica de cinema. Na Rússia, os formalistas desenvolveram basicamente uma abordagem nova para olhar para a história da literatura e analisar suas obras. Gostaria de citar Victor Erlich parafraseando Tynianov, um dos maiores formalistas; Erlich escreveu:

É assim, diz o crítico Formalista, que a mudança na literatura acontece. O antigo é apresentado, de certo modo, numa nova chave. O instrumento obsoleto não é jogado fora, mas repetido em um novo contexto incongruente, e então se torna ou absurdo pelo efeito da mecanização ou mais “perceptível”. Em outras palavras, uma nova arte não é a antítese da sua predecessora, mas uma reorganização, um “reagrupamento de elementos antigos”[2].

Ele coloca “perceptível” entre aspas porque os formalistas acreditavam que a reorientação de materiais antigos possibilitava reavivá-los de uma maneira nova e surpreendente e fazê-los perceptíveis, visíveis, ao invés de automáticos.

Um outro formalista, Viktor Chklovsky, diz o seguinte:

A obra de arte surge de um contexto de outras obras e pela associação com elas. A forma de uma obra é definida pela sua relação com outras obras, com formas que existiram anteriormente a ela... Não somente a paródia, mas qualquer tipo de obra de arte é criado paralelamente e em oposição a algum tipo de forma. A intenção da nova forma não é exprimir um conteúdo novo, mas mudar a velha forma que perdeu a sua qualidade estética[3].

Tomo essa afirmação como muito útil para lidar com a história do cinema. A questão que se coloca é: o que Hammid e Deren herdaram de Buñuel e Dalí? Aprecio muito essa formulação porque tanto Deren quanto Hammid alegam não ter assistido Um cão andaluz antes de ter feito o filme deles. Sem dúvida isso é verdade. Mas independente disso havia algo no ar, o filme era bastante conhecido; quando se descarta a hipótese da simples imitação, há um certo processo estético em desenvolvimento que torna tudo mais relevante. O que esses dois filmes têm em comum? Obviamente os dois devem muito a Sigmund Freud, à experiência do sonho. As elipses de tempo e espaço que vimos em Tramas do entardecer, e que foram minimizadas em Um cão andaluz pelo fato de assistirmos somente a um trecho, são certamente parte disso. No restante de Um cão andaluz, vê-se mudanças muito rápidas de espaço e tempo e o uso de intertítulos como “Sete anos antes”, ou “Seis anos depois”, enfatizando as descontinuidades que embasam o filme. Nos dois filmes, há uma utilização formal da violência.

Mas há uma diferença fundamental entre eles. Primeiramente, em Um cão andaluz há um delírio, uma loucura, existe uma erupção simples e pura do subconsciente; e há operações com o acaso. De acordo com os escritos deixados por Buñuel e Dalí, eles decidiram fazer um filme em que nenhuma imagem teria relação com a outra. Se eles conseguissem enxergar qualquer conexão lógica ou de significado entre duas imagens, eles as descartavam. Isso fica interessante no nosso contexto porque obviamente o que eles criaram nesse processo de eliminação não foi um resultado casual ou aleatório, mas um trabalho rigidamente aderente a certas situações apresentadas pelo subconsciente.

O ambiente da realização cinematográfica vanguardista que antecedeu a exibição dos filmes na América foi mais discutido do que os próprios filmes. O público sabia que havia motins nas exibições que tiveram no passado, e inicialmente fizeram questão de manter essa tradição. Esse ambiente rapidamente se desmanchou. Na década de 1950 a atmosfera já havia mudado completamente; todo o propósito social do cinema de vanguarda tinha se transformado. Os filmes não eram mais feitos para atacar a burguesia e as plateias provincianas; a natureza da visão artística havia mudado, de modo que o público ficou mais sofisticado e respondeu de maneira diferente. Em grande medida, todo o contexto de realização de cinema de vanguarda havia alcançado outro estágio evolutivo; a maioria dos artistas que fizeram filmes vanguardistas nos anos 1920 tinham feito um ou dois filmes e depois voltado para a poesia ou a pintura, ou então usaram a experiência de realização para conseguir entrar na indústria. (Há alguns filmes de René Clair antes dele se tornar um cineasta comercial, mas ainda assim inteligente; Fernand Léger fez um e Man Ray fez três, antes deles retornarem para as suas artes.) Por outro lado, na América cresceu uma geração de pessoas que faziam cinema independente como seu principal trabalho. Essa é outra parte da transformação.

Em Um cão andaluz há sem dúvida uma busca pela loucura, uma evocação do sadismo e uma tendência geral de mostrar o subconsciente em erupção. Em Tramas do entardecer, ao contrário, o que temos primordialmente é uma busca extremamente complexa e paradoxal pelo Eu. O acaso não existe aqui; vemos seis histórias controladas com muito cuidado. Cada uma delas segue o mesmo enredo. No começo do filme, temos a impressão de que estamos no âmbito da realidade: vemos os objetos no quarto do ponto de vista da mulher que entra, seguimos os seus movimentos até que ela adormeça, ou assim somos levados a crer. Em quatro ciclos sucessivos, vemos a mesma ação se repetindo com uma intensidade progressiva de simbolismo. Porém no ciclo mais para o final, em que ela acorda, também está presente uma mistura do simbólico com o verdadeiro. Depois de cinco variações combinando o altamente simbólico e o aparentemente real, somos levados a questionar o último ciclo e nos perguntar se ela realmente se matou ou se é apenas mais uma forma de entrelaçamento da realidade com a ilusão. Tramas do entardecer encontra sua fonte no cinema onírico dos anos 1920, mas ao invés de usar o sonho como uma explosão, uma bomba interna, ele tenta extrair do sonho uma forma, e nessa forma certas coisas muito interessantes acontecem. Curiosamente, uma das mais inconscientes (a partir dos seus escritos da década de 40) é o uso dos cineastas como atores. A única explicação que Deren dá para a sua aparição no filme é o fato de que ela não tinha dinheiro para contratar atores; ela parece não estar ciente da textura autobiográfica do filme. Nele, temos duas pessoas, que na vida real eram casadas, Alexander Hammid e Maya Deren, interpretando a si mesmos, ou o homem e a mulher. De qualquer modo, essa situação pode ser caracterizada como um psicodrama: uma tentativa de método psicoterapêutico no qual uma pessoa representa as suas fantasias numa busca pelo Eu.

Vejo esse filme como uma ponte entre a vanguarda dos anos 1920 e a sua retomada nos Estados Unidos dos anos 1940. É um filme feito por duas pessoas: a primeira, uma garota nascida na Rússia, educada na América, filha de um eminente psicólogo, notavelmente alguém que havia recém terminado de escrever uma dissertação de mestrado no Smith College sobre o simbolismo na poesia francesa e inglesa; o outro, um imigrante da Tchecoslováquia, um fotógrafo de cinema muito talentoso e ciente da tradição vanguardista na Europa. A colaboração deles combina os dois cinemas. Ela cristaliza uma forma. Essa forma é o filme de transe. As características básicas desse tipo de filme são uma personagem, um herói, de aspecto sonâmbulo, que vagueia por uma paisagem imponente. Essa forma dominou os primórdios do cinema americano de vanguarda.

Aqui vemos Kenneth Anger no seu próprio filme, Fireworks (1947). É um filme de sonho. Começa com uma imagem dele dormindo; ele levanta; segue uma sequência de imagens eróticas; ele sai à noite, passa por um tipo de banheiro masculino expressionista; ele é atacado por um grupo de marinheiros, apanha, começa a sangrar; um dos marinheiros abre a sua braguilha, e dali sai um pequeno rojão, que é aceso e explode em cima dele. Ele reaparece no quarto do início com uma enorme árvore-de-natal fálica em cima da sua cabeça; a ponta dela está pegando fogo; nas imagens finais do filme, ele está dormindo novamente. O filme inteiro é, essencialmente, um sonho. Parafraseá-lo não faz justiça à obra original. Feito em 1947 por um homem de 17 anos, foi um trabalho revolucionário. Tinha a efervescência, a intensidade de um poema de Rimbaud. Era um filme em uma área sobre a qual ninguém ousava falar na época. Era um trabalho extremamente pessoal.

A seguir vemos um still de um filme feito em 1950 por Gregory Markopoulos chamado Swain. Um jovem, novamente interpretado pelo próprio realizador, caminha a esmo por uma estranha paisagem e visita uma casa esquisita; seu uniforme muda o tempo inteiro; ele é perseguido através de diversas paisagens por uma mulher que alterna entre vários figurinos, incluindo um vestido de casamento; tudo entrecortado por pequenos fragmentos de imagens que sugerem que o filme inteiro é ou um sonho de uma figura se olhando no espelho, ou a memória de um homem que ou está trancado num quarto ou está encarcerado num manicômio. Isso é coerente com a forma básica do que é chamado de filme de transe. Ele constituiu a forma dominante na produção criativa de cinema nos Estados Unidos de 1947 até o começo da década de 1950.

Outro paralelo interessante resume a diferenciação entre Um cão andaluz e Tramas do entardecer. Há uma imagem muito famosa neste último, geralmente reproduzida nos stills, de Maya Deren olhando pela janela, suas mãos apoiadas nela. É uma imagem reflexiva, uma imagem calma. É praticamente um ícone de uma pessoa olhando para dentro de si mesma. Comparem esta imagem com a do rosto de Pierre Batcheff, em Um cão andaluz, olhando pela janela para a garota com a mão decepada no momento em que ela é atropelada. Entre essas duas imagens estamos, em essência, entre os surrealistas e o cinema psicodramático. O filme surrealista era baseado na potência do cinema de evocar um voyeurismo louco. O cinema psicodramático depende da capacidade do meio de criar uma experiência reflexiva, um diálogo entre o erotismo e a consciência, ao invés da explosão aberta do erótico do inconsciente. A sexualidade em Um cão andaluz é cômica e exuberante; na verdade, todo o surrealismo depende basicamente do efeito cômico, mas com tamanha surpresa e intensidade que ele coloca em questão a própria natureza da comédia. O surrealismo pode de fato ser colocado como uma crítica estética dos fundamentos da comédia. Isso porque, ao mostrar o funcionamento do irracional e a relação entre o absoluto terror e a absoluta hilaridade, entre a blasfêmia e o horror, o surrealismo criou um tipo de ambivalência que equivale a um diálogo crítico sobre a natureza da comédia. Os primeiros filmes psicodramáticos da vanguarda americana certamente não têm nada de cômico; é praticamente impossível rir com eles; eles são terrivelmente sérios. São repletos de imagens de espelhos, de pessoas (jovens principalmente) atormentadas em busca de uma revelação sobre a sua própria sexualidade. A revelação nestes filmes iniciais nunca se coloca na sexualidade exuberante e orgásmica que temos no surrealismo, subentendida ou mostrada, mas sim numa sexualidade que está inserida num processo de definição mais do que de satisfação.

Outra transformação dos materiais do surrealismo, especificamente Um cão andaluz, no cinema de Maya Deren e Alexander Hammid, tão exemplar quanto a comparação das duas cenas da janela, seria uma comparação entre o instrumento de hostilidade sexual em cada filme. Em ambos existe obviamente uma hostilidade sexual, uma agressão do homem sobre a mulher. No filme de Buñuel, como a protagonista reage quando o homem começa a lhe acariciar? Ela corre de um jeito engraçado, pula por cima da cama e apanha uma raquete de tênis da parede – uma imagem surrealista, cômica e irracional. No outro filme, o instrumento é uma faca, a qual, significativamente, é também um espelho. Quando usada no ataque, a faca destrói a imagem refletida do homem. Assim podemos ver uma transformação clara do herói irracional para o reflexivo.

Outro exemplo desse diálogo entre Eros e a consciência é o primeiro cinema de Stan Brakhage. Ele começou um pouco depois do que Anger, Markopoulos e Curtis Harrington, e certamente bem depois do que Maya Deren, os criadores do cinema psicodramático, mas rapidamente compensou o atraso com uma produção tremendamente prolífica. Quase todos os primeiros filmes de Brakhage descrevem uma aflição sexual parecida com a de Fireworks, mas em termos heterossexuais. Colocando-se o filme de transe como a base e a origem do cinema de vanguarda americano, me parece que a melhor maneira de se estabelecer uma morfologia diacrônica seria tomar dois trabalhos do mesmo homem, um inicial e um mais recente, e compará-los. Vou mostrar para vocês primeiramente duas partes de um filme de três partes feito por Stan Brakhage, chamado Reflections on Black, de 1955, e depois mostrarei todo o Thigh Line Lyre Triangular, de 1961. Com a comparação destes dois filmes podemos começar a construir uma morfologia histórica.

Mas antes vamos resumir por um momento. Até agora venho tentando insistir que basicamente a história de qualquer arte é caracterizada por uma perpétua máquina de mudança. Isso é ainda mais verdadeiro para a arte contemporânea. Além disso, uma obra de arte reage de uma maneira bastante específica à sua história imediata. Se aceitamos essas premissas, então o filme de Brakhage, Reflections on Black, pode ser descrito como aspirante a algo novo, ou constantemente na busca por uma nova forma que ainda não nasceu. A estrutura do filme é mais ou menos a seguinte: um homem cego, tendo aparentemente saído de um encontro com uma prostituta, sobe três andares e, a cada andar, ele presencia uma cena visionária na qual fantasia, imaginação e visão estão misturadas. Os três eventos estão interligados por uma estrutura temática.

Uma questão que gostaria de apontar é que geralmente ao se discutir essas imagens, fala-se num diálogo entre ilusão e realidade que é, ele próprio, ilusório. O cineasta de vanguarda americano não se coloca a questão “é real ou não é”; em vez disso projeta todo o cinema para a imaginação, que é colocada como a maior função da arte, e a câmera entendida como uma ferramenta imaginativa. Dessa maneira, o domínio em que vemos as coisas é o da imaginação, e a imaginação dentro desse domínio é elevada para além de questões de verdade ou ilusão. Aparentemente, Brakhage estava tentando estender sua investigação pessoal para uma afirmação geral, comparando três investigações diferentes. Ele está buscando uma forma mais sintética do que o filme de transe. Em Reflections on Black, encontramos indicações primárias das postulações estéticas que dominariam seus filmes posteriores, nos quais a matéria física do filme é usada da maneira mais complexa. Por exemplo, vemos o homem cego intercalado com flashes, flares, tela preta e branca, o tipo de coisa que acontece na câmera no fim de um rolo por causa da exposição à luz. Qualquer pessoa que lide com filme conhece isso. Brakhage usa esses flares como “metáforas da visão”, para citar o título de seu livro. Para criar ênfase, vemos traços brancos riscados sobre os olhos do homem cego, metáforas ao mesmo tempo da sua cegueira e da sua experiência visionária. Ao atacar a superfície do filme e usar basicamente materiais gerados cinematograficamente, Brakhage começa a afirmar uma equação que veremos cada vez mais claramente estabelecida no seu trabalho. Essa equação tripla combina a experiência estética com o processo de feitura do filme e a busca pela consciência. Formalmente, Reflections on Black segue tradições literárias. Uma personagem que vê três episódios diferentes é uma forma temática padrão na literatura.

No filme que Brakhage fez praticamente ao mesmo tempo, The Way to Shadow Garden (1954), ele mostra um jovem numa espécie de agonia espiritual e sexual chegando em casa, vagando pelo seu quarto, tentando ler, fumando um cigarro, até que em dado momento ele quebra um copo e cega a si próprio, numa imagem claramente referente à clássica máscara de Édipo, o que nos dá uma pista sobre a natureza específica da sua agonia. Então o vemos com sangue correndo pelas faces. De repente, o filme se torna negativo: seu rosto está preto, o sangue é branco; e ele cambaleia até um jardim noturno, onde as flores são brancas e a atmosfera é negra, e ali o filme termina. Essa imagem resolutamente visionária é totalmente dependente da reflexividade intrínseca ao negativo e positivo fotográfico e de cinema, a qual é em último nível (apesar que de uma maneira mais crua) um eco da preocupação espiritual que temos na poesia do final do século XIX, quando os poetas começam a ter consciência de que as palavras são o seu material e começam a ver a si próprios como o que Mallarmé chamou de “os guardiões das palavras da tribo”. Mallarmé é o exemplo primordial de poeta das palavras físicas e não das palavras ilusórias.

O cinema, mais do que qualquer outra arte, é assombrado pelo realismo; o cinema de vanguarda, especialmente nos Estados Unidos, teve uma assombração inversa. Oprimido pelo realismo, ele foi conduzido à ideia de objetividade absoluta na apresentação da tela como objeto.

Portanto, entre 1955 (Reflections on Black) e 1961 (Thigh Line Lyre Triangular), vemos uma transformação significativa do espaço. O espaço pelo qual vaga o sonâmbulo nos primeiros filmes de Brakhage, que é em última instância o espaço realista herdado dos irmãos Lumière, aquela diagonal longa, desaparece. (A propósito, em Maya Deren há um tipo diferente de espaço, um espaço subjetivo. Em um estado de profunda introspecção, ela sobe as escadas, e a câmera se move de um jeito em que as paredes parecem colidir contra ela. Mas esse estado era subjetivo de uma maneira literária. Percebe-se que, quando a câmera se mexe subjetivamente ou quando há superposição nos primeiros filmes de Deren, Anger e Markopoulos, esse espaço interior é de alguma forma irreal. Persiste no filme de transe psicodramático uma noção insidiosa do espaço cinematográfico tradicional.) Em Thigh Line Lyre Triangular, vemos um espaço radicalmente novo. Passagens de tela preta, tela branca e de película pintada à mão transformam nossa noção de profundidade. O filme começa com um borrão pintado, uma pincelada em cima do filme, e dessas paisagens pintadas surge uma profundidade feita de imagens. Essas não são imagens aleatórias, mas de uma experiência extremamente intensa: são as imagens de um parto.

A própria tinta fornece uma matriz de transformação na qual os pássaros se misturam com imagens inquietantes de animais. Os filmes de Brakhage de 1958 até o início dos anos 1960 constituem o que pode ser chamado de filme lírico; o cinema da visão direta, que presume um cineasta atrás da câmera. Não temos mais as meditações de uma personagem no filme; ao invés de um protagonista, temos a tela tomada por movimentos que expressam a ideia de um homem olhando para alguma coisa. É uma experiência intensa de visão. Brakhage conta, e podemos acreditar, que ele literalmente viu as cores e os flashes de imagens de animais que aparecem em Thigh Line Lyre Triangular, enquanto assistia ao nascimento de seu segundo filho. Então para ele o filme não é nada mais do que um documentário absoluto da sua experiência visual naquele momento.

Brakhage funde o espaço cinematográfico com o espaço que assimilamos ao longo de 20 anos de expressionismo abstrato. Vemos de fato uma coincidência de planos na profundidade fotográfica, na ilusão cinematográfica e na superfície pintada que lembram a mistura de fotografia com pintura no trabalho de Robert Rauschenberg. Brakhage não inventou o filme lírico; este também teve suas próprias origens. Marie Menken filmou suas flores e coisinhas despretensiosas. Trabalhando sozinha, nos anos 1940, ela fez um cinema que estava muito à frente do seu tempo. Brakhage foi um dos poucos que lhe deu importância. Ele assistiu aos trabalhos dela; e quando ele superou o período de intensa busca por si mesmo, seu período freudiano, ele absorveu de Marie Menken uma ideia de câmera livre e a metáfora desta como uma visão sensual. Ele também absorveu de Ian Hugo, que fez Bells of Atlantis (1952-1953), um modo de criar e achatar o espaço através de sobreposições. Esses trabalhos iniciais da década de 1950 de Ian Hugo (Bells of Atlantis e alguns de seus outros filmes) e de Marie Menken (tais como Glimpse of the Garden, 1957) originaram uma nova forma, que pode ser chamada de filme lírico. É a afirmação poética do Eu, a primeira pessoa; da mesma forma que o filme de transe deve ser claramente uma afirmação da terceira pessoa tradicional no cinema.

É interessante comparar Reflections on Black e Thigh Line Lyre Triangular com Window Water Baby Moving (1958-1959), o registro do nascimento do primeiro filho de Brakhage. No filme anterior há um diálogo entre ver o nascimento e o drama do nascimento. O espectador aguarda o nascimento da criança com a mesma expectativa alegre do realizador/pai. O cineasta parece estar no limite de transferir uma experiência dramática para uma visionária. Em Thigh Line Lyre Triangular a cena inteira se dissolve numa experiência visual que mistura a realidade fotográfica com pintura e imagens mentais.

No começo dos anos 1960, Brakhage começou a mudar de direção. Ele começou a fazer Dog Star Man (1961-1964), um filme épico baseado no ciclo das estações, e começou a encontrar um novo tipo de forma dramática isenta de tensão, na qual ele poderia combinar elementos temáticos que delineassem uma história com o filme lírico. O tema de Dog Star Man se tornou um mito geral sobre nascimento, morte, sexo e a estética da situação cinematográfica básica. Comparando Reflections on Black com Thigh Line Lyre Triangular, vemos uma transição, no caso de Brakhage, do filme de transe para o filme lírico.

Da mesma forma podemos comparar dois filmes de Kenneth Anger. Fireworks é um filme linear: vemos esse jovem passar por um encontro erótico de autodescoberta. Termina onde começou: num sonho. Pulando alguns filmes será possível entender mais claramente o nosso caso: vamos ver um trecho de Scorpio Rising (1962-1963).

Obviamente uma verdadeira transformação ocorreu entre Fireworks e Scorpio Rising. Desaparece a unidade rígida de espaço na qual uma personagem sonâmbula caminha. Desaparece também a personagem sonâmbula. Ao invés disso vemos o líder dos motociclistas no seu quarto. O próprio quarto é uma enorme metáfora. A parede atrás dele é praticamente um gráfico do seu inconsciente. Ele pendurou ali tudo o que significa alguma coisa para ele. É um espaço iconográfico marcado por James Dean, Marlon Brando, uma suástica etc. O quarto tem uma televisão, que funciona neste filme como um reator estético. Olhando para a televisão, somos confrontados ao mesmo tempo com a experiência estética da ilusão e com uma série de metáforas sobre a vida contemporânea. Numa imagem extraordinária de liberação romântica, Anger combina o uso irônico da música Heat Wave com a imagem na televisão de pássaros saindo de uma gaiola e uma fotografia de um monstro (uma imagem roxa pastosa e espalhafatosa), em basicamente dois segundos de êxtase byroniano, invocando um mito romântico superior. Essa montagem paradoxal é constantemente irônica: ela fala de liberação e limitação; a liberação do seu próprio entusiasmo exuberante, e a limitação da falsificação. O filme inteiro é estruturado dessa forma. Uma série de paralelos mitográficos entre diversos heróis (o herói da motocicleta; Marlon Brando, que aparece na televisão em O selvagem [The Wild One, Laslo Benedek, 1953]; Jesus Cristo, não diretamente, mas em segundo grau por meio de um velho filme de Cecil B. DeMille). O espaço varia entre o espaço colorido da fotografia de Anger, o espaço irreal do filme hollywoodiano e o espaço plano das telas intercaladas. A montagem faz uma comparação entre Scorpio andando na rua e Jesus Cristo; também temos um depoimento sobre o que ele faria se fosse Jesus, que é: se o mendigo estivesse ali, ele o chutaria como chutou a roda da motocicleta, ele libertaria o mendigo, não com um pensamento mágico e a vontade de Deus, mas mostrando-lhe uma imagem pornográfica; então vemos um único fotograma de uma imagem pornográfica. E então vemos a imagem mais bem-acabada da sequência: quando este mendigo penitente, libertado, curado, cai de joelhos perante Cristo, o que Scorpio lhe oferece: um pênis ereto.

Este filme é incrivelmente complexo. É um filme mitográfico, uma comparação do mito do motociclista com o mito de Cristo, com o mito da estrela de cinema (o astro morto, James Dean, e o astro vivo, Marlon Brando), e com a noção nietzscheana bastante ambígua de poder que surge das imagens nazistas. O herói não é nazista, nem cristão, nem um astro; todos esses paralelos existem num lugar de simultaneidade que não tem a indicação de uma hierarquia específica de valores que nos faria mais confortáveis. A estrutura do filme é muito mais complexa que a de Fireworks, como era de se esperar; é uma série de episódios esquemáticos, marcados pelo uso de uma música diferente para cada, e a totalidade do filme é ao mesmo tempo um dia na vida de um líder motociclista e uma espécie de Via Crúcis dele, conforme ele passa por experiências arquetípicas, confrontando a morte o tempo todo, e encontrando imagens de absoluta liberdade. É também uma versão completamente nova do diálogo erótico; não mais uma busca pelo eu, mas uma apresentação simultânea dos opostos do eu como forças poderosas. Fundado no tema da apoteose, Scorpio Rising basicamente compara o seu herói com as figuras mais poderosas do mundo de hoje (Fidel Castro aparece ali), do passado (pois a figura mais demoníaca na história da humanidade é Adolf Hitler, na mentalidade contemporânea), e com Deus, na imagem de Cristo.

Essa transformação do filme de transe para o filme mitográfico é uma invenção de Anger. Ao mesmo tempo, Brakhage fez Dog Star Man, um filme sobre as estações e sobre a tentativa de um homem primitivo de subir uma montanha, sua queda, seu renascimento. Anger não assimilou essa forma a partir de Brakhage, nem Brakhage a partir dele; foi um processo simultâneo. Na mesma época, Gregory Markopoulos, que havia feito um psicodrama chamado Swain, estava fazendo Twice a Man (1963-1964), um filme sobre o renascimento, uma vez como homem, outra como um deus; um filme com quatro personagens com personalidades interligadas. Nesse filme vemos o herói nascer no paraíso, do mesmo jeito que, no final de Dog Star Man, vemos o homem transportado aos céus para se tornar uma constelação, e do mesmo jeito que existe constantemente a imagem da apoteose pairando sobre Scorpio Rising. Todos estes filmes foram feitos na mesma época, em torno de 1963 e 64. No filme de Brakhage temos microfotografia, microscopia de magnitudes extremas; até veias capilares conseguem ser vistas. Passamos de veias capilares para explosões na superfície do sol, para imagens do Dog Star Man na sua subida, imagens de sua esposa, sua família, as árvores, montanhas, em variações súbitas de espaço e de escala. Com Anger temos um tipo diferente de espaço, um espaço reconstruído a partir da ilusão. No filme de Markopoulos vemos um espaço definido principalmente pela simultaneidade, através da inserção de fotogramas únicos de um local diferente em um tempo diferente, de modo que o filme, avançando com o ritmo da música, de repente arrebenta em explosões de lembranças. Em outros filmes houve a mesma mudança: Ron Rice, que havia feito uma espécie de filme de transe beat chamado The Flower Thief (1959-1960), subitamente faz The Queen of Sheba Meets the Atom Man (1963-1981), usando as mesmas pessoas, mas com uma estrutura diferente; o filme é elevado ao nível de mitologia popular. Ed Emshwiller, que no início dos anos 1960 produziu uma visão pessoal de uma tensão psíquica chamada Thanatopsis (1962), estava nessa época fazendo Relativity (1966), um filme com uma visão geral científica e subjetiva do mundo, alternando entre as estrelas e o indivíduo. Harry Smith nessa época estava fazendo seu filme de animação épico, Heaven and Earth Magic (1950-1961), um filme de um escopo verdadeiramente dantesco, um enorme trabalho mitopoético. Nem todos os filmes são mitográficos, muitos são o que chamaríamos de mitopoéticos. Um filme mitopoético não se refere a mitos específicos, não faz comparação entre mitos tradicionais, mas assume a estrutura mítica, tenta criar uma imagem mítica, renovando um mito antigo, ou criando um mito completamente novo.

The Illiac Passion (1964-1967), de Markopoulos, é um dos filmes mitopoéticos mais recentes. De certa maneira marca o fim desse desdobramento do cinema. Na mitopéia passamos, com relação à forma, de um filme linear que conduz a uma conclusão impactante ou enigmática para um filme caracterizado pelo que Ken Kelman chamou de tectônica total, um filme totalmente arquitetônico feito de muitas partes onde os elementos se acumulam em grandes ondas e descendem em movimentos rítmicos, uma espécie de trabalho sinfônico. Outro filme desse mesmo período, curiosamente também mitopoético, é Flaming Creatures (Jack Smith, 1962-1963), um filme que, a partir da mitologia de Hollywood, das Mil e uma noites e dos filmes de Maria Montez, constrói a imagem de um mundo repleto de monstros e feras, semideuses e deuses. Markopoulos explicitamente nomeia as personagens de The Illiac Passion com os nomes de deuses, mas o seu filme é sobre os contrários, o diálogo do Eu. Em termos psicológicos é possível dizer que houve uma transformação de um ponto de vista freudiano para um jungiano, de um interesse pela descoberta do Eu para um interesse na representação cinematográfica do inconsciente coletivo. Não estou dizendo isso para sugerir que todos os cineastas leram Freud e depois leram Jung.

Essa morfologia histórica descreve uma tendência geral. Descrevi em primeiro lugar essa transformação do episódico para o tectônico total. Como todos esses filmes de que falamos são apocalípticos, eles retornam ao tema da imaginação dos psicodramas. Os primeiros filmes apocalípticos são episódicos, como The End (1953), de Christopher Maclaine, onde vemos diversas pessoas no último dia de suas vidas, que pode também ser o último dia da Terra. O filme tenta encontrar alguma coesão, mas acaba caindo no episódico. O que ocorreu entre as décadas de 1950 e 1960 foi o crescimento de uma forma que podia conter diversas personagens e episódios simultâneos, além de mudanças de espaço extraordinárias; um cinema comparativo, com uma organização sinfônica de partes construindo um todo mitopoético enorme. Em outro contexto chamei esse processo de uma mudança de um cinema da conjunção para um cinema de metáfora. Explico: há um cineasta austríaco cuja trajetória correu de maneira bastante simétrica à vanguarda americana e que se tornou parte dela, Peter Kubelka. O seu primeiro filme, feito por volta de 1951, se chama Mosaik im Vertrauen (1951-1955), e seu filme mais recente, concluído em 1966, se chama Unsere Afrikareise (1961-1966). O primeiro tem um título muito apropriado porque é um mosaico, uma multiplicidade de pequenos episódios selecionados para dar uma sensação de simultaneidade em Viena. Ele é muito mais irônico, mais cruel, do que os filmes de vanguarda americanos iniciais, mas apesar disso ele compartilha com eles uma busca pela identificação sexual. De qualquer maneira, esse movimento de um filme-mosaico para Unsere Afrikareise, que é uma visão contínua e fluida de um safari africano com o som intercalado na imagem de uma maneira que nunca foi feita antes nem depois, é um movimento da fragmentação para a metáfora. Unsere Afrikareise é um filme complexo em que somos levados de um fato ao outro de uma maneira totalmente arquitetônica; e essa sensação de arquitetura total é característica, embora não absolutamente, do filme mitopoético, da criação de um novo mito.

É errado pensar, como eu pensava em 1964, numa simples evolução. Olhando agora, vejo uma conquista permanente no cinema do final dos anos 1940. E observando o que aconteceu desde 1964, fica bastante claro que não podemos usar em arte termos historicistas como “aprimoramento”; podemos falar de maneira razoável apenas de mudanças. Agora a pergunta que surge é “o que aconteceu desde então?”. Descrevemos, de forma bastante esquemática, uma evolução do final da década de 1940 e início da de 1950 até meados dos anos 1960. O que aconteceu depois? Eu chamo o estágio seguinte de filme estrutural. São filmes que se organizam de forma muito explícita em torno de dispositivos estéticos: a câmera fixa; filmar um negativo e depois refotografá-lo fora da tela de modo que se perde a profundidade de campo; o filme em loop, onde imagens são repetidas uma após a outra; e o flicker film. Em um filme estrutural, a forma total é aparente. Depois de um minuto, você sabe o que vai acontecer. Ao terminar de assistir Scorpio Rising, a forma total não está necessariamente perceptível de maneira imediata; após assistir Flaming Creatures, o espectador não consegue definir a estrutura da forma. No filme estrutural, a primeira e mais importante impressão que temos no momento que o filme acaba é a de uma forma total que acabamos de ver. Em alguns aspectos, embora a comparação não possa ser levada ao extremo, é semelhante ao que se chama arte minimalista, assim como o filme lírico, de certas maneiras, se aproxima do expressionismo abstrato. O filme de transe tem uma base freudiana, e vemos um único protagonista, que muitas vezes é o próprio cineasta, na busca por si mesmo. No filme mitopoético, a base é jungiana, o assunto é o mito, e todas as figuras míticas se acumulam num vórtice como os opostos de um único sujeito; além disso, o filme começa a ser sobre a natureza do cinema. No filme estrutural, o protagonista desaparece completamente, não há mediador psicológico, há um repúdio à psicologia. Vou mostrar um filme estrutural de George Landow: The Film That Rises to the Surface of Clarified Butter (1968).

Aqui há uma granulação da textura e um achatamento do espaço. No filme estrutural, o olho pratica uma meditação. E não é de se surpreender que Landow tomaria esse título irônico The Film That Rises to the Surface of Clarified Butter de um trabalho místico, no caso os Upanixades que se referem à manteiga ghee: o filme gorduroso, que se eleva à superfície da manteiga clarificada. Não é de se surpreender que seu filme anterior se chamasse Bardo Follies (1967), alusão irreverente ao paraíso tibetano do reino absoluto. Este é um cinema de meditação sem o intermediário psicológico.

E depois disso, o que veio? Estamos bem no meio das dores de uma transição. Nos últimos anos vimos filmes como Zorns Lemma (Hollis Frampton, 1970), Bleu Shut (Robert Nelson, 1971), Remedial Reading Comprehension (George Landow, 1970). Filmes que envolvem o público intimamente, cada um à sua maneira. Zorns Lemma se baseia em permutações do alfabeto, seguido de uma única imagem com o áudio de uma tradução do latim de um longo texto filosófico de Grosseteste a respeito da natureza da luz. Bleu Shut incita o público a adivinhar os nomes incrivelmente estúpidos de alguns barcos; há um relógio o tempo todo na tela de modo que se sempre sabe quanto falta para o fim do filme; logo no início alguém diz que o filme terá trinta minutos de duração, mas na verdade tem 38 minutos. E então, em Remedial Reading Comprehension, somos envolvidos num processo didático: uma aula de recuperação de leitura mesclada com uma série de reflexões autobiográficas indiretas. O filme estrutural monocromático, simples e meditativo está se inclinando fortemente para essa nova área de construções temáticas que envolvem a plateia. Do mesmo jeito que o próprio Brakhage e Markopoulos, ao mesmo tempo que Michael Snow e Landow, também fizeram filmes estruturais; Brakhage fez um filme chamado My Mountain Song 27 (1968) sobre um objeto, uma meditação sobre uma montanha; Gregory Markopoulos fez um flicker film chamado Gammelion (1967) com breves inserções de imagens tão rápidas que não há mais distinção entre se elas são fixas ou em movimento; Paul Sharits começou a fazer um cinema em que as diferenças entre animação e fotografia se desmancham porque as imagens aparecem de maneira extremamente rápida e esquemática.

Os antigos mestres continuam mudando de acordo com essa morfologia diacrônica, e então surgem novos mestres e, quando eles adentram o cinema, é no seu estágio mais novo. Michael Snow não chega ao cinema fazendo um filme mitopoético ou um psicodrama; ele chega num determinado momento, há alguma coisa no ar; ele faz parte dessa forma, ele faz um filme estrutural. Isso leva a uma postulação geral para a qual esta palestra se direciona. A grande aspiração não assumida do cinema americano de vanguarda tem sido a mímese da mente humana em uma estrutura cinematográfica. Começando com a tentativa de traduzir sonhos e outras revelações do inconsciente subjetivo nos filmes de transe, passando pela reprodução do ato de ver no filme lírico e do inconsciente coletivo no filme mitopoético, este cinema tentou definir a consciência e a imaginação. Suas tentativas mais recentes abordaram a forma da meditação (filme estrutural) com o intuito de evocar mais diretamente os estados de consciência e os reflexos da imaginação no espectador. Os filmes temáticos recentes seguem a direção indicada pelo cinema estrutural de encontrar correlatos para a consciência. Landow e Nelson propõem o ato de assistir a um filme como um teste; Frampton coloca a montagem como uma função lógica e a construção cinematográfica como um sistema de pensamento.

Até agora venho mostrando esse processo de maneira diacrônica, e gostaria de, muito rapidamente, sugerir uma maneira de olhá-lo como uma forma sincrônica através da história. Fiz isso através de uma tabela:




ABSTRATO
FICTÍCIO



ANALÍTICO
Imagista/Retrato
Filme de transe




Deren: A Study in Choreography for Camera
Brakhage: Reflections on Black

Anger: Eaux d’artifice
Deren: Tramas do entardecer


Anger: Fireworks


Markopoulos: Swain



SINTÉTICO
Filme estrutural
Tectônico




Snow: Wavelength
Markopoulos: Twice a Man

Landow: The Film That Rises to the Surface of Clarified Butter
The Illiac Passion

Jacobs: Tom, Tom, the Piper’s Son
Brakhage: Anticipation of the Night

Markopoulos: Gammelion
Anger: Inauguration of the Pleasure Dome


Scorpio Rising



CONFESSIONAL
Lírico
Diários




Brakhage: Thigh Line Lyre Triangular
Mekas: Diaries Notes and Sketches


Noren: Kodak Ghost Poems



ANATÔMICO
Temático     
Picaresco




Conner: A Movie
Rice: The Flower Thief

Anger: Invocation of my Demon Brother


Frampton: Zorns Lemma


Nelson: Bleu Shut



Quando que esses cineastas começaram a fazer filmes? Nos anos 1940 Maya Deren havia escrito poesia; James Broughton era e continua sendo um poeta publicado; Christopher Maclaine era poeta; até Brakhage era poeta e dramaturgo; Sidney Peterson era um romancista, Willard Maas era um poeta no final dos anos 1940. Qual era a situação da poesia no fim dos anos 1940? Wallace Stevens publicou Transport to Summer (incluindo Notes Toward a Supreme Fiction) em 1947; em 1950, ele publicou The Auroras of Autumn. William Carlos Williams já havia publicado a maior parte de Paterson nos anos 1940, em 1950 publicou The Collected Later Poems, e em 1954 The Desert Music and Other Poems. Pound publicou The Pisan Cantos em 1948, e Robert Duncan o seu The Venice Poem em 1949. Esses cineastas faziam parte do ambiente que criou essa poesia e compartilhavam uma visão de mundo na qual Stevens era um ideal, Duncan era uma nova esperança, e Pound um caso trágico de um poeta envolvido em um dilema político. Escutem o que esses cineastas têm a dizer sobre seu próprio trabalho.

Brakhage, em Metaphors on Vision, fala:

Eu diria que cresci muito rapidamente como artista cinematográfico no momento em que me livrei do drama como fonte principal de inspiração. Comecei a sentir que toda a história, toda a vida, tudo o que eu teria de material para trabalhar teria que vir de dentro de mim para fora, e não como uma forma imposta a mim de fora para dentro. Eu tinha a ideia de que tudo irradiaria de mim, e que quanto mais pessoal e egocêntrico eu me tornasse, mais conseguiria tocar e me aprofundar nessas preocupações universais que envolvem todos os homens[4].

Em nenhum lugar a postura visionária do americano como cineasta se encontra mais claramente declarada. Há um depoimento delicioso de Gregory Markopoulos; ele diz na Film Culture:

Os realizadores que se uniram sob os auspícios da Cooperativa de Cineastas têm, cada um deles, aquele fogo divino e confiança que os gregos antigos chamavam de THRASOS... Para além disso, arriscaria sugerir que somente no filme como forma de arte – e isso significa experimentação imediata e contínua, criatividade, inspiração no trabalho – é que existe a verdade do que nos comprazemos em chamar de realidade[5].

E Jonas Mekas diz:

O novo artista, voltando seu ouvido para dentro, está começando a captar fragmentos da verdadeira visão do homem... Em certo sentido, uma arte velha é imoral – ela mantém o espírito do homem amarrado à cultura[6].

Por fim, Michael Snow fala sobre Wavelength, mas poderia ser qualquer cineasta visionário falando sobre o seu trabalho:

Eu queria fazer um resumo do meu sistema nervoso, minhas intuições religiosas e minhas ideias estéticas. Eu estava pensando, planejando, um monumento no qual a beleza e tristeza da equivalência seriam celebradas, pensando em tentar fazer uma afirmação definitiva de espaço e tempo cinematográficos puros, um equilíbrio entre “ilusão” e “fato”, tudo em torno da visão[7].

Temos aqui de maneira muito clara e definitiva uma continuidade da estética romântica.

Harold Bloom fala da sobrevivência romântica na poesia; ele poderia muito bem estar falando do filme de vanguarda:

A poesia modernista na língua inglesa se organiza de forma excessiva como uma suposta revolta contra o romantismo, na vã esperança de escapar dessa introspecção (embora fosse inconsciente o fato de esta ser a sua principal motivação)...

Ele afirma que:

Paul de Man nomeia esse fenômeno de dilema pós-romântico, observando que cada nova tentativa do modernismo de ultrapassar o romantismo termina na concretização gradual da prioridade permanente dos românticos.
Em nossa época começam tardiamente a proliferar “complementações” românticas de Freud, mas a crítica romântica dele, feita por Jung e Lawrence, não tocou na força do seu pessimismo erótico[8].

Nesta última citação, não estou tão interessando na precedência que Bloom vê em Freud, mas no modo bastante inteligente em que ele descreve Lawrence e Jung como críticos românticos da visão freudiana. Um crítico de literatura francês nos ajuda a definir esse fenômeno literário altamente contraditório. Maurice Blanchot está certo quando afirma:

Se pudéssemos abordar a primeira onda romântica com um olhar novo, veríamos que a sua característica mais surpreendente não é uma glorificação do instinto, nem uma exaltação do delírio, mas, ao contrário, uma paixão pelo pensamento e a necessidade quase abstrata da poesia de se refletir em si mesma e se autoconcretizar pelo seu próprio pensamento. Naturalmente a preocupação aqui não é com a arte da poesia, uma consideração secundária, mas com o amor pela poesia que é o conhecimento, com a sua essência que é a de ser uma busca, e uma busca por si mesma. Sendo a consciência não somente moral, mas também poética, a poesia não quer mais ser natural, mas apenas e absolutamente consciência.
O romantismo, advento da consciência poética, não é apenas uma escola literária e nem mesmo um momento importante nesta história da arte: ele marca o início de uma época: mais ainda, é a época em que todos os outros períodos se revelam porque através dela o objeto de todas as revelações é trazido à tona, o “eu” em toda a sua liberdade, sem aderir a nenhuma condição, sem reconhecer-se em nada específico, mas somente nos seus elementos – no seu éter – no TODO onde tudo é livre[9].

É uma situação paradoxal, e é a essência desse paradoxo que tem um certo magnetismo estético, na visão de Blanchot. Paul de Man, citado por Bloom neste último trecho a que irei me referir, também destaca o paradoxo e a contradição da reflexividade romântica:

Um imaginário abundante com uma quantidade igualmente abundante de objetos naturais, o tema da imaginação fortemente ligado ao tema da natureza, esta é a ambiguidade fundamental que caracteriza a poética do romantismo. A tensão entre as duas polaridades nunca cessa de ser problemática[10].

Neste romantismo temos: o mito do Eu, a afirmação dos contrários, as complicações da autorreflexão, a estética como objeto da problemática da arte, o papel do artista como visionário, e a predominância esmagadora do tema da consciência. Quando olhamos para o cinema vanguardista americano por uma perspectiva romântica, vemos que ele tem uma postura visionária na maneira como é usado por seus realizadores; vemos o seu envolvimento com seus próprios processos. É interessante como isolamos uma figura extremamente importante ao não mencioná-lo: Andy Warhol. A única pessoa absolutamente não-romântica nessa tradição, o parodista, um cineasta cujo trabalho trouxe o golpe crítico mais decisivo para o cinema de vanguarda americano; um homem que começou a fazer filmes e fez uma piada, uma enorme e grandiosa piada estética, em cima de todas as afirmações românticas do cinema de vanguarda, em cima da ideia do cineasta total. Ele ligava a câmera e ia embora. Ele criticava a ideia do cinema em movimento quando simplesmente deixava a câmera lá. No lugar do ator, ele criou astros. O cinema de Warhol, assim como a sua arte, é altamente crítico; o seu gênio funciona para esse tipo de crítica. Ele viu, creio eu, embora não esteja certo de que ele estivesse extremamente consciente disso, ele viu antes de qualquer um que o cinema de vanguarda americano era um sobrevivente do romantismo, e elaborou um ataque estratégico contra ele. Esse ataque foi uma das coisas que causou o nascimento do cinema estrutural. Os realizadores precisavam encontrar uma maneira de reincorporar os materiais do ataque de Warhol dentro de um cinema visionário, e o que aconteceu com Michael Snow, George Landow e o cinema estático foi essencialmente uma nova afirmação romântica em resposta a esse tremendo ataque estético crucial que Warhol havia feito.

Por fim, vou repetir que, para compreender o cinema de vanguarda americano como um todo, é preciso explorar as ideias imanentes compartilhadas pelos cineastas, embora eles não estejam sempre conscientes delas; e os dois conceitos persistentes que acompanharam a história desse gênero na América através de todas as suas formas: o primeiro, uma busca por uma forma que seria a imagem da consciência, e o segundo, uma ideia de abstração, que será o assunto de minha próxima palestra.


Notas:


[1] As quatro palestras foram realizadas por Sitney no Museum of Modern Art (MoMA) de Nova York, nos anos 1970. Os temas foram, em ordem de apresentação: “The Idea of Morphology”, “The Idea of Abstraction”, “The Myth of the Absolute Film” e “The Myth of the Filmmaker”. As duas primeiras foram publicadas na revista Film Culture; as outras não foram publicadas visto que, segundo o próprio Sitney, o livro Visionary Film (1974) as tornou redundantes. [N. do E.]

[2] Victor Erlich, Russian Formalism: History and Doctrine. Haia, 1965.

[3] Viktor Chklovsky, “Art as Technique”, em Russian Formalist Criticism, ed. Lee T. Leman e Marion J. Reis. Lincoln: University of Nebraska Press, 1965.

[4] Stan Brakhage, Metaphors on Vision. Nova York: Film Culture, 1963.

[5] Gregory Markopoulos, “Projection of Thoughts”, Film Culture n.º 32, primavera de 1964.

[6] Jonas Mekas, “Notes on the New American Cinema”, Film Culture n.º 24, primavera de 1962.

[7] Michael Snow, “A Statement”, Film Culture n.º 46, outono de 1967.

[8] Harold Bloom, “The Internalization of Quest-Romance”, Romanticism and Consciousness. Nova York: Bloom, 1970.

[9] Maurice Blanchot, “The Athaneum”, Art and Literature n.º 6, outono de 1965. Tradução: Sonya Brannell.

[10] Paul de Man, “The Intentional Structure of the Romantic Image”, Romanticism and Consciousness. Nova York: Bloom, 1970.


(Film Culture n.º 53-54-55, primavera de 1972, pp. 1-24. Traduzido por Clarice Dantas)

 

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