ANJO NEGRO
(L’ange noir). 1994. Les Films Alain Sarde/La Sorcière Rouge/Canal+/Sofica Sofinérgie 3 - Sofiarp 2 (95 minutos). Produção: Jean-Claude Brisseau. Produtor executivo: Alain Sarde. Roteiro: Jean-Claude Brisseau. Fotografia: Romain Winding (Kodak). Som: Georges Prat, Paul Bertault. Música: Puccini. Música original: Jean Musy. Cenografia: Maria-Luisa Garcia. Montagem: Maria-Luisa Garcia. Elenco: Sylvie Vartan (Stéphane Feuvrier), Michel Piccolli (Georges Feuvrier), Tchéky Karyo (Paul Délorme), Alexandra Winisky (Cécile), Lisa Hérédia (Madeleine), Philippe Torreton (Christophe), Bernard Verley (Pitot), Claude Faraldo (Aslanian), Claude Giraud (Romain Bousquet), Claude Winter (Sra. Pitot), Henry Lambert (o juiz Dumas), Francine Olivier (Sra. Dumas), Gérard Lecaillon (o inspetor de polícia), Aline Perrier (a menina), Jean Bournac (o diretor da prisão), Gérard Lageyre (o procurador), Sylvie Valade (a amante de Paul), Dominique Suchareaud (a convidada), Carine Nouchy, Karine Quatorze, Cécile Fleury, Élisabeth Auby, Bérangère Letoct, Mélanie Mazuque (as moças da orgia), Jean-Claude Brisseau (o convidado do jantar).
O título evoca um romance de Mauriac. E é em Bordeaux que nós estamos, no coração da alta burguesia na qual o autor de Thérèse Desqueyroux descobriu seus personagens inesquecíveis.
Numa mansão suntuosa, um homem sai de um quarto, enquanto uma mulher, na beira da porta, o observa partir. Reconhecemos Sylvie Vartan. Ela não mudou. Bela, sem idade. Ela murmura: “Espere!” O homem se vira. Ouve-se o som de um tiro, mas o homem não cai imediatamente. Ela se aproxima, atira de novo. Ele cai. Ela continua a descarregar sua pistola, movida por uma raiva fria.
É claro, não se deve descrever o filme, no qual se desenrola um suspense repleto de coups de théâtre e reviravoltas. Saibamos ao menos que a heroína, Stéphane Feuvrier, é casada com um importante juiz (Michel Piccoli). O homem que ela acaba de matar, Wadek Aslanian, era um notório canalha. Ela o conheceu na prisão, onde ela se ocupava de uma instituição beneficente. Paul Delorme, advogado e amigo dos Feuvrier, aceita defender Stéphane, por quem ele é apaixonado. Esperando dias melhores, a Madame Feuvrier passa a sua primeira noite na cela.
Jean-Claude Brisseau consagrou seus primeiros filmes àquilo que foi conveniente chamar “o mal das periferias” e depois “os bairros sensíveis”. Mas, na época em que ele começava, não havia palavras para descrever a realidade que então se descobria: A Vida Como Ela É (1978), As Sombras, L’échangeur (1981), Um Jogo Brutal (1983), O Som e a Fúria (1987). É preciso lembrar que A Vida Como Ela É permaneceu inédito durante dezesseis anos, até a sua transmissão, há dois meses, no Arte. Ríamos à época do que achávamos que fosse “os fantasmas de um professor de Aubervilliers”[1]. Hoje, quando a realidade encontra as suas ficções, perguntamo-nos por que Brisseau abandona um universo que ele conhece tão bem para se aventurar na selva da alta burguesia provinciana.
Mas o interesse dos filmes de Brisseau não pode ser reduzido à dimensão social deles, mesmo quando esta revela uma rara lucidez. De forma mais geral, será que os temas de um artista, o “conteúdo” aparente de seu trabalho, conduzem-nos realmente ao coração dessa obra? As maçãs de Cézanne ou os girassóis de Van Gogh alguma vez foram os meios de entender esses grandes pintores? John Huston é um grande cineasta por sempre mostrar heróis que fracassam, e Antonioni, a “incomunicabilidade”?
Com Anjo Negro os amantes dos tópicos e dos temas correm o risco de passar ao largo de um grande filme. À primeira vista, eis um panfleto sobre a corrupção dos ricos, sobre a injustiça radical da sociedade. O traço parece carregado e a proposição já conhecida. No entanto, desde a seqüência de abertura, eu fiquei impressionado pelo contraste entre a violência da situação - a morte de um homem à queima-roupa - e a serenidade da câmera, a impassibilidade do olhar que nos faz entrar no drama. Eis uma maneira de filmar que nós não encontramos todos os dias. Se a palavra mise en scène ainda guarda algum sentido, observem os cenários - luxo, calma e volúpia... -, essas imagens nítidas, a fixidez dos enquadramentos, a lentidão dos deslocamentos e dos gestos, a ausência de qualquer palavra: falamos de uma liturgia. Não, este não é um filme-panfleto. Alguma coisa contradiz as aparências. A escolha de Sylvie Vartan, a direção de sua atuação acentuando esse caráter marmóreo, liso, frio, impenetrável do filme. A música acompanha pouco a pouco as ações, à maneira de Hitchcock e Truffaut. É preciso ressaltar que a violência aqui - como neles - faz mal. A câmera está do lado da harmonia, da doçura e da paz, e é essa moral do olhar que permite a Brisseau ir tão longe na evocação do horror. Sob a luz desses cineastas, o que pensar dos filmes que se banham no sadismo e no sangue, fazendo-nos vibrar sem remorsos com aquilo que deveria nos ferir?...
A partir do assassinato inicial há a necessidade de aproximarmo-nos de dois seres e seus comparsas: quem é Stéphane Feuvrier? E sua vítima? Por que e como eles chegaram ali? É através dos olhos de Paul, advogado e amigo de Georges Feuvrier, que descobriremos Stéphane. Como Paul é também apaixonado por ela, ele tem mais de uma razão para defendê-la. E, no entanto, o que ele vai descobrir não facilitará sua missão. Brisseau, construindo sua narrativa sobre a estrutura clássica da investigação, explora as contradições dos seres, e ele se serve para isso de situações fortes, exames reveladores de suas fraquezas e de seus sofrimentos. É a verdade que é insustentável, e Georges, o marido, o juiz, por amar loucamente a sua esposa, está a cem quilômetros dessa verdade. Paul e Georges amam Stéphane, mas Paul é o homem que saberá demais, e Georges aquele que não quer saber. Michel Piccoli está sublime nesse papel de grande senhor frágil, de pai minado por um sonho de inocência infantil, perdido num mundo que ele não mais enxerga direito. Universo de ódios e amores, de repulsões e de atrações violentas, irresistíveis, simultaneamente. Aqui, amar, apaixonar-se quer dizer alguma coisa. Cada ser fascina ou é fascinado, prende ou é aprisionado. Apenas um escapa a essa regra do jogo, e é por isso que ele está no centro do filme. É Aslanian. Mas Aslanian está morto; sem volta, o herói deixou a tela definitivamente. É sobre essa ausência, esse cadáver que faz falar, esse vazio e esse sol negro, que tudo gravita. Um canalha, um fora-da-lei - mas para os jornalistas, “Robin Hood dos tempos modernos” -, Aslanian aparece no decorrer dos depoimentos como aquele a quem ninguém resiste, o sedutor, o ser afastado de tudo, ébrio de uma liberdade radiosa, acima do bem e do mal. Ele rouba, para distribuir o dinheiro entre os pobres... e ele professa, como Dostoievski, que “toda forma de socialismo é um cristianismo pervertido”.
Vejam bem. Aslanian existe apenas através dos depoimentos daqueles que o conheceram e... de uma breve reportagem televisiva. Aslanian, mito e imagem. Aslanian encarna o mal, o diabo? É aqui que o filme me parece muito forte (e bem distante de qualquer tese). Aslanian talvez não seja tão sombrio - podemos discutir isso indefinidamente; ele é apenas, no fim das contas, um utopista ingênuo, persuadido de poder mudar o mundo... Mas o que o filme examina, com uma acuidade pouco comum, é o que se passa ao redor dele, na sua ausência: como o mal se projeta, prolifera pelo infinito, mesmo quando se acredita ter eliminado a causa. Como os seres se tornam cada vez mais viciosos, depois dele, sem ele, irresistivelmente. Não é isso que chamam justamente de corrupção? Eis a beleza, a profundidade desconcertante do filme de Brisseau: ele não denuncia a corrupção; ele descreve a potência contagiante do mal, observa um mundo devorado por esse câncer[2]. E o nosso medo de olhar essa verdade de frente.
Notas:
[1] Ver Études, novembro de 1983, entrevista com Jean-Claude Brisseau, e junho de 1988, O Som e a Fúria, crítica de Jean-Claude Guiguet.
[2] Aqui ainda o filme se situa na linhagem de Mauriac e de Hitchcock.
(Études, novembro 1994, pp. 547-549. Traduzido por Matheus Cartaxo)
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