NOTÍCIAS DA ITÁLIA
por Eduardo Savella



Conhecer a verdadeira face do cinema de hoje é uma tarefa exigente. No Brasil, são produzidos em torno de uma a duas centenas de longas-metragens por ano, e uma quantidade ainda maior de curtas-metragens. Além disso, a maior parte destes filmes não é exibida nas salas de cinema, não está disponível nos serviços on demand nem livremente na web, limitando sua exibição à participação em festivais e ao compartilhamento pessoal. A orientação do espectador confuso também é fragmentada. Para além dos “veículos tradicionais de comunicação” que começam a ruir e da cultura dos festivais e prêmios que dita os filmes a serem vistos e recordados, existem muitos outros círculos alternativos que constroem variações e contraposições a esses cânones em permanente formação. O neófito interessado em conhecer a herança cultural do cinema se vê, portanto, diante do vasto museu dos filmes produzidos em cento e vinte anos, ao mesmo tempo em que experimenta com os pés a temperatura do lago desconhecido dos filmes feitos hoje no mundo. Não é preciso nadar até o fundo para imaginar sua natureza e qualidade. Cada filme, porém, constitui um objeto único e qualquer juízo a seu respeito só pode ser feito depois de uma inspeção generosa. Para encontrar as pérolas escondidas nas águas profundas, são necessários muita prospecção e muitos erros. Essa atividade é importante para entrever a imagem verdadeira, ou seja, fazê-la existir. É mudar a cultura por dentro, dando outro significado à sua superfície, evidenciando determinados elementos em detrimento de outros.

A quantidade de filmes produzidos na Itália é similar à dos filmes produzidos no Brasil, assim como sua fragmentação na distribuição e exibição. Como no Brasil, uma quantidade considerável de filmes italianos é lançada no circuito comercial do país, recebendo atenção suficiente dos veículos de informação. A Itália possui, também como o Brasil, uma densa história cinematográfica, por sua vez influente e decisiva como a de poucos países. É que a produção italiana do pós-guerra foi, por três ou quatro décadas, a prática radical do filme como arte popular de vanguarda. Roma, cidade aberta (Roma città aperta, 1945) torna-se com o tempo um dos pontos simbólicos da arte no século, e a atividade de seu realizador, Roberto Rossellini, também parece fechar e transcender a época através de seus últimos filmes históricos para a televisão, nos quais colocava em jogo sua utopia da difusão do conhecimento. O cinema, enquanto arte popular, esteve no centro da reflexão coletiva e da coerência estética. Nada o atesta melhor que o caráter crítico e a permanência do cinema de gênero do período (melodrama, commedia all’italiana, faroeste, horror, poliziottesco). O cinema brasileiro da época, inclusive, também constituiu fenômeno similar (mesmo quando não chegou ao mesmo nível de conjugação ou abrangência) e, muitas vezes, se mirou no exemplo italiano. A produção de hoje, em ambos os países, apresenta antes uma cisão, como as duas faces de uma esfera da qual apenas uma é iluminada. Um número minoritário de filmes representa para a maior parte das pessoas a totalidade de uma imagem que, no entanto, permanece oculta. Cabe perguntar se os filmes amplamente vistos hoje fazem jus ao papel que o cinema já se mostrou capaz de desempenhar. Antes de responder afirmativa e generosamente a esta pergunta, supondo a integridade artística dos cineastas celebrados, faz-se antes necessária, portanto, uma campanha de exploração naquela zona desconhecida.

É o que realiza hoje, no âmbito italiano, a crônica militante da manifestação “Fora da norma” (Fuorinorma. La via neosperimentale del cinema italiano), que divulga a face oculta como alternativa positiva, ainda que parcial, para a continuidade de uma qualidade coerente da cultura. Sua concepção de cultura é revolucionária, enquanto os modos de representação do cinema amplamente visto representam uma recrudescência em relação aos de muitos predecessores. É, no mínimo, uma boa ideia que nos lembremos, durante a lida cotidiana com as imagens e os sons (cada vez mais intensa e extensa), de não reprimir o que o cinema já se mostrou capaz de fazer, no que se refere a encapsular nossa felicidade, registrar nossa memória, influir nos sonhos. Acostumado à homogeneização dos modos de representação característica da ideologia onívora do ocidente, aquele não familiarizado com o álbum de formas que a história do cinema apresenta torna-se facilmente insensível a elas, e passa assim a esperar menos do cinema e de suas possibilidades reduzidas. O correlato deste efeito é a diminuição do espaço para a ambição dos criadores, que tende a desaparecer e desembocar na impertinência. Ora, a contracorrente consiste em reintroduzir os modos de representação alternativos no sistema circulatório do cinema de hoje, de modo que novas ideias alcancem mais uma vez as células.


O festival “Fora da norma”


No mês de dezembro de 2017 foi realizada em Roma a primeira edição de um festival de cinema no-budget – o Fuorinorma. La via neosperimentale del cinema italiano – com a seleção de vinte filmes italianos recentes projetados, quatro vezes cada, em uma dezena de salas do circuito alternativo romano. A segunda edição foi realizada entre outubro e dezembro de 2018 com uma nova seleção de sessenta filmes projetados duas vezes cada em vinte salas romanas. A grande maioria das sessões contou, ao menos uma vez para cada filme, com a presença do cineasta ou de um membro da equipe e com introdução do curador, além da distribuição de folhas de sala com ficha técnica, filmografia e nota de intenções do autor. Além disso, desde 2017 a Associazione Culturale Fuorinorma realiza regularmente, junto às salas parceiras, sessões especiais em moldes semelhantes. No-budget quer dizer sem nenhuma espécie de patrocínio: os gastos logísticos são cobertos com os bolsos da associação que persegue, em todo caso, formas de financiamento (privado ou estatal) desde seu início, com perspectiva mais promissora após dois anos de intensa atividade. As salas de exibição tornam-se, portanto, parceiras da manifestação: trata-se de salas de projeção de instituições e teatros (Teatro dei Dioscuri, AAMOD, MACRO), cineclubes underground (Apollo 11, La Camera Verde), cinemas de rua (Palladium, Aquila, Farnese, Azzurro Scipioni), instituições públicas especializadas (Cinema Trevi, Casa del Cinema), salas de projeção da rede de bibliotecas do subúrbio (uma vintena de bibliotecas prontas para receber uma programação de filmes). O festival é, deste modo, um verdadeiro mapa do circuito alternativo.

A seleção de filmes do “Fora da norma” – aos cuidados de Adriano Aprà, o idealizador do projeto – é uma prospecção de pérolas e de ostras. A qualidade dos filmes escolhidos é heterogênea. Como escreve Aprà no texto de introdução à seleção, não se trata de fazer história, mas crônica militante. Esta expressão sugere uma ação crítica ainda mais ativa e próxima de seu fenômeno complexo, um jornalismo engajado em pleno front, aberto para a compreensão de multiplicados componentes menores que, juntos, constituem a outra metade da figura. É a constatação de que nela (cabe perguntar a que ponto essa tese se estende ao cinema mundial) funciona atualmente uma pulsão “neoexperimental”, cuja caracterização é desenvolvida no mesmo texto; ao mesmo tempo, é a atribuição de uma potência de florescimento a um cinema hoje virtualmente invisível. Ao reconhecimento de outro cinema italiano que se delineia ao largo do cinema italiano, acrescenta-se uma segunda constatação, a saber, a respeito da desarticulação de seu projeto, no entanto sincrônico: muitos destes cineastas não tomam conhecimento dos filmes uns dos outros. O outro aspecto da ação subversiva é o de dar a conhecer o outro cinema italiano a si mesmo, com o objetivo de fazê-lo germinar – reunindo as sementes dormentes para uma possível articulação coletiva de ideias e projetos, uma estruturação positiva de um novo método de cultivo frente à crescente esterilidade da terra.

A seleção conta hoje com noventa títulos escolhidos dentre os filmes italianos produzidos desde 2006. É suficiente acenar aqui, antes de um passeio sintético e de um esboço de estudo, que tais filmes são, em sua maioria, filmes de baixo orçamento fundados no documentário e no ensaio, possibilitados, em certa medida, pela maior flexibilidade do aparato digital, cuja forma parece nascer da curiosidade espontânea e não sistematizada de seus meios. Tal experimentação raramente se volta para o estudo do próprio aparato e da morfologia do cinema, nem representa um fim em si mesma: antes, constitui uma aplicação de canais de expressão alternativos (dissonantes dos modos atualmente hegemônicos de representação em seus respectivos gêneros) aos mais diversos temas de estudo e formulações retóricas. As soluções formais aplicadas ao tema tendem a ser originais – praticadas localmente em cada momento do filme, justamente como experimentos sucessivos –, frequentemente idiossincráticas e raramente inexpressivas. Reconhecimento de pulsões dominantes: o cineasta frequentemente está presente no filme como elemento dialógico em relação ao tema (ele está implícito em Upwelling: La risalita delle acque profonde [Pietro Pasquetti, 2016], La ville engloutie [Anna de Manincor e Zimmer Frei, 2016], ‘77 No Commercial Use [Fulvio Baglivi, 2017]; explícito em Terceiro Andar [Luciana Fina, 2017], My Sister Is a Painter [Virginia Eleuteri Serpieri, 2014], Senza di voi [Chiara Cremaschi, 2015], Archipels nitrate [Claudio Pazienza, 2009], Sassi nello stagno [Luca Gorreri, 2016], Filmstudio, mon amour [Toni D’Angelo, 2015], Memorie: In viaggio verso Auschwitz [Danilo Monte, 2014]; é matéria em si para Il peggio di noi [Corso Salani, 2006], performer em Hippopoetess [Francesca Fini, 2018], está simplesmente justaposto em La vita al tempo della morte [Andrea Caccia, 2010]; alguns filmes aproximam-se da autoficção – Radio Singer [Pietro Balla, 2009], Lepanto – Último Cangaceiro [Enrico Masi, 2016-2017]); a reciclagem de filmes de arquivo é um método frequente para uma leitura do passado em relação ao presente (Archipels nitrate, Il treno va a Mosca [Federico Ferrone e Michele Manzolini, 2013], Filmstudio, mon amour, Radio Singer), ou para a releitura de uma fatia do passado (La ragazza Carla [Alberto Saibene, 2015], Formato ridotto: Libere riscritture di cinema amatoriale [Home Movies, 2012], ‘77 No Commercial Use), ou então como elemento distópico (Terra [Marco De Angelis e Antonio Di Trapani, 2015]). Da distopia ficcional-ensaística (Ananke [Claudio Romano, 2015], La città senza notte [Alessandra Pescetta, 2015]) ou feérica (La bocca del lupo [Pietro Marcello, 2009]) à interrogação dos fantasmas da utopia para uma situação do presente em crise (Senza di voi, Il treno va a Mosca, Filmstudio, mon amour, Lepanto), encontram-se filmes que realizam verdadeiras operações de renascimento das mesmas (Radio Singer, Sassi nello stagno, intervenção dadaísta burlesca em Abacuc [Luca Ferri, 2014]), que simplesmente documentam manifestações atuais de uma utopia (Il fascino dell’impossibile [Silvano Agosti, 2016]), ou que demonstram a existência de um presente harmônico sem passado (Festa [Franco Piavoli, 2016], Jointly Sleeping in Our Own Beds [Saverio Cappiello, 2017]). Pulsão política: estado atual do país (Morire di lavoro [Daniele Segre, 2008], Patria [Felice Farina, 2014], Essi bruciano ancora [Felice D’Agostino e Arturo Lavorato, 2017]), historiografia do movimento operário (Formato ridotto, Il treno va a Mosca, Radio Singer, La ragazza Carla), panfleto performático (Bullied to Death [Giovanni Coda, 2016], Dusk Chorus [Nika Šaravanja e Alessandro D’Emilia, 2016-2017]). Quase todos traçam caminhos de exploração e questionamento da falta intrínseca a uma civilização falida (recusam uma saída cínica para questões mal resolvidas; são filmes sobre purgatórios ou purgadores). Purgação familiar (The Good Intentions [Beatrice Segolini e Maximilian Schlehuber, 2016-2017], Memorie: In viaggio verso Auschwitz), purgação coletiva de tragédia natural (Appennino [Emiliano Dante, 2017], Upwelling). O motivo da viagem gera filmes nômades e internacionais que buscam uma imagem cosmopolita do mundo (afásica em Flòr da Baixa [Mauro Santini, 2006], intelectual em Spira Mirabilis [Massimo D’Anolfi e Martina Parenti, 2016], afetiva em Al di là dell’uno [Anna Marziano, 2017], desesperada em Lepanto). Projetos meteóricos e idiossincráticos (o monótono e impetuoso Macbeth em preto e branco de Macbeth – Neo Film Opera [Daniele Campea, 2018], a comédia caseira de dispositivo em Il Negozio [Pasquale Misuraca, 2016-2017], a releitura de Ermanno Olmi em Il mattino sorge ad est [Stefano Tagliaferri, 2014], o cinema abstrato nas três sessões de Le porte regali [Morgan Menegazzo e Mariachiara Pernisa, 2015-2018]).


Pérolas atiradas na lagoa


A título de exploração do numeroso conjunto de filmes proposto pelo “Fora da norma” e do qual, tendo acompanhado a segunda edição do festival em 2018, conheço apenas metade, é justo analisar e relacionar alguns dos filmes a partir da sua relação com o passado: entre a assombração de um ideário mal resolvido e reprimido em nossa época desprovida de um novo projeto de civilização ao respectivo processo de desassombração e consequente obtenção de uma visão renovada. Ajustei a escolha dos exemplos com o juízo de valor (vários dos filmes comentados são meus preferidos dentre os que vi da seleção). Naturalmente, tal caminho analítico que esboço pode ser traçado virtualmente em número infinito de combinações entre os noventa filmes, assim como cada um deles pode ser analisado em comparação com filmes de outros conjuntos, italianos ou não. Um exercício interessante seria o de encontrar exemplos equivalentes no cinema brasileiro hoje, por exemplo.

A história do Salso Film & TV Festival, realizado no vilarejo de Salsomaggiore Terme durante os anos 1980, é o tema do documentário Sassi nello stagno, presente na seleção “Fora da norma” (“sassi nello stagno” quer dizer “pedras atiradas na lagoa”, e é uma expressão que se refere aos ecos e consequências desejadas que uma ação engendra a longo prazo). O caráter desse festival, por sua vez, era menos o de uma prospecção do solo que o do cultivo de árvores frondosas. Em sua seleção estavam presentes os campeões do cinema moderno e de vanguarda, de uma época em que a forma revolucionária praticava-se e identificava-se à ação revolucionária, a uma utopia artística[1]. A história que conta Sassi nello stagno é a da subsequente incompreensão do cinema moderno, do festival fagocitado pelos monstros do pântano da província, assim como da doçura de viver que conhecem aqueles que vivem antes da revolução, de acordo com a epígrafe do segundo filme de Bernardo Bertolucci.

Sassi nello stagno é um filme elástico, esticando sua história em dois sentidos. Primeiro, através da mordacidade contra a ingratidão de Salsomaggiore Terme (cidade natal do cineasta), que no fim das contas fagocitou o Salso Film & TV Festival para transformá-lo na lata de salsichas de sempre. O filme começa e termina com uma canção elegíaca da cidade, que parece ter sido tirada de uma propaganda do paraíso; editada sobre tomadas do dia mais feio que já se viu sobre o vale. Segundo, com sua fome de cinema. O filme coleciona exercícios de encenação e montagem que vão do pastiche, da elegia e da decoração maneirista nos moldes da era do vídeo à pura associação livre de fragmentos de vídeo irrastreáveis. Ao recurso normal da entrevista, por exemplo, o filme duplica-se, logo no começo, projetando as tomadas dos entrevistados, através das quais a história do festival se desenrola, na parede de um estúdio de montagem. O montador, no canto direito, assiste ao filme, enquanto uma segunda tela mostra ao seu lado fac-símiles de publicações que se referem à história contada, simultaneamente, na projeção, por seus protagonistas. Logo antes, um voice over introduzia o assunto. Vemos, numa cabine de gravação de som envolta em sombras, um homem de pé que fala ao microfone. Sua boca, porém, não corresponde à voz que escutamos e que descobriremos depois pertencer a outro homem, cuja imagem é posteriormente projetada na cabine de gravação, logo atrás do homem ao microfone, desta vez sincronizada. Trata-se de uma elasticidade da perspectiva, de um exercício dessa elasticidade.

Sassi nello stagno é, se tentarmos situá-lo num esquema, um filme que caminha na direção da utopia: compartilha dos ideais da geração que retrata e desenha, a cada movimento, aproximações a essa geração, moldando-se conforme seus mestres e companheiros de um passado diverso. Outro documentário presente na seleção retrata a mesma geração, na pesquisa e exploração de um projeto análogo, o Filmstudio 70, importante e duradouro cineclube romano dos anos 1970 aos anos 2000; este documentário, Filmstudio, mon amour, por sua vez, é um filme de crise (ou de luto). Enquanto Sassi nello stagno move-se em direção àquele espírito, Filmstudio, mon amour trata do mesmo sob a ótica do espírito de hoje (assombrado, vazio), que igualmente experimenta analisar. Mais cético quanto a si mesmo, o filme permanece no campo da distância comparativa que deu a ver. É verdade que Filmstudio, mon amour, entre as tomadas de entrevistas, descreve suas piruetas de estilo utilizando-se de uma montagem que cria atmosferas e papas visuais a partir de seu material, mas sempre através de um senso meditabundo de exposição e resumo histórico, que também julga útil pincelar. O filme utiliza, por exemplo, uma frase definidora tirada de As lutas ideológicas na Itália (Lotte in Italia, Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, 1970-1971) para sintetizar em seu relato expositivo a juventude marxista, cuja história está contando (“Na história do conhecimento humano, existem sempre duas concepções da lei do desenvolvimento do mundo: uma metafísica, outra dialética. Há portanto duas concepções do mundo, idealismo e marxismo. Eu sou marxista e faço parte do movimento revolucionário.”). Enquanto no filme essa é a voz de um fantasma numa história que pertence ao passado, por mais admirável que seja, não é necessário dizer que ver As lutas ideológicas na Itália hoje é tudo menos ouvir a voz de um fantasma (é, antes, uma transfusão de sangue). O desfecho de Filmstudio, mon amour se dá com a seguinte reflexão, no voice over do cineasta, sobre imagens do tráfego romano à noite sobrepostas à imagem de um homem que caminha (as imagens de carro foram relacionadas anteriormente às de Lições de história [Geschichtsunterricht, 1972], filme romano de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet; a silhueta do homem lembra a do jovem Nanni Moretti): “Roma se move lentamente. Ela perdeu o fôlego. Roma precisa de uma nova chama cultural. Observo e conto como posso, continuo meu percurso.” Para além do espanto que nos causa a omissão implícita nestas palavras, reconhece-se a qualidade de crise do filme através de sua distância em relação a um passado que, ao mesmo tempo, admira e reconhece como necessário, a si mesmo e ao seu tempo.

Para além da crise e da aproximação, a verdadeira reencarnação de uma força transformadora está em Radio Singer, filme que encurta e anula a supracitada distância. Trata-se de uma transmissão energética entre os operários da fábrica Singer de Turim, que fechou as portas em 1977 – deixando milhares de desempregados, migrados de toda a Itália –, e um apartamento que dá para uma praça na mesma cidade, em 2008; bem como de uma reminiscência de amor que fala de outra dimensão, diante da praça atemporal: da janela, em teleobjetiva, os transeuntes de 2008 – dois rapazes sobre uma bicicleta, ou Madalena (locutora da rádio dos operários, protagonista virtual do filme) que caminha em direção do edifício, enquanto o presente é invadido por seu ímpeto irredutível. O filme justifica seu procedimento de justaposição histórica com um caso de amor (relato histórico através de um caso de amor), sua operação dupla de reminiscência (social e pessoal), ressuscitando uma paixão fictícia através de uma paixão atual, materializando assim o passado no presente, reativando-o efetivamente como uma força, não mais de assombração (ideal reprimido), mas viva. Entrelaçamento de documentário e ficção: excetuando-se as breves tomadas em que Erika Di Crescenzo (Madalena/Erika) declara as palavras de ordem de Radio Singer para a câmera diante de um fundo neutro, a construção se dá numa montagem vertical de três elementos diversos na banda sonora e três na imagem. Na imagem: 1) material de arquivo das manifestações dos operários contra o fechamento da fábrica, em 1977; 2) tomadas em teleobjetiva da supracitada praça, em 2008, feitas da janela de um apartamento num edifício; 3) tomadas íntimas de Erika Di Crescenzo feitas pelo amante, narrador e alter-ego do cineasta, virtualmente no mesmo apartamento. Na banda sonora: 4) entrevistas com os antigos operários da Singer hoje que conduzem, concatenadas às imagens de arquivo, o relato histórico; 5) a voz do cineasta em sua autoficção (ele conta a história de sua antiga amante Madalena, locutora da rádio comunitária dos operários, que saiu naquela manhã de trinta anos atrás para a última transmissão antes do fechamento da fábrica; deixou uma carta para o amante sobre a mesa, aberta só no fim da história); 6) a transmissão da Rádio em si, com voz de Madalena (personagem inventada?) que intercala palavras de ordem do movimento operário com as canções que embalam o filme.

Em Memorie: In viaggio verso Auschwitz trata-se, em vez disso, de acordar e interpelar os fantasmas em suas ruínas primitivas (da História e da memória familiar) para obter uma imagem mais completa e satisfatória do presente. O filme compõe-se de tomadas desenquadradas feitas durante uma viagem de trem do cineasta e de seu irmão, de Turim a Auschwitz, à medida que se aproximam do campo de concentração (cujas ruínas visitam no clímax), intercaladas com filmes caseiros da família (alguns filmados pelo próprio cineasta jovem, depois criança?), organizados em ordem decrescente. As imagens desenquadradas da câmera dentro da cabine do trem raras vezes são o elemento privilegiado da cena; porém, realizam uma ideia que o irmão expressa logo no começo do filme: uma invenção capaz de gravar tudo aquilo que desejamos expressar, antes que passe o momento fugaz. Surpreendentemente, talvez justo pelo destino fixo da viagem e do testemunho da câmera, a argumentação entre os dois irmãos (purgação da relação entre os dois) vai às últimas consequências e se exaure logo antes da chegada ao destino. Junto com os filmes de família que retratam através de seu dispositivo temporal intercalado um mergulho cada vez mais distante no tempo, compõem uma verdadeira radiografia psicológica da relação entre os dois irmãos. A retórica de inanição do irmão (formado em História, fascinado desde criança pelos fatos do nazismo) em relação às suas perspectivas profissionais e a toda e qualquer ação da vida tensiona a retórica da ação do fascismo, pondo em cheque inclusive a retórica conciliadora e pragmática do cineasta-personagem. O único que sai ileso é o próprio filme, verdadeira máquina dialética que analisa um presente ao mesmo tempo familiar e amplo.

Dois filmes da seleção são estranhos à ideia de passado e tratam de um hoje harmônico e completo em si mesmo. São os filmes, respectivamente, de um cineasta veterano e de um cineasta jovem. Festa, o exemplar “Fora da norma” do cinema de Franco Piavoli, é um documentário e um poema de montagem em vídeo (herdeiro de Dziga Vertov) que retrata um dia de festa num vilarejo. A ambição cósmica de seu Il pianeta azzurro (1982) transfigura-se aqui na multiplicação de rostos e numa análise da alegria. Trata-se da mesma obtenção de uma imagem totalizante da humanidade através da multiplicação dos pontos de vista: um de fora para dentro, outro de dentro para fora.

Jointly Sleeping in Our Own Beds é um romance epistolar via Skype: uma montagem íntima das conversas do cineasta com Pauline, uma moça francesa que ele nunca viu pessoalmente. O romantismo aflora, não só no feerismo latente sugerido com o diário de infância na floresta que Pauline propõe como primeira imagem do filme, mas especialmente na intimidade da paixão e no olhar do outro sobre si, na ressonância dos efeitos formais refletidos da própria ausência de efeitos do aparato (basicamente, a tela do Skype): como as luzes cambiantes e coloridas do quarto de Pauline na hora de dormir, que induzem o filme, junto com a música, à escuridão.


Espectros de carne e osso


Alguns filmes da seleção movem-se no obscuro fluído da civilização pós-industrial, cuja sondagem tem menos a ver com a prospecção do passado que com uma deriva associativa entre elementos do presente. A imagem completa (ou melhor, nunca completa, mas sugestiva) deste é obtida, portanto, através de uma coleta de amostras in loco. Vários deles se encaixam nesta descrição, como Spira Mirabilis, Al di là dell’uno, Upwelling: La risalita delle acque profonde. Outros, por sua vez, escolhem ancorar-se num único elemento específico, para disso extrair sua imagem (completa, dentro de seus limites) do presente fantasmático em que ressoa a herança de um passado evanescente. É o caso de La bocca del lupo. Estes filmes que não analisam o passado colocam-se ao abrigo dos ideais reprimidos (que, como bons fantasmas, quando despertados exigem grandes responsabilidades) ao procurar nos elementos concretos e nas pequenas ações positivas uma solução para um presente despedaçado.

Spira Mirabilis documenta quatro “histórias” coladas pela leitura de O imortal, de Borges, e o motivo visual-parabólico da medusa. Um cientista japonês analisa no microscópio pequenas medusas e seu ciclo de vida imortal; um grupo de artesãos suíços está empenhado na fabricação em série de um estranho instrumento metálico em forma de disco voador; a restauração ininterrupta do Duomo de Milão; a resistência das tradições indígenas norte-americanas. Este entrelaçamento só se sustenta pois retém, até o final do filme, a revelação completa da natureza de seus quatro elementos, bem como do significado de sua justaposição. O filme passa, assim, da distância abstrata e desumanizada de trabalhos enigmáticos em depósitos de ferragens, oficinas de gesso e tomadas microscópicas de medusas para uma lenta humanização de suas personagens, tão-somente pela aproximação e desvelamento. Por meio deste artifício, o fim do filme consegue ser estranhamente gratificante, ainda que matizado pela ambiguidade do sentido retórico (o filme tinha algo a dizer sobre a “imortalidade”?).

Al di là dell’uno é uma exploração de campo a respeito do amor e do convívio. O motivo da seleção e colagem entre fotografias (pelas mãos visíveis da própria cineasta) que permeia todo o filme é a perfeita analogia de seu método: uma lenta articulação (menos dialética que pluralizada) de tomadas e entrevistas (restritas à banda sonora) feitas ao redor do mundo a respeito do afeto, tema que só se realiza completamente através do próprio afeto artesanal que a cineasta coloca em ação na sua feitura meticulosa das imagens, de uma beleza colorida da luz.

A montagem deambulatória de Upwelling: La risalita delle acque profonde, por sua vez, permanece sempre na imanência de um significado suspenso. Através de um método aditivo (um resumo) das tomadas que os realizadores fizeram a partir de seus encontros e amizades durante uma estadia de dois anos em Messina (que ainda sofre as consequências de um terremoto), obtém-se um conjunto de forças equalizadas (todas as tomadas têm impacto emocional similar – bastante brando), diante das quais é preciso imaginar uma verdadeira articulação de significado entre suas justaposições aditivas para não ceder à monotonia. O filme reserva no entanto algumas tomadas especiais para o final, com o velho menestrel, personagem assíduo do filme, em sua última aparição, encarando num enquadre romântico um suposto convite de um céu estranho e luminoso, um prelúdio à transcendência – suspensa; ou tomadas em teleobjetiva de um navio no porto de Messina, que mistura em sua planificação da multidão – nas janelas do cruzeiro, no cais –, e na montagem, pessoas e pontos de vista num efeito-de-catarse também suspenso no ar; ou então a visita ao ginecologista e o nascimento de uma criança – momentos que elevam o tom do filme, se não a um verdadeiro desvelamento ou conclusão, ao menos desenhando a base de uma curva ascendente.

La bocca del lupo é um filme bem-sucedido em sua prospecção afetiva de alteridade: aqui, esse procedimento pulverizado no documentário contemporâneo ganha um novo peso através da transfiguração estética do mundo que retrata (o porto de Gênova, um casal de ex-detentos) ao ponto de fusão da realidade em fantasia. O filme é, ao mesmo tempo, um puro documentário e uma pura conjuração feérica de uma história de pescador.

O uso das imagens de arquivo em La bocca del lupo, bem como suas alusões históricas, estabelece uma simultaneidade do passado. No prólogo, vemos dois homens que juntam ramos numa falésia para acender o fogo. O voice over do narrador (jovem e rouca) conta que estamos em Quarto dei Mille, porto próximo de Gênova, de onde partiu a expedição de Garibaldi durante o Risorgimento (muitos expedicionários não voltaram). Estamos menos em companhia dos descendentes que dos fantasmas ou dos sobreviventes da história (testemunhas dos “sonhos corrompidos”). Enquanto os protagonistas do documentário são introduzidos de modo elusivo (uma silhueta e uma sala em contraluz, uma carta, um homem que caminha entre os contêineres até a longa tomada na casa que constitui a segunda metade do filme, em que os dois, enfim juntos, contam sua história), a montagem inclui fragmentos de filmes mudos que mostram a atividade do porto e do cotidiano da região durante o século passado. “As pequenas grandes histórias – isto sim aconteceu”, diz o narrador. Através da alusão aos fantasmas de Quarto dei Mille (que transborda para a história de Gênova, de república marítima a ponto de partida, tanto da emigração quanto das cruzadas) e do cinema como testemunha, não dos grandes acontecimentos, mas da margem, dos restos (as últimas imagens do filme são fragmentos do cinema mudo, de mulheres e crianças que brincam na praia), o porto, visto de cima da casa de Vicenzo e Mary, situada sobre um dos desfiladeiros mais ermos que rodeiam a cidade, no fim do filme, epílogo apaziguado, reaparece como precipitado de destinos entrecruzados do buliço silencioso da civilização.

Os fantasmas (da história ou de nitrato, trata-se de uma definição ampla) nos assombram, e vivem; podem encontrar, provando-o, o que buscaram nas ilusões que, depois de tudo, provam-se verdadeiras. A transfiguração sedutora das tomadas e das elisões de La bocca del lupo é análoga à de suas personagens, e consiste na sustentação, através do esforço e do trabalho, de um mundo novo por cima do velho.


Nota:


[1] Sobre a confluência de utopia social e radicalidade estética, ver “O filme e a aspiração radical”, nesta mesma edição. Annette Michelson escreve sobre a contraposição dos cineastas independentes americanos nos anos 1960, significativa também para o conflito que retrata Sassi nello stagno: “Existe, dentro dos círculos ‘independentes’, outra direção de estilo ou esforço que eu gostaria de considerar agora, já que representa um aspecto militante de uma aspiração radical do cinema americano. Ele está postulado em uma concepção do cinema como sendo, no sentido mais amplo do termo, redentora da própria condição humana. Esta atitude, ainda que admirável, gera as mais difíceis e as mais inibidoras contradições para os radicais contemporâneos”.

 

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