A LOTERIA DE PARIS (HOLY MOTORS, Leos Carax, 2012)
por Matheus Cartaxo



No centro da narrativa existe Oscar (Denis Lavant), um funcionário de uma misteriosa empresa que trabalha interpretando anonimamente, a mando dos chefes, sucessivos papéis por diferentes lugares de Paris, aos quais ele vai a bordo de uma limusine, conduzida por Céline (Edith Scob) e cujo interior funciona como um camarim.

Quando afirmamos que Oscar “interpreta papéis”, trata-se literalmente disso: no início de cada dia, ele recebe um script onde estão descritos os seres os quais lhe cabe personificar. Em Holy Motors, Oscar interpreta um banqueiro, uma senhora mendiga, um ator especialista em motion capture, uma criatura habitante dos esgotos parisienses chamada Sr. Merde, um pai de uma adolescente, um acordeonista, um assassino, a própria vítima deste, um terrorista (que mata aquele banqueiro), um idoso no leito de morte e, finalmente, um pai de família. Nesse filme, tudo isso acontece numa mesma e longa jornada de trabalho do protagonista, que vai da manhã até a noite.

A partir dessas premissas, Carax desenvolve uma narrativa episódica, marcada pela variedade de locações e personagens, sendo estas aquelas nas quais Oscar se transforma ou nas demais com as quais ele e Céline cruzam, num curto intervalo de tempo, um único dia. Assim enumeradas, tais características de Holy Motors permitem aproximá-lo de outros filmes a fim de identificar algumas peculiaridades suas, caso existam.

É possível traçar semelhanças entre Holy Motors e Um homem com uma câmera (Chelovek s kino-apparatom, Dziga Vertov, 1929) desde os seus prólogos, ambos ambientados em salas de cinema com os assentos completamente ocupados por espectadores. Leos Carax e Dziga Vertov, inclusive, chegam a filmar esses espectadores por ângulos idênticos, em planos frontais que funcionam como nosso reflexo, enquanto lhes assistimos. Indo além, notamos que os dois filmes são estruturados de formas parecidas. O clássico soviético também transcorre no decorrer de um dia e traz no centro, como o título sugere, um profissional do cinema, um cinegrafista, enquanto em Holy Motors há um ator.

Há diferenças entre os filmes, certamente. Em Holy Motors, o que vemos de Paris são pontos turísticos conhecidos (o rio Sena, o cemitério de Père-Lachaise, a Avenida dos Champs-Élysées, a Pont-Neuf). A cidade ali é um cenário, ao passo que, em Um homem com uma câmera, Kiev, Cracóvia, Moscou e Odessa são mostradas como organismos vivos, algo próprio ao gênero cinematográfico a que pertence o filme de Vertov: o das “sinfonias urbanas”, prolífero na década de 1920, quando o crescimento acelerado das metrópoles inspirava alguns cineastas em seus trabalhos.

No caso de Um homem com uma câmera, a personagem do título, alter-ego de Vertov (interpretado pelo seu próprio irmão, Mikhail Kaufman), usa tal instrumento para transfigurar o que se passa diante de si, servindo-se da realidade daqueles centros urbanos e dos seus habitantes como matéria-prima para a sua experimentação com enquadramentos, iluminação, ritmo ou montagem cinematográficos. Nesse aspecto, as duas obras voltam a convergir, pois a cada episódio de Holy Motors Leos Carax realiza variações na técnica utilizada (motion capture, glitch, plano-sequência), no tom dramático das cenas, no gênero cinematográfico com que elas se relacionam (drama intimista, thriller criminal, filme de monstro, musical).

Um homem com uma câmera e Holy Motors ganham forma à medida que nos dão a ver a sua própria feitura. Do segundo, poderíamos ainda dizer que se trata de um filme composto por outros. Toda vez que Oscar sai da limusine é para fazer parte de um fragmento do que poderiam ser obras cinematográficas alheias. Enquanto não retorna à coxia, ele age nelas como um semeador de pathos, alguém que provoca os bons e os maus sentimentos que fazem o mundo continuar a girar, e que emergem quando dois apaixonados se reencontram após anos separados, uma neta faz companhia ao seu avô no leito de morte ou um terrorista atira à queima-roupa num banqueiro em plena Avenida dos Champs-Élysées. Apesar das semelhanças com o experimentalismo vertoviano, notamos como Holy Motors também flerta com o romanesco, embora esse processo seja sempre interrompido, restando impedido de moldar o todo.

As constantes quebras na continuidade do drama, seguidas pelo descortinamento de um novo episódio cujas regras devemos assimilar para logo em seguida as abandonarmos, aproximam a construção de Holy Motors do que Jerzy Skolimowski fez em filmes como Sinais de identificação: nenhum (Rysopis, 1964) e O round decisivo (Walkower, 1965) e Andrea Tonacci em Bang Bang (1970-1971). Outra característica em comum desses filmes é o fato de progressivamente, a cada nova etapa, as suas personagens tornarem-se mais opacas e inacessíveis, algo que em Holy Motors é sugerido em pelo menos dois momentos: quando Kylie Minogue canta uma canção intitulada Who Were We? e Céline cobre o rosto com uma máscara. Esse processo separa tais filmes de uma linhagem de obras cinematográficas na qual acontece o contrário: o encadeamento de eventos num curto intervalo de tempo permitindo que, no atrito com eles, seja removido o que nos impedia de conhecer a essência das personagens. Referimo-nos a filmes como Juventude transviada (Rebel Without a Cause, Nicholas Ray, 1955), A noite dos mortos-vivos (Night of the Living Dead, George A. Romero, 1968), Assalto à 13.ª DP (Assault on Precinct 13, John Carpenter, 1976), Depois de horas (After Hours, Martin Scorsese, 1985), Crime verdadeiro (True Crime, Clint Eastwood, 1998-1999), a trilogia Before de Richard Linklater (Antes do amanhecer [Before Sunrise, 1995], Antes do pôr-do-sol [Before Sunset, 2004], Antes da meia-noite [Before Midnight, 2013]). Em alguns casos, verdadeiras revoluções acontecem: como esquecer o diálogo final de Tom Cruise e Nicole Kidman em De olhos bem fechados (Eyes Wide Shut, Stanley Kubrick, 1996-1999), após tudo o que atravessam ao longo daquela jornada?

Esses últimos filmes são como a frente de bordados, desenhos muito bem ordenados em que cada milímetro parece estar no seu devido lugar, enquanto Holy Motors é o verso onde se dá o entrelaçamento preciso de linhas que possibilita aquele outro lado existir. Apesar disso, o que parece justificar a reunião do Carax e esses filmes numa análise são os vértices em que eles se tocam antes de seguirem em sentidos contrários.

Um exemplo menos conhecido desse modelo de filme se chama Noite inolvidável (The Big Night), dirigido em 1951 por Joseph Losey. Na trama, o jovem George La Main, após presenciar o pai ser espancado por um grupo de mafiosos, decide sair à procura deles por vários cantos da cidade para se vingar. Trata-se de uma história de formação em que a cada passo vemos a transformação de um rapaz incapaz de lidar com os próprios impulsos em alguém capaz de fazê-lo. Numa cena, George La Main está num clube de jazz. O seu olhar volta-se fascinado para uma cantora que se apresenta no palco. Na saída do bar, ele se encontra com ela, faz-lhe elogios, diz que ela é uma das cantoras mais maravilhosas e lindas do mundo inteiro, até que ele diz: “mesmo que você seja...” Nessas reticências, subentende-se uma referência à cor negra da sua pele. Antes de concluir a frase, ele tenta se desculpar, mas é arrastado para o carro, enquanto ela se encosta no poste e é observada pelo rapaz através do vidro traseiro do veículo, sozinha na noite. Talvez aquela cantora fosse mais uma performance de Oscar.

Jorge Luis Borges, em “A loteria na Babilônia”, fala que dos menores aos mais drásticos eventos da realidade (o grito de um pássaro, as matizes da ferrugem e do pó, a morte de um homem, a escolha do seu executor, enumera o argentino), todos são resultados de decisões feitas através de sorteios, por uma instituição secreta, a Companhia, e colocadas em prática pelos seus agentes, não menos discretos e invisíveis. Dois deles poderiam se chamar Céline e Oscar, a quem certa vez coube ser coadjuvantes na noite em que, no olhar daquela cantora de jazz, George La Main enxergou toda a tristeza do mundo e a longa jornada de aprendizado que teria pela frente.

 

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