O VÃO DO MOSAICO: TARKOVSKI ENTRE MOURLET E BRAKHAGE
por Fábio Visnadi



Quando considero todos os seres, não como criações especiais, mas como os descendentes em linha reta de alguns seres que viveram muito tempo antes que as primeiras camadas do sistema cambriano tivessem sido depositadas, parecem-me enobrecidos.
— Charles Darwin

Todos os artistas acreditam em Deus, por um simples motivo:
Deus é a razão da síntese.
— Jannis Kounellis


I


No verão de 1983, durante um festival de filmes em que Andrei Tarkovski seria agraciado com um medalhão, o cineasta teria conhecido pela primeira vez a obra de Stan Brakhage. Para este, o russo era o principal realizador narrativo por conseguir cruzar em seus filmes as três tarefas que ele julgava serem as mais importantes para um diretor: realizar o épico, contando as histórias das tribos do mundo; mantê-lo pessoal, pois “é somente na excentricidade das nossas vidas pessoais que temos qualquer chance com a verdade” e “fazer o trabalho onírico, isto é, iluminar as fronteiras do inconsciente”. Quem quer que tenha visto os filmes de Brakhage entreviu nesses postulados um programa estético análogo ao que o diretor buscava realizar no cinema não-narrativo. O cineasta norte-americano, portanto, tinha as suas razões para esperar, não sem certa ansiedade, que a sua obra fosse produzir algum tipo de impacto no diretor de Nostalgia (Nostalghia, 1983) e O sacrifício (Offret, 1985-1986). Em uma sessão ao lado de sua assistente Olga Surkova e dos cineastas poloneses Zbigniew Rybczynski e Krzysztof Zanussi – este, por sua vez, tendo servido de intérprete –, Tarkovski assistiu às projeções de Window Water Baby Moving (1958-1959), Dog Star Man: Part IV (1964), #6: Stars, Chickens, Eyes, Candles (1975), Made Manifest (1980), Arabic Numeral Series 3 (1980) e Murder Psalm (1980). Teve acesso, portanto, a um panorama considerável de técnicas, momentos e problemas distintos colocados por Brakhage ao longo de sua carreira. A reação, contudo, não foi a esperada.

Tido como dono de uma personalidade sisuda, austera, pouco provável de ter arrancado um sorriso, o cineasta russo passou a verbalizar vorazmente contra aquilo que via em tela. “Isso é muito científico para ser arte”, teria acusado ao primeiro filme da sessão; “é autoindulgente” ou “é tão rápido que machuca os olhos” durante a projeção da quarta parte de Dog Star Man. “Por que você faz isso?” ou “qual é o significado disso?”, foram alguns dos comentários subsequentes, acompanhados, ao que conta Brakhage, de uma verbalização violenta e agressiva em russo. Para os leitores de Esculpir o tempo certamente essas reações remeteram a algumas das cartas que Tarkovski no início do livro conta ter recebido de alguns trabalhadores e cidadãos comuns após terem assistido a O espelho (Zerkalo, 1973-1975) nos cinemas. “Autoindulgente”, “formalista”, “o que você quer dizer com isso?” são alguns dos predicados e indagações comumente atribuídos ou lançadas ao seu cinema, o que traria motivos para que ele procurasse transpor, por meio de analogia, sua situação para a primeira exibição dos filmes de Brakhage – tentar ao menos assistir aos seus filmes em silêncio seria o mais indicado, conforme manifestara o cineasta independente, já que assim o foram concebidos. Contudo, não se tratava tanto de um exercício de má vontade, conforme se relataria posteriormente: Tarkovski teria se intrigado com os filmes vistos em sessão. De acordo com o animador Rybczynski, em uma conversa posterior com Brakhage, o cineasta russo havia praticamente falado só dessas obras por dias. “Eu estou com inveja”, teria dito, manifestando preocupação que esses filmes lançariam uma sombra em seu trabalho.


II


Em janeiro de 1978, Michel Mourlet escreveu: “Há o espelho. Mas o autor de Andrei Rublev (Andrey Rublev, 1966-1969) não se contenta com um reflexo. Ele procura ainda mais longe, mais fundo: além do espelho. E é nisso que o seu filme, que não contém nenhum traço do estilo nem do conteúdo dos filmes de Rossellini, de Bresson ou de Dreyer, dá a impressão por vezes alucinante de ser um dos filmes deles. Tarkovski procura a alma das coisas. Daí a sua obsessão com o que se repete: rostos, destinos. A repetição é o desvelar, ao longo do tempo e das aparências, de uma realidade permanente e secreta. O tempo de O espelho não é aquele da narração cronológica, mas o da fascinação: retornar incessantemente a certos momentos privilegiados.” Durante o curto artigo, Mourlet recapitula algumas imagens fortes do filme, menciona algumas de suas alusões históricas e, no tom assertivo que lhe é habitual, confere ao filme certos predicados que estão, surpreendentemente, em perfeita consonância com algumas das premissas reveladas pelo russo em Esculpir o tempo.

Mourlet, todavia, ocupa um polo diametralmente oposto ao de Brakhage na história do pensamento cinematográfico. Já em “Sobre uma arte ignorada”, espécie de texto-manifesto, Mourlet privilegiava um tipo de cinema que tomava a mise en scène como fim e não como meio para a expressão de um universo particular do autor. Não só a mesma oposição ao expressionismo herdada do realismo baziniano é encontrada no texto, como também uma radicalização desses aspectos: a eliminação de qualquer vestígio de estilização, a disciplina austera do universo moral do autor em prol de uma realidade sensível, apreensível, não mediada por discurso (nem pela montagem nem por qualquer estrutura formal que respire um ar de autoconsciência como em Welles ou Hitchcock). Longe também do registro documentário, do naturalismo rosselliniano, Mourlet defende uma estética em que o autor ainda está presente, mas como mediador entre essa realidade que se apresenta à sua frente e a maneira exata, disciplinar, com que deverá encontrar a articulação necessária para transformá-la em filme.

O crítico é uma espécie de classicista, que acredita não só na realidade invariável das formas – de certas métricas, certas escalas – como também na forma invariável da realidade. Dessa maneira, são certos movimentos de câmera, certas perambulações do corpo do ator pelo espaço, certas convenções narrativas, que atingirão ao máximo o resultado catártico esperado e que farão do filme uma verdadeira janela para o mundo: deve-se esquecer que aquilo é um filme, deve-se tomá-lo como a realidade, o mundo de um filme deve se parecer com o nosso. Para isso, basta a ele ser realista em seu modo de filmar e centrípeto em sua organização formal. A mise en scène mourletiana certamente não exclui o fantástico, mas o abraça quando ele está inserido dentro desses pressupostos: As aventuras de Hajji Baba (The Adventures of Hajji Baba, Don Weis, 1954), Hércules na conquista da Atlântida (Ercole alla conquista di Atlantide, Vittorio Cottafavi, 1961) ou O mundo em seus braços (The World in His Arms, Raoul Walsh, 1952) etc.

Se fosse possível, de tal modo, apostar no patrocínio do crítico francês em algum cineasta moderno europeu, poucos lançariam os dados a Tarkovski e, muito menos, a O espelho. É um filme narrativamente fragmentado, dispersivo, com uma estrutura formal que parece irradiar ao invés de concentrar, tanto por todo o potencial simbólico aparente e pela organização narrativa em torno de certas associações poéticas, como também por ser fruto direto de uma ilustração particular do universo de seu autor: trata-se de um filme de memórias e, mais especificamente, da maneira como Tarkovski as enxerga, o que poderia excluir, em outras mãos que não as dele, o essencialismo almejado por Mourlet. Mas, longe de um senso comum, não é um filme expressivo que Mourlet enxerga em O espelho. Se para Brakhage deveria se realizar o épico tornando-o pessoal, o crítico francês teria visto o filme de Tarkovski como o pessoal tornado épico e, portanto, universal.

Ainda que tenha apreciado o filme, talvez o crítico não pudesse enxergar exatamente no quê a obra de Brakhage lançaria uma sombra à do cineasta russo – talvez para Mourlet o que houvesse de Brakhage em O espelho fosse justamente a sobra, o excesso, o supérfluo, em suma, nunca o essencial naquilo que ele enaltecia em Tarkovski. É uma lei, contudo, que em toda a história da arte o corpo de uma obra-chave no campo da evolução artística – ou seja, toda aquela que representa um importante entrecruzamento de uma ancestralidade abrangente e não somente um prolongamento débil de uma consanguinidade – propague através de sua descendência aspectos parciais de seu código genético, de modo que em um filho se reporta somente certa característica paterna enquanto ao outro uma diversa se sobressai e, no que para um é a ferramenta necessária para a sobrevivência, no outro é apenas um apêndice, algo supérfluo que se possa retirar, como numa espécie de seleção forçada através do jugo estético.

Dessa forma, é possível que um surrealista reclame em Picasso a sua herança enquanto um classicista o coloque ao lado do hemisfério de Cézanne e Ingres e que cada um retenha do pintor espanhol somente aquilo que considera instrumental para a aplicação de seu problema estético. Também é possível que, em certos casos, ao se tomar uma direção fundamentalista, procurando se despir de todo predicado que não carregue consigo um viés axiomático, a obra se converta, como num processo de enantiodromia, justamente no oposto de seu postulado. De maneira análoga, investiga-se aqui como a obra de Tarkovski, e em especial O espelho, pode conjuminar tanto aspectos agradáveis a um hemisfério bem específico da crítica – aquele da decupagem clássica, que enxerga em Walsh, Cottafavi, Preminger e Lang seu cânone – como também aqueles pertinentes a um hemisfério quase oposto – o das vanguardas modernistas de Sitney e de Brakhage.

Como resultado de tal investigação, talvez se possa, ao fim do presente ensaio, acalentar o próprio Tarkovski de que, na realidade, o seu cinema emana uma luz distinta, que não se encerra somente no espectro estético a que se reporta Brakhage e que, portanto, não lançaria à sua obra uma sombra, uma luz que talvez o diretor russo não tivesse entrevisto nos instantes posteriores às projeções das obras do norte-americano e que, talvez, através da crítica do próprio Mourlet – não somente pelo seu texto dedicado a O espelho, mas pelo conjunto de sua obra – se possibilite indagar sob a sua ótica o porquê do fascínio desse filme específico e delimitar de maneira mais segura o seu lugar exato na cadeia evolutiva do cinema, não o posicionando somente em um dos lados nem enxergando como em cada um certas características ancestrais estão presentes, mas como ambas convivem entre si na obra do cineasta, como a contradição entre o clássico e a vanguarda produzem em Tarkovski a síntese e, como através dessa síntese, dessa procura por uma ancestralidade comum, se force o alargamento da conceitualização do que é o cinema e se rejeite uma ideia ontológica que reclame o que ele deve ser, mas que clame para um inventário daquilo que ele pode se tornar, enxergando não somente o que há desses dois hemisférios em Tarkovski, mas também aquilo que há de Brakhage em Mourlet e de Mourlet em Brakhage.


III


Em uma entrevista concedida por Alexandre Astruc a Michel Mourlet e Marc C. Bernard, o cineasta e os entrevistadores são levados a elaborar, quase como em um diálogo socrático, uma definição categórica de dois tipos de mise en scène, a fim de separar o cinema de Elia Kazan e Roberto Rossellini de um lado, do de Fritz Lang ou Otto Preminger no outro: a primeira para quem a mise en scène é um meio, a segunda para quem a mise en scène é um fim. Embora a categorização seja imprecisa – e que se possa argumentar que mesmo àqueles que servem a um tema ou a uma ideia seja necessário o pensamento do cinema enquanto forma, ou que mesmo naqueles que servem ao cinema como um fim está inscrita a sua ideia em cada posicionamento de câmera ou espaço ocupado pelos atores no quadro – ela é esclarecedora para que se percebam duas estéticas em jogo: uma em que a ideia grosso modo antecederia à filmagem, e a forma é então pensada a fim de realizar a concretude dessa ideia (dessa expressão ou desse sentimento); outra, defendida por Mourlet, que é também ela uma estética formalista em essência (“a mise en scène como fim”), mas na qual a colocação de problemas concretos seriam postos em primeiro plano.

Na primeira – a de Rossellini, Dreyer, Antonioni e Bergman – a invenção de uma forma, a experimentação de uma estética, é necessária para solucionar certos problemas decorridos da busca por uma estrutura necessária para a materialização dessa ideia. Avança-se na “filosofia”, portanto, e exige-se uma nova estrutura, por vezes tida como inortodoxa, em outras como maneirista ou supérflua, mas que, pouco a pouco, é aperfeiçoada e se torna absolutamente intrínseca à veiculação daquela imagem interior de seu autor. Na segunda – a de Lang, Preminger, Walsh, Cottafavi, Matarazzo – a solução de problemas concretos antecede a ideia. São estes cineastas que trabalham muitas vezes com gêneros e encomendas, temas e modos de produção que por vezes circunscrevem a sua capacidade de escolha. Se, contudo, são esses os cineastas que partem da imagem, neles a ideia surge por meio da forma. É necessário, nesses casos, um domínio prévio do artesanato do cinema, da confecção e de um talhe – no caso em questão, a decupagem clássica – para que se possa aplicá-lo da maneira mais adequada à necessidade interna de cada filme. Mas esse simples manusear técnico dificilmente elevaria tais cineastas das categorias de meros artesãos, caso não se revelasse, na segurança dessas formas, também um modo de pensar específico, um universo estético de escolhas formais ou morais específicas, ainda que presentes de maneira pouco verbalizada ou teorizada por alguns de seus autores. Não se revela o modo de pensar de Fleischer ou Preminger através da escolha de seus temas, mas justamente por uma visão moral que abarca toda a estrutura formal de sua obra: ainda que obras distintas e gêneros distintos exijam soluções distintas, é possível perceber uma mesma maneira de olhar o mundo em Tempestade sobre Washington (Advise & Consent, 1962) e Bom dia, tristeza (Bonjour tristesse, 1958), em Sábado violento (Violent Saturday, 1955) e Guerreiros de fogo (Red Sonja, 1985) e, quanto mais se avança no entendimento da sofisticação e refinamento de suas técnicas, mais se avança na análise dos predicados particulares presentes em suas obras.

Há ainda um outro texto de Alexandre Astruc que confundiria um pouco essa questão, mas que a manteria intacta de qualquer modo. Referindo-se a um trecho de Balzac em que este diz que existem três estilos, o primeiro da imagem, o segundo da ideia e o terceiro aquele em que a imagem remete à ideia, ele defendia o seu cinema como do terceiro tipo. É irrelevante pensar, portanto, em um cinema somente da imagem (seria esse um cinema praticado à espécie daqueles experimentos que colocam uma tela, algumas tintas e um macaco para pintar?) ou em um cinema só da ideia (seria, na melhor das hipóteses, um cinema conceitual, que prescindiria do próprio cinema, algo que nem Nam June Paik haveria realizado, já que certas condições materiais para a elaboração de Zen for Film, 1964, deveriam ser satisfeitas), e, portanto, é necessário não perder de vista que a complexificação de uma estrutura ideal exige uma sofisticação de recursos formais e vice-versa, sendo poucos os casos de bom cinema que não se encontrem nesse terceiro modelo balzaquiano. Para o presente ensaio, contudo, se utilizará a definição inicial e parcializada, que disserta grosseiramente acerca de um cinema em que há o privilégio de uma estrutura ideal em relação à forma artesanal ou, no caso contrário, para questionar em que pé se encontra o cinema de Tarkovski e, mais propriamente, O espelho, para que pudesse agradar tanto defensores mais radicais de um cinema do primeiro tipo como aqueles do cinema de um segundo tipo.


IV


Tarkovski começa Esculpir o tempo, coincidentemente, dividindo as obras literárias também em dois tipos: o da imagem e o da ideia. Em páginas posteriores, alguns indícios são dados para o entendimento de seu cinema – e para a confusão das premissas acima colocadas. Primeiramente, Tarkovski se opõe a uma forma de ajustar o seu filme “arbitrariamente a uma sequência, obedecendo a uma determinada noção abstrata de ordem”. Para ele, o material cinematográfico poderia ser combinado em uma forma “cuja característica pessoal é permitir que se exponha a lógica do pensamento de uma pessoa”. As duas afirmações servem tanto para os cineastas do primeiro quanto para os do segundo tipo de Astruc, mas um olhar desatento certamente não enxergaria em quê um filme de Fleischer ou Preminger estariam de acordo com as premissas: por mais que Tarkovski acene ao cinema do primeiro tipo ao opor-se à dramaturgia tradicional e por pensar o cinema através de associações poéticas, próximas ao que ele chamaria de “leis do pensamento”, ele se manifesta justamente contrário a um cinema que subordina a imagem ao pensamento (como o cinema expressionista), opondo-se ao que chama de “pensar por imagens”.

“O pensamento é efêmero, ao passo que a imagem é absoluta”, ele teria dito, ou, em outras palavras, se aquele está subordinado à imagem, ele aparecerá de maneira colateral, queira ou não o diretor. A preocupação, portanto, é primordialmente em relação à imagem do mundo. Se Alexandre Astruc remete às anedotas de Jean Renoir, que, conforme conta-se, teria decidido filmar A besta humana (La bête humaine, 1938) ao receber o telefonema de um amigo que pedia a ele a ideia de uma obra que aproveitasse a locação de um trem que havia agendado para a filmagem – surgindo, portanto, antes a imagem do livro de Zola do que qualquer ideia ou pensamento (e uma outra história conta que Renoir teria decidido adaptar Madame Bovary, 1933-1934, somente pela cena da operação) –, Tarkovski sintetiza a prática em aforismo: “A direção de um filme não começa quando o roteiro está sendo discutido com o escritor nem durante o trabalho com os atores ou com o compositor, mas no momento em que surge, diante do olhar interior de uma pessoa que faz o filme, conhecida como diretor, uma imagem do filme”.

Mourlet, Astruc e outros certamente concordariam que é disso que o cinema de Lang, Preminger ou Cottafavi trata: neles o pensamento está contido nas imagens, não surgindo nunca como meras ilustrações de um raciocínio (o que remonta às exposições de Mourlet contra o cinema de Hitchcock que, para ilustrar uma vertigem, filmaria a forma de uma vertigem). Esse raciocínio é sinalizado por certas anedotas a que recorre o russo, como a do soldado que, no processo de ser fuzilado por traição, manifesta preocupação em achar um lugar para repousar o seu casaco – que, daí em instantes, não irá mais precisar. De Tarkovski veremos sair uma afirmação que poderia muito bem ter saído da boca dos franceses: “Não se trata, por certo, de recolher incidentes reais desse tipo para tempos de vacas magras. Trata-se de uma questão de ser fiel à verdade das personagens e das circunstâncias, e não de apegar-se ao apelo superficial de uma interpretação por ‘imagens’”.

Esta, por sua vez, é a imagem do “real”, a serviço de uma verdade que se manifesta por meio da situação concreta, uma verdade em procura de unidade, mas uma unidade obtida a posteriori. Tarkovski renuncia conscientemente à auto-expressão. “Não posso acreditar que um artista seja capaz de trabalhar apenas para dar expressão a suas próprias ideias ou sentimentos, os quais não têm sentido a menos que encontrem uma resposta”, ele comenta. A auto-expressão seria um processo torturante, um ato de sacrifício, mas “valerá a pena o esforço, apenas para se ouvir o próprio eco?”. Essa mesma imagem, contudo, não é fruto de um aprendizado empírico, mas sim resultado de uma crença que vê na imagem concreta a revelação de um princípio universal, uma espécie de maiêutica imagética, que começa já no momento das filmagens – quando ele escolhe atentamente cada locação por um suposto potencial espiritualizante que ela contém em si, manifesto primordialmente no ato de sentir a imagem de acordo com um potencial metafísico – e termina na expectativa da descoberta dessa verdade pelo espectador – quando ele revela por meio das cartas que recebe que os espectadores teriam intuído o mesmo potencial que ele e que, portanto, nas sequências que ele filmou sem essa percepção o filme também teria se revelado coincidentemente mais fraco na exibição do que nas sequências mais fortes, em que haveria descoberto uma verdade. Essa revelação, contudo, não surgiria à maneira de Rossellini, no aguardo incerto de uma epifania, e sim como resultado de uma equação, de uma visão moral que incide sobre as necessidades de cada sequência, extraindo de cada uma aquilo que lhe é incontingente, na crença de que para cada pergunta há somente uma resposta e essa resposta é sempre factual.

“Um filme tem de ser naturalista” é um de seus postulados mais fortes, resultado da premissa de que “a imagem só pode ser concretizada através das formas naturais e reais da vida percebida pelos sentidos da visão e audição”. Dentro dessa hipótese, Tarkovski renuncia aos efeitos teatrais: mesmo o sonho e a fantasia pessoal do autor compartilham sempre em seus filmes a mesma condição imagética do acontecimento real, tal como o estado presente e a memória. Para filmar um sonho, diz o cineasta, “precisamos conhecer os fatos concretos, materiais do sonho: examinar todos os elementos da realidade que foram deformados naquele nível da consciência que esteve de vigília durante a noite”. Ao indagamento da opacidade ou da inverossimilhança presente em um sonho, o diretor russo responde com a mesma ênfase no fato concreto: estes não significariam, no cinema, uma imagem indistinta, mas sim necessitariam justamente da combinação insólita de elementos reais e conflituosos entre si. Com ênfase ainda maior, Tarkovski renuncia ao simbólico e se opõe a todos aqueles que buscam interpretar as imagens de seus filmes através de tal possibilidade, por meio de alegorias ou de figuras de linguagem. É preciso se ater, primeiramente, à descrição do acontecimento, e não à atitude do cineasta em relação a ele. “Nossa atitude deve ficar clara através do filme como um todo, deve fazer parte do seu impacto total”, escreve o cineasta. “Num mosaico, cada uma das peças tem uma cor única e inconfundível. Não importa se ela é azul, branca ou vermelha – são todas diferentes. E então, ao olharmos para a imagem concluída, descobrimos o que seu autor tinha em mente”.


V


Em uma pintura de Picasso ou Gris, seria irrelevante tentar juntar as partes da representação que se escondem por trás da decomposição espacial da obra: o cubismo não se tratava, como acreditavam certos críticos ingênuos à época, de tentar decifrar a figura oculta, e sim de chamar a atenção para o quadro como um campo em si, dotado de suas próprias leis internas à procura da descoberta do funcionamento desses princípios pictóricos. Esse funcionamento interno levou à materialização da premissa levantada um século antes, de que a pintura não era nada mais que linhas e cores. De Cézanne a Pollock, a representação cedeu rapidamente a uma ênfase no representante, como Brakhage partindo de Window Water Baby Moving a Eye Myth (1967). No mosaico, contudo, a figura, olhada a certa distância, se torna clara e distinguível, e ainda que cada cor ou forma geométrica esteja dissociada da outra por meio de um vão espacial presente entre cada unidade, não há aqui qualquer mistério nem necessidade de esforço por parte de um observador para apreender uma nova organização formal. A clareza é um dos objetivos colocados, e não há nela qualquer presença de um enigma, mesmo que se trate de um desenho abstrato, como em uma calçadaria portuguesa. O espelho, de Tarkovski, é um mosaico cinematográfico.

De fato, ao se observar atentamente o filme, percebe-se que, apesar dele se deslocar temporalmente entre passado e presente, sonho e realidade, arquivos de imagens que reportam a acontecimentos históricos ou à representação pessoal desses acontecimentos, no interior de cada sequência há a clareza da linha e do contorno. E, da mesma maneira que se sucede em um mosaico, se tomarmos certa distância, passaremos a distinguir no vão entre as sequências uma espécie de material que as une no plano físico. Se há uma confusão aparente, ela surge muito mais da matéria-prima com que está trabalhando – a memória, o sonho, a história, uma matéria enfim que escapa às convenções de um cinema dito clássico – do que na forma com que é apresentada. Não se pode, portanto, dizer que O espelho é elíptico como Muriel (Muriel ou le temps d’un retour, Alain Resnais, 1963) ou os filmes de Alain Robbe-Grillet: não há um plano de ação, uma narrativa se dividindo e esfacelando em diversas frentes, decompondo a narrativa de maneira análoga à dos cubistas. Há aqui uma compilação, uma antologia de momentos suficientes em si mesmos, que compartilham entre si somente a condição prismática de um mesmo eu olhando para todos eles em um período de uma vida.

Se esse eu, contudo, fosse apenas o eu de Tarkovski, seria esse um filme pessoal, em que o que importa é a maneira como o autor observa todos esses momentos, virando as costas à realidade e organizando o filme de modo também extremamente pessoal, de acordo com certos anseios românticos, certas comoções íntimas, como o eu do Brakhage inicial em que o seu temperamento está alinhado com o olhar da câmera, a temperatura e a agitação do filme. Seria, de tal modo, não somente uma obra distante de toda a estética defendida por Mourlet, como sua própria nêmese. O eu de O espelho, no entanto, não é tanto o de Tarkovski, mas o do narrador do filme e, se em certos momentos da história do cinema, da literatura ou das artes no geral, narrador e autor podem por vezes se confundir, isso não é de tanta importância na recepção do essencialismo e da universalidade atingida pela obra em si como o é para os biógrafos. Não importa aqui se esse homem é de fato Tarkovski ou um personagem criado pelo diretor russo e sim como ele se apresenta: um homem, ou todos os homens, olhando para as suas memórias a partir de certo momento de sua vida, representado de forma realística e empática, em que o mundo desse homem é também o mundo de seu espectador, e em que este esquece quem é no exato momento em que está assistindo e passa a ser esse homem à espreita, que nunca vemos na tela.

É por isso que talvez seja um pouco apressado rotular Tarkovski como cineasta modernista. Em seu cinema nunca há uma atenção para o representante nem uma preocupação na descoberta de certos princípios propriamente materiais. Se há uma forma inortodoxa, ela decorre de necessidades altamente específicas, de representar uma matéria-prima complexa de maneira precisa, descritiva, natural. Ele prefere Dovjenko a Eisenstein, Mizoguchi a Kurosawa, e manifesta singular apreço ao cinema de Luis Buñuel, em especial Nazarin (Nazarín, 1959), de sua fase mexicana, e diz que Bresson foi o único cineasta que conseguiu, justamente, a aliança entre o resultado final da obra e uma ideia formulada previamente. Se fala, portanto, de um cinema poético em um certo momento, é sempre uma poesia que necessita da terra para comover, que acredita no potencial da imagem e que por isso realiza sempre o caminho da imagem à ideia e nunca da ideia à imagem. Como em um mosaico, por mais que nos sejam apresentados diversos blocos de imagem separados entre si por um vão, é somente ao olharmos para a imagem concluída que temos a ideia do que seu autor tinha em mente: sua atitude deve inscrever-se em cada pedaço – cada posicionamento de câmera, décor, locação, no corpo dos atores – mas sua ideia, não. Esta deve, primeiro, percorrer o caminho socrático da imagem cinematográfica e só enfim chegar à conclusão de seu raciocínio.

Se Tarkovski está, desse modo, mais próximo de Lang ou de Preminger, de Walsh ou de Mizoguchi, torna-se possível entender o porquê dele ter chamado a atenção, enfim, de Michel Mourlet. O crítico francês certamente não elaborou o problema nesses termos, mas a sua intuição estética possivelmente entreviu o que separava o cinema de Tarkovski do de Antonioni ou Bergman. E se assim Mourlet o percebeu, por que o próprio Tarkovski não o teria feito, acreditando que o cinema de Brakhage lançaria uma sombra ao seu cinema? Ou, resta investigar, teria ele manifestado tal preocupação justamente porque o cinema do criador de Dog Star Man, ao contrário do que é comumente caracterizado, partilharia com ele a mesma condição de um cinema que parte da imagem para chegar à ideia? E se assim o fosse, Brakhage teria percebido que, em um determinado ponto, a ponta da abstração tocaria enfim a ponta da representação?


VI


No vão entre uma sequência e outra de O espelho há uma cartilagem desgastada, um choque quase direto entre ossos. Os paralelismos que servem de pontuação ao filme – ao lado da leitura dos poemas do pai de Tarkovski – conduzem por vezes a expectativas facilmente quebradas. Se passamos de um momento de sono, em preto e branco, para o estado de vigília por meio da presença do fogo (que aparece no contracampo na primeira sequência ou em foco na segunda) ou de um passeio da câmera pelo interior da casa, em direção à sua janela, para o estado de recordação já no exterior, em meio a uma alameda, não temos quaisquer indícios de um eventual potencial simbólico iminente entre o choque desses planos. Uma imagem feminina ao espelho passa ao registro documental de uma tourada sem qualquer razão aparente, alternando a situação temporal; logo, o filme passa a intercalar planos em cores numa sequência de câmara para imagens documentais de exteriores em preto e branco da Guerra Civil Espanhola, de um balão ou de passeatas, e chega a um close em uma figura de Leonardo da Vinci em um livro de história da arte.

O som funciona como meio de ligação entre os deslocamentos narrativos do filme, mas se ele é recurso para atar duas sequências, em relação à imagem ele tem efeito diverso, criando uma sensação ainda maior de estranheza, que perpassa toda a obra: um barulho em crescendo, a batida de um coração acelerado ou um silêncio estarrecedor quebrado por leves sopros trazem a ideia de um mistério iminente, de uma tragédia, pesadelo ou acontecimento insólito, que tende geralmente a não se concretizar no plano físico. Também o movimento da câmera serve por vezes de pontuação entre duas sequências, mas é no interior delas que este contribui para o choque: parece haver um corpo etéreo a se aproximar da cena, assistindo-a timidamente de longe e se aproximando cada vez mais de certos corpos. Esse corpo, intuímos, é o do narrador, e a sequência que se desdobra à sua frente é a sua memória. O choque é ampliado justamente porque nada disso se passa fora de uma ordem diegética naturalista, e Tarkovski, desse modo, realiza o sonho de grande parte dos memorialistas e saudosistas: o de assistir ao seu passado como um anjo à espreita, no seio real dos acontecimentos. Esse corpo, contudo, não se resolve entre passado e futuro, imagem e realidade, sonho e vigília, mas, mais do que isso, esse narrador não se decide entre ritmo, temperatura, cor: planos longos cedem a planos curtos e picotados; o calor cede ao frio e o fogo ao gelo; do colorido ao preto e branco, do silêncio ao som.

De maneira semelhante, o cinema de Brakhage também trabalha em torno dessas antinomias. A pista para essa percepção foi dada por Fred Camper em seu ensaio “Brakhage’s Contradictions”. Segundo o pesquisador, por mais que os filmes do cineasta norte-americano contenham uma sensação oceânica de continuidade, há uma imprevisibilidade em relação ao desenvolvimento de cada movimento: seus filmes alternariam objetos sólidos – reconhecíveis ou não – com composições abstratas em um padrão que preenche o espaço; no momento em que o espectador pensasse em “transparência” ao assistir a uma imagem de água reluzente, uma cabeça sólida se levantaria das ondas; a um ritmo constante que poderia causar a ideia de um “sapatear”, uma imagem imóvel se introduziria; a partir do momento em que a imagem reconhecível começa a adquirir um potencial pictórico, Brakhage a cortaria fora. Esse corte entre duas imagens contraditórias, conforme Camper, levaria a uma terceira imagem que não sintetizaria nem resolveria a contradição interior, mas engajaria o espectador em um novo mistério.

O mistério em Brakhage, contudo, é destituído do suspense e da expectativa que estão presentes no cinema de Tarkovski, que joga conscientemente com certas convenções do cinema clássico na criação de tensão. De maneira também oposta em relação ao russo, as imagens de Brakhage surgem destituídas do contexto em que foram apreendidas: ao filmar uma casa ele não está preocupado com a familiaridade sugerida pela imagem nem busca desenvolver a partir do conceito uma espacialidade e tridimensionalidade do objeto. Evidentemente, a imagem desse objeto ainda alude a ele, mas está imbuída em uma associação metafórica, poética, interior ou, nos termos de Camper, “visionária”. Conforme o próprio Brakhage, há em alguns de seus filmes a procura em libertar essas imagens para a sua vida própria. Tais imagens, portanto, não aludem mais aos objetos reais das quais provêm, mas adquirem no filme a condição de imagens cinematográficas: elas são passíveis de serem remanejadas através da necessidade específica de cada filme, seja para perseguir, por vezes, certos conceitos abstratos (como a eternidade ou o fluxo da consciência humana), seja porque foram pensadas em torno de uma continuidade, da busca de um estado e de um sentimento específico: o ritmo de seus filmes tem um efeito quase magnético de perseguir uma certa intensidade ou visceralidade à maneira de uma action painting enquanto a justaposição de imagens sob a égide de um estado central remonta às pinturas da parcela color field do expressionismo abstrato.

Se Brakhage parte da apreensão de um mundo exterior ou objectual, este o serve para a perseguição de um ideal extremamente subjetivo. Tarkovski, por outro lado, por mais que inicie seu caminho através de um princípio subjetivo, deve recriá-lo no mundo físico. Tendo procurado em O espelho, conforme atesta, chegar à expressão e à revelação do mundo interior de um protagonista – que nunca aparece de fato – mantém-se firme aos seus princípios naturalistas. A imagem cinematográfica ainda consiste aqui na “observação dos eventos da vida dentro do tempo, organizados em conformidade com o padrão da própria vida e sem descurar das suas leis temporais”. Por mais que trabalhe com sonho e memória, há uma procura detalhista em transpor de maneira quase literal esse viés interior no mundo material. O cineasta buscou, então, reconstruir cada locação do filme com base em fotografias e documentos, de modo que se assemelhassem aos registros e memórias que trazia consigo (ao levar amigos ou familiares às locações estes teriam se surpreendido com a exatidão da recriação). Essa tentativa de recriar a memória passada em condições realistas no presente e em locais distintos dos acontecimentos que haviam se sucedido com ele, acabou por criar, contudo, situações problemáticas no decorrer da filmagem.

Uma delas, como conta Tarkovski, é que durante a sua infância crescia trigo-sarraceno entre a casa em que vivia e a estrada do vilarejo. Contudo, após decidirem os locais de filmagem, os trabalhadores rurais asseguraram à equipe que não era possível cultivar trigo-sarraceno no local, já que o solo não era apropriado para isso. Por conta própria, o diretor e o grupo decidiram semear e, pelo que ele julga como um bom presságio, o trigo brotou. Segundo o cineasta, essa conquista parecia “dizer algo sobre a qualidade especial da nossa memória – sobre sua capacidade de penetrar para além dos véus estendidos pelo tempo” e que essa era a ideia seminal do filme. Um outro ponto que remete aos mesmos lapsos de memória mencionados é quando em certo momento do filme o narrador diz que não consegue recordar do rosto de sua mãe e que ele se lembra dele como a face de sua esposa. Ambos os papéis são interpretados pela mesma atriz, Margarita Terekhova, e vemos, dessa maneira, o rosto da mãe do narrador da mesma maneira como ele se recordaria.

Se Tarkovski projeta o sujeito no objeto ou se Brakhage parte do objeto para chegar ao sujeito, a chave para unir os dois cineastas não está nessa relação contraditória com o estatuto da imagem em seu cinema. Para afirmar se ambos são ou não cineastas que partem dela para chegar à ideia – criadores, portanto, do segundo tipo da hipótese de Astruc colocada no início do ensaio –, deve-se olhar para o uso que cada um fez do princípio da montagem. Tanto Brakhage quanto Tarkovski estiveram muito próximos das leituras de Eisenstein: o primeiro era um ávido e obcecado leitor do teórico; o segundo estava inserido dentro de um contexto cinematográfico mais próximo geograficamente das ideias do diretor de O encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin, 1925). Mas Tarkovski se opõe à montagem eisensteiniana, enquanto Brakhage a liberta de seus imperativos. Este parece hiperutilizar Eisenstein ao realizar, por vezes, a montagem no mesmo plano através da justaposição de camadas, como na série Visions in Meditation (1989-1990), transpondo para o interior de cada fotograma duas imagens distintas. Mas, nessa saturação, Brakhage realiza uma inversão, abdicando justamente do sentido que sintetizaria ou contradiria a imagem anterior. Enquanto Eisenstein justapõe os planos para revelar novos sentidos, Brakhage justapõe os sentidos para revelar novos planos: da imagem à ideia.

Tarkovski, por sua vez, acredita que “o fluxo do tempo num filme dá-se muito mais apesar da montagem do que por causa dela”, fluindo através das próprias tomadas. Ele é um realista, e quanto a isso não há novidade; mas, ao prosseguir, encontramos em seus aforismos um equivalente para os postulados de Brakhage: “O tempo, impresso no fotograma, é quem dita o critério de montagem, e as peças que ‘não se montam’ – que não podem ser coladas adequadamente – são aquelas em que está registrada uma espécie radicalmente diferente de tempo. Não se pode, por exemplo, colocar juntos o tempo real e o tempo conceitual, da mesma maneira como é impossível encaixar tubos de água de diferentes diâmetros. A consistência do tempo que corre através do plano, sua ‘intensidade’ ou ‘densidade’, pode ser chamada de pressão do tempo; assim, então, a montagem pode ser vista como a união de peças feita com base na pressão do tempo existente em seu interior”.

Pode-se arriscar dizer que é o encontro dessa pressão do tempo existente no interior de cada imagem que aproximaria os cineastas do segundo tipo: não se trata de pensar por imagens, mas sim de pensar as imagens, chegando à ideia por meio delas e não a elas através das ideias. Se há, por um lado, a objeção desse estatuto ao cinema de Brakhage, torna-se necessário retomar a desgastada alegoria da caverna de Platão, convocada à mesa pelo próprio cineasta no título do terceiro capítulo de Visions in Meditation. Um vulto, uma sombra distorcida projetada no interior de uma caverna e tida como real ainda é ela real enquanto imagem. Toda uma ideia de realidade, portanto, é inferida a partir dessa imagem. Mas tanto Brakhage quanto Mourlet perseguem o conceito do “real”: o que diferencia um do outro é que para Mourlet provavelmente o cinema de Brakhage é a ilustração exata dessa sombra projetada, enquanto para Brakhage a imagem naturalista que é o vulto distorcido, procurando libertar-se ao mesmo tempo em que a liberta de sua condição contextual. Se a realidade é revelada emergindo em direção ao universal ou mergulhando no pessoal – clássico e romântico, apolíneo e dionisíaco, metafísico e existencial – o cinema de Tarkovski procura a razão da síntese.

 

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