WARHOL, BRESSANE, GARREL: MATERIALISMO E PRESENTIFICAÇÃO
por Calac Nogueira



De onde vem esta sensação de virgindade que acompanha a obra de alguns cineastas? Cineastas que dão a impressão de começar pelo começo, de retornar ao ponto em que o cinema, não sendo ainda uma linguagem formada, era este mundo de possibilidades que se abre com a impressão luminosa sobre a película. Se o termo vanguarda literalmente quer dizer “o que está à frente”, esse “à frente” não deve, contudo, ser tomado em sentido linear, de um progresso em uma única direção. Vanguarda quer dizer, antes, abertura de caminho: que esse caminho se apresente à frente ou atrás, como um recomeço, pouco importa. Em qualquer direção, ser vanguarda é estar no limite, na fronteira de um campo. É testar e tensionar os limites desse território, a linha que separa conhecido e desconhecido, arte e não-arte.

Warhol, Bressane e Garrel: três cineastas modernos separados por fronteiras continentais, sem conexões diretas a princípio. Cada um deles tem seu próprio projeto estético, como uma ilha ou um astro dotado de brilho particular. No entanto, quando observados sob determinado ângulo, revelam afinidades subterrâneas, semelhanças fundamentais. Formam uma constelação sobre o céu do cinema moderno. Em comum, eles respondem à efervescência modernista dos anos 1960 com um movimento de recuo a um momento anterior em busca de uma pureza essencial perdida do cinema. Seus faróis são Lumière, Thomas Edison, o filme família, o filme amador. Eles propõem um esfacelamento dos códigos que o cinema havia construído até aquele momento e um retorno a uma condição anterior, primitiva, uma espécie de lumièrianismo em que o cinema é entendido como mera impressão luminosa.

Esse retorno a Lumière de Warhol, Bressane e Garrel, no entanto, pouco tem a ver com uma abertura atmosférica à natureza e ao mundo: trata-se, antes, de um retorno materialista, pautado por uma escrupulosidade fotoquímica. É preciso retornar a Lumière, mas devidamente armado com uma consciência moderna. Assim, esses cineastas se voltam aos processos materiais do cinema para flagrar, testemunhar o momento em que as imagens são geradas. Neles vemos não imagens acabadas, mas um fio luminoso que carrega o rastro de sua própria feitura. A cicatriz recém-inscrita sobre a película virgem. São diretores para quem o essencial do cinema reside na presentificação das coisas sobre a superfície da película. Diretores nos quais a imagem nos é dada na condição inextricável do presente de seu nascimento.

Bressane tem uma boa expressão para descrever esse fenômeno: fotodrama, “a ação da luz, ação trágica da luz, [que] define contornos, cria formas, escreve além de si, dramatiza, objetos, rostos, ondas, seios” sobre o fotograma[1]. Bressane propõe que vejamos o cinema do ponto de vista de uma “fenomenologia da luz”, e enumera três etapas, três níveis que se encadeariam na feitura de um filme até sua projeção: fotograma, fotodrama e fototrama. Fotograma é o solo, a “pasta química” onde a luz é fixada; fotodrama a criação de formas a partir dessa luz; e fototrama a articulação entre as imagens diversas pela montagem e pela projeção. Ao refazer todo o percurso, todas as etapas na criação de um filme atendo-se a uma dimensão puramente fenomenológica, o que está em jogo para Bressane é o desejo de se colocar num lugar anterior, tanto da história quanto da produção: o momento em que a pura luz ainda não se convertera em linguagem. É um entendimento do cinema como fenômeno fotoquímico, música da luz intraduzível para o plano verbal.

O fotodrama é aquilo que escapa à ordem da linguagem, o que está aquém, ou além, dela. É uma escrita produzida pelas coisas mesmas, pela contiguidade entre elas e a tira de película. Se há algo que grande parte dos cineastas de vanguarda sempre recusou, que se pense nos surrealistas ou em Vertov, em Michael Snow ou Brakhage, é a ideia do cinema como linguagem. Pois a linguagem não se limita a representar as coisas: ela media a nossa relação com elas. Ao impor um sentido sobre as coisas, simplificando-as grosseiramente, ela nos afasta das coisas. Será preciso então um processo de desestruturação da linguagem para que a arte e o cinema em particular possam retornar às coisas, restituindo outras dimensões do mundo para além do sentido unidimensional oferecido pela linguagem.

No lugar da articulação sintático-semântica entre os elementos, Brakhage, Vertov, Snow e outros sustentaram o filme como transcrição, testemunho, seja da realidade objetiva, seja do mundo interior do artista. No lugar da representação, o filme como realidade material, objeto concreto. De maneiras muito diferentes, eles procuraram estreitar o hiato que separa os campos da arte e da vida, que surgem aqui visíveis no interior mesmo dos filmes, como duas faces de uma mesma moeda. Warhol, Bressane e Garrel, como cineastas de vanguarda, também buscarão, à sua maneira, essa contração do horizonte artístico de maneira a colá-lo na vida.

Dos três, Warhol é sem dúvida quem foi mais longe, livrando-se da linguagem por completo, com um cinema que é puro documento e transcrição. Se Garrel e Bressane muitas vezes se valeram (e continuam se valendo) da narrativa, é preciso notar, contudo, que seus filmes raramente tiram força de uma potência ficcional – aliás, se o cinema de Garrel tem decaído a cada filme, é porque ele parece excessivamente acomodado num modo em que a ficção determina a cena. Em seu melhor, no entanto, os filmes desses cineastas se concretizam no espaço estreito do plano, no encontro direto entre a câmera e a cena, constituindo uma imagem que é a um só tempo escrita e transcrição, criação e documento: fotodrama.


Presentificação


Trata-se, portanto, de estreitar a margem, o campo de trabalho. Fazê-lo coincidir com a própria área da película, os limites do fotograma. Abandonar a virtualidade abstrata da ficção, do fora-de-campo, da linguagem e estabelecer-se numa visibilidade pura e concreta, aquela da tira de película. Tomemos, por exemplo, os primeiros filmes de Garrel, como O revelador (Le révélateur, 1968) e A cicatriz interior (La cicatrice intérieure, 1970-1972), em que predominam os tons oníricos. Nesses filmes, Garrel busca uma visualidade pura. Em O revelador, as imagens parecem brotar sobre uma escuridão e um silêncio originários. Um feixe de luz se abre e forma uma redoma precária onde as imagens se equilibram evanescentes, como num sonho. Não há fora-de-campo: sair de quadro aqui é cair no vazio, é retornar à escuridão originária que circunda a tira de película. Imagem e película, cena e projeção, luz e matéria constituem aqui um mesmo objeto, uma unidade, indissociavelmente. As imagens se afiguram em sua condição de puro presente. Elas não criam conexões, não produzem “linguagem”: os planos são autossuficientes, movimentos de câmera circulares, fechados em si mesmos, que nos aprisionam num presente onde tudo retorna, obsessivamente. Grande parte dessa descrição vale também para A cicatriz interior.

De maneira geral, é uma encenação centrípeta que guia esses primeiros filmes de Garrel. E no fundo será assim em toda a sua obra. Mesmo quando se tornam narrativos, seus filmes mantêm esse sentido de concentração da cena, de presentificação das forças sobre a superfície visível. Já não ouço a guitarra (J’entends plus la guitare, 1990-1991), Amantes constantes (Les amants réguliers, 2004-2005), entre outros, são marcados pela narração elíptica, lacunar, na qual o essencial se realiza dentro do plano. Em Amantes constantes, são rostos, respirações, a aspereza dos ambientes, do som direto, que vêm se imprimir em toda a sua espessura, somando-se desajeitadamente. O filme alcança este fio da navalha em que a ficção tira sua força não de uma virtualidade abstrata, mas da presença concreta das coisas no interior do plano. A incursão pelos anos 1960 se dá como testemunho sentimental, sendo sustentada mais pelo drama e pela verdade da cena do que por uma leitura histórica extrínseca ou um desejo de reconstituição frívolo e artificial.


Rostos


Concentrar, trazer tudo para o interior do plano: a paupérrima gramática garreliana é conjugada com poucos elementos. Rostos, diálogos, relação entre os corpos, luz: mise en scène no sentido mais estrito da palavra, em suma. De todos esses elementos, no entanto, nenhum tem papel mais central que o rosto. É nos rostos que a câmera de Garrel vai sempre, por fim, pousar, de onde sua encenação tira força. Os close-ups em Garrel, em especial os femininos, parecem sempre durar dois ou três segundos a mais do que o necessário. Dois ou três segundos que podem passar batido à maioria dos espectadores, mas que são o tempo necessário para que possamos não apenas ouvir o texto, mas olhar um rosto. Há aí uma ponta de prazer voyeurístico, claro. Mas há igualmente um desejo de sondar as máscaras do ator (Altas solidões [Les hautes solitudes, 1974], o começo de Beijos de emergência [Les baisers de secours, 1988-1989]). Mais do que isso, há um entendimento de que é pelo rosto do ator que é possível transmitir a emoção de maneira mais direta, menos mediada. É no rosto que se pode dar forma a estados emocionais puros.

Foi com Andy Warhol que Garrel aprendeu a filmar rostos. Isso fica patente num filme como Altas solidões, realizado no início dos anos 1970 e no qual Garrel escrutina as fisionomias de Jean Seberg exatamente como Warhol fazia em seus filmes com suas superstars. Garrel provavelmente conheceu Warhol no fim dos anos 1960 em alguma viagem a Nova York acompanhando Nico (nem é preciso sair dos filmes para conjecturar: Nico, Warhol, um incidente no Hotel Chelsea, tudo está testemunhado em Ela passou algumas horas sob a luz do sol [Elle a passé tant d’heures sous les sunlights..., 1984-1985]). Entre todos os cineastas, nenhum dedicou mais tempo estudando rostos, máscaras, fisionomias, personas do que Warhol. Seus Screen Tests (1964-1966), pequenos “testes de câmera” realizados com qualquer um que aparecesse na Factory, são hoje estimados em nada mais nada menos que 500, e toda a sua obra para o cinema pode ser entendida como um grande laboratório particular em torno da seguinte questão: como as pessoas são afetadas pela presença da câmera? O que se passa em seus rostos? Como diversos outros cineastas de vanguarda, Warhol também se empenhou em destruir a linguagem e, de maneira radical, reduzir o cinema ao mero aparato, à sua condição de máquina de filmar.


Warhol


Garrel não foi o único a ver os filmes de Warhol: Bressane também os viu, e fará referência aos Screen Tests em Lágrima-pantera: a míssil (1971-1972), filmado em Nova York. Warhol é, portanto, a estrela central, chave da constelação aqui estudada. Quando fez seus primeiros filmes, em 1963, Warhol desejava trazer para o cinema a imaginação maquínica que já pautava seu trabalho na pintura. O cinema representava, para ele, a expressão máxima do automatismo. Era a chance de, hipotecando a mão do artista à câmera, tornar-se ele próprio enfim máquina. Como suas telas, os filmes serão carregados pelo gesto impessoal, inexpressivo. A câmera era plantada de frente para os atores e Warhol tinha como hábito deixar os rolos de película correrem até o fim, sem cortar, para “ver o que acontece”. Com isso, instituía um dispositivo que flagrava hesitações, reações sutis, personalidades que se construíam e se desconstruíam quando confrontadas pelo olhar da câmera e pela longa duração dos planos.

O plano-sequência warholiano nada tem da expressividade impetuosa comum a diversos cineastas modernos. Ele resulta antes da passividade, da renúncia ao poder do “corta”. Warhol delegava à maquina, portanto, uma prerrogativa fundamental do diretor de cinema. Aqui está a chave para entendermos seu materialismo: na negação da metafísica do autor. Se os filmes de Garrel sempre foram movidos por um desejo de denotação, os filmes de Warhol levavam isso às últimas consequências sendo documentários literais sobre as fisionomias, presenças, figurações e transfigurações do corpo diante da câmera. A câmera não é uma caneta, mas uma caixa preta no fundo da qual vemos se formar um documento puro.

A longa duração dos planos em Warhol sabota tanto a produção de um universo ficcional quanto a criação de significado por parte das imagens: os atores frequentemente abandonam seus papéis, e eventuais leituras conceituais sobre os filmes se dissolvem na experiência dilatada da duração. Seus filmes não dizem nada, apenas mostram, documentam. O cinema se torna experiência concreta, laboratório, estudo. A câmera engendra uma experiência ao confrontar os indivíduos, como um espelho cego, e o “resultado” é transcrito de ponta a ponta sobre o rolo de película. Adriano Aprà e Enzo Ungari não à toa falam do cinema de Warhol como empreendimento científico: seus filmes são exames que escrutinam o visível[2]. Cineasta apegado às aparências, Warhol também só se interessa pelo que se imprime sobre a película – o fora-de-campo, o invisível aqui pouco interessam. Importa apenas o que se pode ver e escrutinar objetivamente.


As duas vanguardas


O materialismo de Warhol o aproxima diretamente de alguns cineastas de inclinação estrutural-materialista, que formam um dos polos das “duas vanguardas”, tal como delineadas pelo histórico ensaio de Peter Wollen[3]. Essa sensibilidade em comum deriva sem dúvida do fato de que Warhol e esses cineastas, entre os quais podemos citar Michael Snow, Paul Sharits e Malcolm Le Grice, são contemporâneos. O que não quer dizer que eles façam a mesma coisa ou sejam equivalentes. Aqui vale uma pequena digressão pelo artigo de Wollen. Mais do que duas vanguardas estanques, os dois polos delineados em seu ensaio apontavam para duas ontologias, duas formas de entender a essência do cinema: de um lado, o filme como objeto concreto autossuficiente, definido nos termos de um materialismo do meio; de outro, o cinema como índice do real, abertura necessária a uma realidade extrínseca – a qual será colocada a uma distância crítica pela segunda vanguarda, formada por cineastas europeus como Godard e Straub-Huillet, no que Wollen chama de estética “pós-brechtiana”.

Entre as “duas ontologias” delineadas por Wollen, entre o materialismo introvertido do meio e o realismo extrovertido do índice, Warhol se localiza num “entre”. Ele encarna um “materialismo extrovertido”, por assim dizer. Se é verdade que a abordagem materialista sempre aporta às obras uma meta-dimensão, em Warhol, contudo, essa meta-camada carece da especulação teórico-reflexiva que podemos encontrar em alguns filmes de Snow, Sharits ou Le Grice. Quando Snow faz filmes “sobre” o zoom ou a panorâmica, ou Sharits na passagem entre um fotograma e outro (em seus filmes de flicker), eles de certa forma estão isolando procedimentos específicos do cinema para estudá-los. Como bem aponta Wollen, há um sentido modernista nesse gesto: um statement implícito que identifica a essência do cinema na materialidade do meio[4]. Mesmo que os filmes ainda lidem com a representação, eles estão produzindo uma reflexão sobre o próprio cinema. Esse sentido reflexivo está ausente dos filmes de Warhol: o materialismo aqui se limita a uma práxis. Há, quando muito, uma mimese desajeitada e irônica do ato de filmar. O cinema não é “pensado”, ele é ferramenta, aparato que serve para escrutinarmos o mundo. Warhol entende o cinema como abertura, acesso à realidade – e aqui ele se revela baziniano como poucos.


Artesanato


No materialismo warholiano, portanto, o cinema se torna práxis artesanal. Essa ideia vale igualmente para Bressane e Garrel. Com “artesanato” aqui estamos nos referindo a um certo pragmatismo na relação com a criação. O artista não é nem um demiurgo mestre de um universo, nem um gênio que se expressa por um gesto heroico, mas alguém que explora concretamente um meio, que experimenta, tateia com a câmera. Seu protótipo é o do homem com a câmera vertoviano, mais do que qualquer outra coisa.

Esse pragmatismo se traduz no aspecto palpável dos filmes de Warhol, Bressane e Garrel. Uma palpabilidade que se torna mais clara quando esses cineastas dão a ver o próprio aparato material do cinema. Os filmes de Warhol, em particular, mostram com frequência essa estrutura: vemos pontas veladas, flashes involuntários do obturador, o grão do 16 mm. subexposto. Bressane muitas vezes nos mostra a ambientação do set de filmagens. Em Garrel, especialmente nos filmes da década de 1980, a película também volta e meia faz sua aparição no interior das obras. Em A criança secreta (L’enfant secret, 1979-1982), o filme dilacerado e os flashes são acompanhados por um olhar tateante da câmera, que deixa patente o esforço e a fragilidade da construção do filme. Esse processo será radicalizado em Ela passou algumas horas sob a luz do sol, no qual a construção ficcional termina por se despedaçar em fragmentos documentais, criando uma meta-ficção que revela um impasse, um filme impossível.

Essa incorporação do aparato material e de elementos “extradiegéticos” aos filmes por esses cineastas não deixou, contudo, de ser mal interpretada. A tendência de praxe, aqui, foi ver um gesto autorreflexivo de ruptura com o pacto do ilusionismo, como forma de acomodá-los apressadamente num modernismo raso. Falar em “quebra do ilusionismo”, no entanto, é justamente trazer o jogo para o campo da linguagem que esses cineastas recusaram: o anti-ilusionismo é um resíduo do materialismo no campo da linguagem. Ele só importa para quem crê no cinema como linguagem. Warhol, Bressane e Garrel não creem.

O erro fundamental aqui é ver os filmes desses cineastas como expressão de uma negatividade, negligenciando sua afirmação positiva: pois se trata aqui menos de um movimento de negação do que de abertura generosa, inclusão, expansão das possibilidades que constituem um filme. Colocar tudo dentro do filme, não deixar nada de fora: trazer para dentro do filme a imagem e seu contracampo, sua retaguarda, os processos materiais que a sustentam. Mostrar o filme enquanto ele é feito não por recusar o ilusionismo, mas para produzir uma imagem que seja verdadeira na medida em que carrega consigo todas as forças constritivas, todas as dificuldades, acidentes por trás dela. É isto que é, enfim, um cinema materialista: um cinema que abandona o campo da linguagem para dar corpo a uma experiência denotativa, concreta, documentando-a, transcrevendo-a de ponta a ponta.


Cinema inocente


Quando Bressane exibe claquetes e o set de filmagens em seus filmes, portanto, ele não está simplesmente, de maneira banal, “quebrando o ilusionismo”. Bressane está anunciando que está começando pelo começo, fazendo-nos retornar a este ponto crucial em que tudo começa, quando se liga a câmera e a luz entra pelo obturador: ao fotodrama, justamente. Para Bressane, é como se nada antecedesse esse momento: nenhuma linguagem, ideia ou pensamento anterior. O cinema não é uma ideia abstrata que se traduz, se transcodifica, numa linguagem-cinema. Pois não há ideia pensável fora da imagem, fora do corpo do cinema. Essa inteligência puramente visual de Bressane é o que lhe permite criar verdadeiros ideogramas visuais, intraduzíveis para o plano verbal, como diz um belo insight de Haroldo de Campos[5].

Os filmes de Bressane se reinventam a cada sequência. A cada cena o filme se refaz, num exercício provisório. Frequentemente temos a impressão de que o rascunho foi tomado como obra acabada. Mesmo nos filmes que instituem um universo ficcional predomina o aspecto episódico (Cleópatra, 2006-2007; Filme de amor, 2002-2003). Cada plano é uma aventura recomeçada do zero. A câmera repensa a sua relação com o mundo. É isso que quer dizer “começar pelo começo”. Cada cena inventa uma relação inaudita com as coisas: a câmera tateia, experimenta, ao invés de buscar uma síntese, uma unidade. É por isso que as referências ao primeiro cinema são tão comuns em Bressane: porque se trata sempre de buscar esse olhar novo, provisório, puro sobre as coisas, como faziam os Lumière e todos os cineastas anteriores à domesticação do cinema pela linguagem.

Nos filmes dos anos 1960 e 1970, esse desejo destrutivo em relação à linguagem resultava no esgarçamento das situações pelo plano-sequência: em Matou a família e foi ao cinema (1969) e O anjo nasceu (1969), era esse esgarçamento do plano que fazia ressurgir, no tecido dos filmes, respectivamente a demência da classe média e a maldade em estado bruto. Sentimentos que se desprendiam “puros” dos filmes porque não se agarravam a nenhuma narrativa verossímil, mas brotavam da própria repetição e dilatação das cenas, gestos, falas e poses automatizados dos atores. Tratava-se de abrir a linguagem, de liberar a força represada em sua economia. Uma força contida em seus entres, no interior dos planos, que seria revelada pelo plano-sequência.

É num filme recente, o pouco visto Rua Aperana 52 (2012), que Bressane expõe na prática sua teoria do fotodrama. O filme começa com a inspeção de velhas fotos de família do diretor, que depois cedem lugar a filmes antigos de Bressane. Mas a memorabilia aqui interessa menos por seu valor afetivo do que por permitir a investigação do meio fotográfico e cinematográfico. Descobrimos que o protagonista do filme não são as memórias do diretor, mas a casa e sua rua, o espaço físico que se imprime no fundo das imagens recuperadas. Neste filme, Bressane propõe um ponto de vista geológico sobre o cinema, em que o fundo da imagem interessa mais que o que está em primeiro plano. O fundo não é apenas cenário, ele é a base, o “chão” da imagem: é aquilo que se imprimiu a despeito das intenções do artista, que fugiu de suas mãos, que escapou, portanto, à própria linguagem. Aqui Bressane também irá esgarçar a linguagem, mostrar-nos pedaços de cenas desconectadas para que possamos nos ater à sua dimensão mais puramente física, literal: observar o asfalto, as árvores, a incidência da luz, o gesto de andar sem um propósito, uma vez que a ficção foi eliminada. Um filme para estudarmos a “doída cicatriz impressa na folha ampliada do papel fotográfico”[6], no qual se trata menos de criar novos significados ou produzir uma nova narrativa com as imagens recuperadas do que de compará-las, realizando raccords, sobreposições, aproximações, a fim de estudar sua geologia comum, a realidade que se imprimiu a despeito da cena.

Em Cinema inocente (1979) Bressane berrava: “A pornochanchada é o cinema inocente!” A frase carrega evidentemente um sentido ambivalente, um jogo duplo: Bressane canta à pornochanchada uma glória que informa o seu próprio projeto de cinema. É um canto enlutado, nostálgico, de quem sabe que, nos anos 1980, passada a avalanche do cinema moderno, não há mais inocência possível. A questão é: como recuperá-la? A resposta de Bressane: com um deslocamento em direção a uma fenomenologia, fotograma, fotodrama e fototrama. À autoconsciência saturada do cinema moderno, em especial das “duas vanguardas”, Bressane opõe uma selvagem inocência fenomenológica em que o cinema, entendido como fenômeno puramente luminoso, ouse criar formas inauditas.


Notas:


[1] Júlio Bressane, “Rua Aperana 52: Fotograma, fotodrama e fototrama”, in Deslimite (Rio de Janeiro: Imago, 2011), p. 7.

[2] Adriano Aprà e Enzo Ungari, “Introduzione al metodo A.W.” in Aprà & Ungari (org.), Il cinema di Andy Warhol (Roma: Arcana, 1971), pp. 1-18.

[3] Peter Wollen, “The Two Avant-Gardes”, originalmente publicado em Studio International vol. 190, n.º 978, novembro-dezembro de 1975, pp. 171-175.

[4] Esse modernismo “do meio” pode ser melhor compreendido à luz do pensamento de autores como Clement Greenberg, para quem todas as artes tenderiam a uma eliminação dos elementos extrínsecos a fim de encontrar seu material específico, que daria corpo a uma arte autossuficiente. Por esse raciocínio, o momento modernista de uma arte pode ser entendido, então, como aquele em que ela “se dobra” sobre si mesma e passa a tematizar o seu próprio fazer. No caso da pintura, que teria como materiais específicos a cor, a tinta e a pincelada, o “ponto de chegada” modernista será, naturalmente, o abstracionismo, quando a pintura se libera do figurativismo e torna-se um jogo com os meios pictóricos específicos. De maneira análoga, o momento modernista do cinema seria, então, aquele em que o próprio meio passa a ser tematizado e explorado. No limite, levado até as últimas consequências, esse pensamento implicaria na eliminação do próprio mundo diante da câmera, que daria lugar à pura opacidade da película iluminada.

[5] Conversa entre Hélio Oiticica e Haroldo de Campos. Heliotapes: Hélio Oiticica/Haroldo de Campos. Reproduzido em Jairo Ferreira, Cinema de invenção. 3.ª edição (Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2016), p. 175.

[6] Júlio Bressane, Op. cit., p. 9.

 

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