A IDEIA DE ABSTRAÇÃO Dentre os textos póstumos de Wallace Stevens havia um ensaio chamado A Collect of Philosophy. Nele, Stevens se questiona se existem noções filosóficas que sejam inerentemente poéticas; ele se faz essa pergunta de maneira muito cautelosa, entendendo desde o princípio que essas ideias não devem ser levadas a extremos absolutos. Tais ideias exigem ou pressupõem, quando levadas ao extremo, definições de termos impossíveis de se definir, como, por exemplo, o poético. Eu gostaria, nesta noite, de acompanhar Stevens e perguntar, considerar, se existem ideias filosóficas que sejam inerentemente cinematográficas. Existe uma que vem à cabeça imediatamente: a filosofia de Alfred North Whitehead. Ele rejeitava o conceito de coisa, de objeto exterior, favorecendo a ideia de evento. O seu conceito de evento me parece eminentemente compatível tanto com a complexidade da ilusão cinematográfica quanto com o tempo cinematográfico. Whitehead fez esse postulado para se livrar dos problemas em separar o sujeito do objeto, a ideia de estático e de móvel. Ele prefaciou suas observações com uma afirmação essencial, dizendo que “a situação nova no pensamento hoje surge do fato de que a teoria científica está ultrapassando o senso comum”, e propôs uma filosofia que seria alheia ao senso comum mas responderia a alguns dos problemas que o senso comum falhara em responder e que ocorrem na história da filosofia. A sua observação básica era a de que “um evento é a unificação de um padrão de aspectos”. Uma noção bastante complicada; não vou adentrar nela porque levaria a noite inteira. No vocabulário de Whitehead, que é relevante para o cinema, temos expressões do tipo “uma ocasião verdadeira”, que de muitas maneiras corresponde a um fato objetivo de nossa experiência cotidiana. É aquela união entre matéria e percepção, que é um acontecimento ou uma coisa do jeito que a vemos. Whitehead também fala em objetos eternos, que, parafraseando grosseiramente, funcionam de certa forma como o universal: verde, pedra, P. Adams Sitney, são objetos eternos, absolutos, que existirão como conceito em uma pureza, em um tipo de idealismo platônico, quando essa pedra ou essa pessoa não estiver mais presente. Ele fala em abstração da seguinte forma – e estamos nos aproximando do assunto relevante desta noite: “Existe um duplo sentido de Abstração com relação à abstração de objetos eternos definitivos... Há uma abstração da atualidade e uma abstração da possibilidade.” Elas correm em direções opostas; a partir da situação física há uma purificação gradual da abstração; a partir da ideia do possível (o âmbito de todas as coisas possíveis) o processo de abstração fica cada vez mais concreto. Ele descreve esses dois caminhos como “hierarquias abstrativas”. Mais adiante devo retornar a estas ideias que lancei sem realmente defini-las, e espero, no decorrer desta palestra, mostrar como tal filosofia – uma reorientação que se distancia dos objetos e perceptores e se direciona aos eventos – é inerentemente relevante para inúmeros problemas que encontramos na crítica de cinema. A tabela reproduzida na última palestra dizia “abstrato” e “fictício” no topo. Essa tabela basicamente descreve de forma sincrônica a morfologia que descrevi na semana passada de uma maneira diacrônica, isto é, como uma evolução histórica. Ela é dividida ao meio em um polo abstrato e um fictício. Nós todos sabemos, ou temos uma ideia geral, do que é um filme narrativo. E o que é o oposto? A narrativa não tem um oposto puro. Coloco a palavra “abstrato” muito cautelosamente como o oposto de “narrativo”. Outra pessoa fez um trabalho bem mais preciso em definir as complicações de se pensar sobre narrativa; vou ler essa definição:
Muitos de vocês reconhecerão a voz de Gertrude Stein; o texto era Narration. Ela evoca nesse simples parágrafo a dificuldade básica de se falar sobre narração: o seu conceito muda constantemente. Em algum momento no século XIX, uma consciência surgiu entre os escritores, uma consciência especial sobre o ato de contar histórias, sobre a natureza da narração. No momento em que essa consciência nasceu, a narração tinha que mudar. Não existia mais tal coisa como a escrita puramente descritiva. A narração gradualmente se moveu em direção ao abstrato. Gertrude Stein estava falando sobre a diferença entre a escrita americana e francesa no começo dos anos 1920. Como exemplo primordial de escrita americana ela tomou, inteligentemente, a si mesma, e se comparou a uma escrita do cotidiano, uma descrição da vida rotineira que havia sido a essência da prosa narrativa na Europa. Ela alegava que a América não tinha vida rotineira e, portanto, a prosa americana tinha de certa forma liberado a narrativa, transformando-a de uma descrição de acontecimentos sucessivos para uma área mais pura, uma descrição da existência pura. Se pensarmos em narrativa na história do filme narrativo como uma espécie de pêndulo balançando eventualmente na direção de algo consecutivo, precisamos pensar em um segundo tipo de pêndulo para definir o filme abstrato, que não opera em acontecimentos consecutivos, mas na total simultaneidade, e no qual se pode ver a hierarquia abstrativa distanciando-se das coisas. Nós temos esses dois pêndulos balançando, às vezes eles convergem; às vezes os ditos elementos narrativos surgem e se tornam a parte mais importante em filmes abstratos; por outro lado, coisas abstratas podem se tornar a parte mais importante em filmes narrativos. Tomem essa situação e a imaginem passando pela história em flutuações, e vocês terão um gráfico complicado, porém verdadeiro, da diferença entre o narrativo, ou fictício, e o abstrato. Em relação a isso, um fato interessante aconteceu que alude às complicações envolvidas em se falar sobre narrativa e cinema, em divorciar o cinema das outras artes para se falar da essência do cinema, o que eu presumo que seja o princípio básico de qualquer teoria da vanguarda. Standish Lawder, em Yale, fez sua tese sobre Fernand Léger e Eisenstein, e basicamente seguiu o caminho de descrever como a pintura e a literatura haviam influenciado o cinema consciente nos anos 1920. Sua influência é imensa. Jay Leyda, que, como muitos sabem, é talvez o mais distinto historiador de cinema no mundo hoje, ensinando na mesma universidade, leu a tese de Lawder e teve a ideia para um curso sobre a influência do cinema na literatura; ele fez seus alunos lerem Hemingway, Stein, Joyce, Kafka, Brecht, o panteão moderno, e eles analisaram a influência que o cinema teve nestes autores. Foi imensa. De maneira diversa, atualmente existe uma reciprocidade, que vem existindo pela maior parte deste século, entre a narrativa cinematográfica e literária. É muito difícil separar as duas. A maior parte desta palestra será baseada numa certa alternância entre as duas, não como tentativa de atingir uma definição absoluta, mas para definir parte do perímetro da questão. Whitehead diz duas coisas que são muito relevantes para a situação cinematográfica. Ele diz: “parece que há certas quantidades mínimas de energia que não podem ser divididas”, e também diz: “a resistência é a repetição do padrão em eventos sucessivos”. Deve ser óbvio como eu pretendo traduzir isso em termos cinematográficos. Talvez seja um pouco grosseiro. Para haver o cinema, precisamos ter uma norma básica conhecida como quadros por segundo. A câmera registra um número de imagens fixas numa certa frequência; o projetor exibe essas imagens na mesma frequência. Durante o período mudo a frequência era flexível, durante o período sonoro foi padronizada para 24 na América. Então existe, no cinema, um determinado mínimo absoluto de velocidade que não pode ser reduzido. Além disso, todos os filmes não são mais que uma sucessão de imagens fixas; 24 imagens diferentes a cada segundo. A continuidade, equivalente à resistência na linguagem de Whitehead, é, como o filósofo diria, a repetição do padrão em, ao invés de eventos, quadros sucessivos. Tendo isso como base, gostaria de começar a descrever algumas das formas nas quais o filme narrativo se distinguiu neste século. Gostaria de voltar aos meados dos anos 1920, a Paris, a um emigrante russo, Dimitri Kirsanoff, e seu filme Ménilmontant (1924-1926). O que farei esta noite com Ménilmontant e depois com Wavelength (Michael Snow, 1966-1967) será a total mutilação da experiência estética de um ponto de vista analítico, mas estas palestras não pretendem, não poderiam existir, se o palestrante tivesse a responsabilidade de apresentar, para um público desfamiliarizado com Ménilmontant ou Wavelength, o filme, a experiência estética inteira e ao mesmo tempo prosseguir em analisá-los. Assim, as análises prosseguem na presunção, verdadeira ou falsa, de que vocês estão familiarizados com estes trabalhos. Vamos começar com o início de Ménilmontant. — Exibição do trecho do filme — Aqui temos uma das aberturas de filme mais elípticas que já vi. Existem diversos tipos possíveis de elipses no cinema narrativo. Essa cena de assassinato não é explicada ou referida adiante no filme; nunca conhecemos o motivo do assassinato. Um dos objetivos básicos da elipse é a concentração. Há um tipo de elipse que corta tudo o que for acessório. Há dramas convencionais que poderiam começar mostrando os assassinos rondando a casa, construindo um tipo de tensão dramática, observando-os entrar, observando-os matar; teríamos uma noção dos seus motivos. Aqui não temos nada disso; temos, diretamente, imediatamente, um assassinato brutal, seguido de uma imagem de significado narrativo específico: vemos uma lareira com o fogo ainda aceso dentro da casa, e então o cineasta corta para um plano com crianças. Há uma determinada lógica estabelecida aqui, de forma bastante imediata mas altamente elíptica, de associação entre o assassinato e as crianças, que logo entenderemos. Além da elipse, eu gostaria de falar sobre uma forma cinematográfica básica que é também uma figura de linguagem, a sinédoque, que na literatura significa a parte pelo todo. É uma das formas mais elementares do cinema pelo fato de que ela depende do enquadramento. O close-up frequentemente funciona no contexto narrativo tomando a parte de uma ação quando a sua totalidade está implícita. Uma sinédoque narrativa típica é o terceiro plano deste filme, a maçaneta sendo furiosamente mexida. Outra é a cena após o massacre, quando o machado é jogado ao chão. Por meio destas imagens muito breves, uma história começa a se desvelar. Mas, ao optar por um nível tão alto de figuração na sua linguagem visual, Kirsanoff de certo modo torna abstrata a sua narrativa ao mesmo tempo em que a propele adiante com tremenda velocidade. — Outro trecho — Todos devem ter notado duas figuras de linguagem muito simples. Uma é o uso de uma alusão pelo fora-de-campo, ou seja, o grupo de homens está obviamente circundando os cadáveres. Nós não vemos os corpos; temos ao invés disso esse plano, que aparece uma única vez, mas que por sua alusão pelo fora-de-campo é uma representação extremamente sucinta e, de novo, sinedóquica, de uma cena inteira. A outra figura de linguagem, ainda mais óbvia, cujo tratamento do tempo é particularmente interessante, é a prolepse nas cenas no cemitério. A passagem de tempo é indicada por uma elipse muito simples onde se corta de uma cena onde a grama em torno das sepulturas está baixa para outra onde ela está muito alta. O que é especialmente interessante nesse ponto não é a elipse em si, mas o fato de que, para uma intensificação poética, Kirsanoff situa-a antes de mostrar as garotas deixando a cena. Ou seja, recebemos de súbito, no contexto dramático, uma previsão da passagem do tempo. Na experiência cinematográfica acontece algo muito interessante com relação à prolepse. Nós vemos as sepulturas, e então vemos as ervas crescerem; automaticamente estamos no futuro, sabemos que o tempo passou e esperamos que a imagem que vem depois será também no futuro, agora tornado presente. Mas Kirsanoff, repentinamente, nos leva de volta às garotas indo embora de sua casa, de modo que se torna uma previsão somente em retrospecto. Esta é uma figura especialmente relevante da linguagem cinematográfica, a habilidade de mostrar uma experiência e então, pelo evento seguinte, fazer-nos reexperimentar em novos termos o que acabamos de ver. —Trecho de filme — Um dos grandes poderes do cinema narrativo é a sua capacidade de mostrar duas coisas ao mesmo tempo. Na sequência que vimos nos são mostrados dois fatos básicos. Um, por meio de uma metáfora de movimento de câmera, sentimos a tontura e a exaltação que essas garotas sentem quando vão a Paris pela primeira vez. Pelo fato de que acabamos de vê-las indo pela estrada que sai da sua cidade natal em saltos elípticos, e pelo fato de que as imagens seguintes são de um ponto de vista subjetivo (planos em câmera na mão das ruas de Paris que ficam ainda mais interessantes e atordoantes com a sua superposição), começamos a perceber esse movimento e essa montagem como metáfora para o encantamento inicial das irmãs quando elas chegam a Paris. Mas então são inseridos nas imagens da cidade alguns planos sinedóquicos das garotas trabalhando, fazendo buquês em uma fábrica. Pelos relógios sabemos que é hora do almoço. Assim, nossa percepção inicial da montagem pela perspectiva das garotas é transformada assim que assimilamos que elas já estão acomodadas na cidade. A inversão é ainda mais elíptica pelo fato de que as vemos no momento em que saem do trabalho. Uma cinematografia tradicional poderia mostrá-las durante um dia típico de trabalho ao invés desse método fragmentado. Em uma cena breve e sucinta conseguimos combinar a sensação das ruas de Paris com a das garotas saindo para ir almoçar, com a mesma informação básica que uma história desenvolvida de maneira mais lenta e laboriosa nos contaria: elas chegaram a Paris, elas estão mais velhas, as duas conseguiram um emprego numa fábrica fazendo esses buquês e estavam bastante empolgadas com a balbúrdia de Paris. No que se segue haverá um conflito direto, que é: vemos uma Paris selvagem e veloz, seguida de imagens de uma sarjeta, de uma rua funesta, e a garota mais atraente está parada nessa rua. A coisa que alguém assistindo a esse filme nos Estados Unidos em 1971 poderia não saber é que Ménilmontant é uma parte de Paris, um bairro de operários, e é bastante decadente. Uma simples justaposição, “os eventos sendo uma coisa consecutiva”, como Gertrude Stein disse, claramente nos informa, se tínhamos alguma dúvida a respeito, de que se tratava de uma carta propondo um encontro para uma das garotas. Com um olhar para o fora-de-campo, fica bastante claro o sentimento de ciúme que a irmã menos atraente sente com relação ao casal. Esses dois elementos são muito simples. A instalação de um clima de manhã de domingo ocorre de uma forma bastante literária e rudimentar. Primeiro, vemos “domingo” escrito no calendário, vemos “sábado” destacado e caído no chão; vemos um par de bonecas de pano indicando uma infantilidade que é confirmada na dança das duas irmãs. Quando saímos para a rua para ter a sensação de domingo, vemos uma metáfora bastante elementar: um gato olhando para alguns pombos, prestes a pular sobre eles. Essa metáfora deve nos dar, se olharmos para o filme com atenção, uma indicação do que irá aparecer na carta. —Trecho de filme — Kirsanoff avança sua história em pequenos saltos. Vemos algumas cenas detalhadas, cenas bastante pungentes, e então saltamos adiante na sequência de eventos. Com relação à ontologia que venho descrevendo, a maior parte deste filme presume a natureza da resistência, da absoluta ilusão de continuidade de tempo no cinema. Era mais intenso e mais radical logo no começo, onde os eventos acontecem numa velocidade muito próxima do limite da experiência cinematográfica absoluta, isto é, próxima de um fotograma por vez. Houve planos de quatro, três e até dois fotogramas; conforme chegamos perto desse limite, os eventos se tornam mais intensos. Mas a maior parte do filme presume o tipo de resistência simples que assumimos na nossa vida diária, lidando com o mundo conforme Whitehead o percebe, como uma sequência completa de eventos em constante transformação. —Trecho de filme — O uso dessas fusões, onde vemos a garota entrar no quarto e então se dissolver para outra posição, pode ser definido como elipse finita, ou seja, uma elipse que indica um período definido de tempo ao invés de um tempo indefinido. Ao usar uma elipse óbvia desse tipo, Kirsanoff está fazendo algo que é crucial para o seu estilo. Usando qualquer uma das figuras que mencionei – elipse, sinédoque, prolepse –, ele está tornando o processo de contar a história algo consciente, está trazendo à tona o nível cinematográfico da sua narrativa, fazendo-nos ver o filme como uma sequência de figuras de linguagem ao mesmo tempo em que o vemos como uma simples narrativa, e de fato é uma narrativa muito simples. O elemento figurativo, e não o enredo, dá ao filme a sua complexidade. Com o uso desta linguagem cinematográfica altamente figurativa, um cineasta cria uma espécie de cintilação em seus filmes e um alto nível de intensidade que torna o filme mais perceptível ao torná-lo mais indireto. Para voltar a um dos temas da nossa última palestra, nós discutimos os formalistas russos e a ideia de tomar um material antigo e tratá-lo de uma maneira nova para tornar os eventos mais perceptíveis, para forçá-los de alguma forma na consciência do espectador. Pelo uso de um vocabulário altamente figurativo, Kirsanoff está tornando o ato de narração cada vez mais consciente. —Trecho de filme — Esta sequência é muito interessante. Estamos entrando no momento em que a narrativa começa a retratar o subjetivo. A irmã menos atraente está em casa, esperando sua irmã retornar, e ela escuta o tique-taque do relógio. Cada ruído da rua que ela escuta a faz pensar que sua irmã está chegando. Ela ouve pessoas andando na rua, e então vemos, de forma sinedóquica novamente, apenas pés andando na rua. Ela escuta um carro estacionar; nós vemos apenas as rodas de um carro se afastando. Vemos no meio disso tudo o gato simbólico vagando pelo filme. Aqui está um retrato visual da experiência auditiva desta garota. A câmera se move e perde o foco no momento do corte final. Estamos prestes a entrar em outra esfera subjetiva que deve ser observada com bastante cuidado. —Trecho de filme — Os ruídos das ruas de Paris são evocados quando os pés, os carros, são associados ao som. Então pelo uso da movimentação de câmera, que tem um significado específico neste filme, passamos a pensar não somente nos sons que ela está ouvindo, mas na imagem de Paris que tivemos no início do filme. Todo o barulho acontecendo na rua se combina com a sua ideia da agitação de Paris. Para deixar a correspondência ainda mais explícita, Kirsanoff sobrepõe a imagem do corpo nu de uma mulher se contorcendo. Nesta imagem condensada de sobreposições, ele tentou entrar na mente da irmã que estamos vendo. Aqui chegamos no limite da separação entre cinema narrativo e abstrato. Em geral, o filme narrativo teve a tendência de definir claramente o limite entre o subjetivo e o verdadeiro. Aqui vemos esse limite nos termos mais explícitos no dissolver da imagem, em uma fusão. Outras vezes vemos esse limite em filmes tradicionais em termos de flashback. Nos anos 1960, cada vez mais filmes vieram a ser feitos nos quais havia uma confusão deliberada entre o verdadeiro e o subjetivo. Um dos mais importantes, em termos de distribuição pelo menos, foi O ano passado em Marienbad (L’année dernière à Marienbad, Alain Resnais, 1961), mas ainda se deve fazer uma distinção entre este e a vanguarda radical, conforme eu a apresentei na semana passada: filmes de vanguarda como os de Brakhage e Anger acontecem na imaginação. Há um limite que é superado: não é mais uma questão de “isso é real ou subjetivo?”, há uma fusão absoluta que acontece nesses filmes, e o âmbito é claramente o da imaginação, o âmbito referido e evocado em toda a poesia romântica. O filme de Kirsanoff é literariamente narrativo ao mesmo tempo em que prefigura uma tradição cinematográfica onde o subjetivo e objetivo estarão cada vez mais intrincados. Acho que uma distinção básica deve ser feita entre uma ideia de confusão entre o subjetivo e objetivo e um cinema onde essa confusão não é mais relevante. —Trecho de filme — Isso é tudo do filme que eu vou mostrar. Neste último trecho vimos muitas coisas interessantes. Ela deixa a casa do amante, o dia chegou e ela está nas ruas. Logo presumimos que, quando a vemos na rua, ela está voltando do encontro com o amante. Ela olha para o rio. Talvez esteja contemplando o suicídio. De repente temos um flashback de natureza muito interessante. Retornamos ao tempo em que ela era criança, talvez logo antes de descobrir sobre a morte dos pais. Ela está com a mesma roupa, está agindo do mesmo modo. Há muita ambiguidade nisso, mas é impossível olhar para esse flashback sem imediatamente associar sua imagem à única outra vez em que o vimos, isto é, um momento que era ao mesmo tempo inocente e cheio de horror. Usando essa imagem em particular, Kirsanoff consegue fazer duas coisas ao mesmo tempo. Fica ainda mais pungente quando, no seu sentimento de isolação, ela começa a descer os degraus e pensa em se matar. Ela volta, sobe as escadas; a imagem dissolve, nós a vemos seguindo pela rua. Essa fusão é ambígua; não sabemos imediatamente se representa uma elipse de tempo ou não. Depois vemos que ela está esperando pelo amante, percebemos isso através das marcações na parede. Algo de muito curioso aconteceu aqui. Ou assistimos a dois momentos diferentes no tempo, ou temos que voltar no filme e repensar, considerar a possibilidade de que quando ela deixou a casa do amante aquela sequência terminou, e quando a vemos no rio ela já sabe, ou suspeita, da infidelidade dele, que ela está pensando em se matar, e de que isso fez parte da sua perambulação naquelas ruas. A imagem cinematográfica nos obriga a reconsiderar o que já vimos, a voltar e revisar e mudar o significado do que vimos. Há uma situação formal muito bonita com as imagens das ruas desertas. Nessas ruas vazias, estreitas, vemos a garota andando por uma das ruas, esperando; e vemos outra rua com a irmã dela esperando. Vemos uma rua vazia na qual surge um homem, saindo de um bar; ele vem numa direção, vira-se e segue na direção oposta. Há uma fusão. Vemos a primeira garota esperando novamente. Então, numa imagem muito bonita, vemos o homem descer por uma rua, chegar em outra, interpelar alguém, e ainda não sabemos qual das garotas que é, e então entrar de volta no plano junto com a segunda irmã. Dessa forma, Kirsanoff usou uma ambiguidade especificamente geométrica, um deslocamento no espaço, para nos revelar a natureza especialmente complexa do envolvimento do jovem com as duas garotas. Esse nível de figuração continua pelo resto do filme, que é duas vezes mais longo do que o que vimos. Na segunda metade de Ménilmontant os elementos da primeira parte se repetem de forma assimétrica. Por meio de uma elipse, descobrimos que a irmã traída foi engravidada pelo jovem quando a vemos sair da maternidade com um bebê. Novamente ela vai ao rio, contemplando o suicídio e o infanticídio, mas o choro do bebê a afasta dessa opção. Um segundo devaneio sobre seu passado é visto quando ela se senta num banco de parque faminta, suja e com frio. Em uma rápida montagem de imagens, nós vemos não a garota quando criança, mas uma pia com água correndo, uma grande mesa preparada para um banquete, e mais significativamente a lareira acesa que vimos pela primeira vez logo após o assassinato. Surgem mais duas sequências de imagens em movimento das ruas de Paris. Na primeira, vemos carros andando na chuva e pessoas apressadas. O clima muda de euforia para tristeza ameaçadora, agora que Paris se tornou o lugar em que a garota não tem casa para si e para seu bebê. A segunda montagem sobrepõe varias imagens noturnas de cafés, clubes e bordéis, uma contrapartida irônica ao devaneio ciumento da outra irmã que esperou por ela na noite do seu primeiro encontro. Essa montagem termina com a imagem de uma prostituta. As irmãs se encontram e fazem as pazes; a mãe e o bebê entram na hospedaria do bordel para passarem a noite. A inversão final da primeira parte do filme aparece quando o jovem testemunha por acaso o encontro entre as duas irmãs que ele seduziu. Enquanto ele as observa perplexo, uma prostituta e um homem desconhecido o atacam e o matam com movimentos onde a violência permanece fora de quadro (mas sem montagem acelerada) reminiscente da abertura do filme. A última sinédoque, mãos fazendo buquês, sugere que as irmãs retornaram à fábrica. Mas ao invés de ocupar a noite toda em torno deste filme, eu gostaria de estabelecê-lo simplesmente como nossa norma para uma narrativa inteligente e consciente, e começar, por reflexo, a considerar o seu oposto. Antes acrescentarei que essa norma tem uma tradição específica, essencialmente francesa. Parece-me que o grande cinema comercial ou patrocinado no mundo vem dessa tradição. Refiro-me especificamente aos filmes de Robert Bresson e Marcel Hanoun, e tangencialmente à maior parte dessa figuração nos filmes de Alain Resnais. Há uma tradição dominante de radicalismo na Europa hoje que lida com a reestruturação do mundo como uma coisa consecutiva, com uma atualização dos pressupostos básicos da narrativa que Gertrude Stein definiu como europeia. Por outro lado, temos a tradição americana. Não existe coisa mais distante da narrativa e de um cinema que depende da continuidade do que o cinema que é feito com um fotograma por vez. A maior parte do cinema feito desse modo é gráfico, e tende a ser chamado de cinema animado. Eu acho que, numa afirmação polêmica, devo me posicionar contra a animação como gênero: ela definitivamente não é um gênero, é uma técnica. Há o predomínio, especialmente entre usuários conservadores do método quadro-a-quadro, de um subgênero chamado desenho animado, que vou descartar desde agora por ser totalmente irrelevante para nossas preocupações. Existem basicamente dois polos da realização cinematográfica. Um força nossa atenção para cada quadro individualmente e o outro nos obriga a considerar a continuidade. Essa não é uma distinção absoluta: os polos convergem e se fundem como os dois pêndulos que descrevi antes. Na minha última aula, discuti sobre o filme de transe, o filme mitopoético e as origens, nos anos 1940 e 1950 nos Estados Unidos, de um cinema romântico. Ao mesmo tempo, nos anos 1940, surgiu um cinema gráfico muito importante. Uma de suas primeiras manifestações foram os “exercícios” de John e James Whitney feitos ao longo dessa década: basicamente filmes coloridos com formas geométricas se movendo conforme a música. Esses filmes dos Whitneys foram antecipados em grande parte pela realização de Hans Richter, que fez Rhythmus 21 em 1921. Eles continham a movimentação de formas planas em volteios ilusórios, ou seja, a representação gráfica da tridimensionalidade com uma forma plana que girava sobre o seu próprio eixo. No filme de Richter vemos um cinema radicalmente novo para 1921. Uma tela preta divide-se no meio e se abre dando lugar a uma tela branca; uma série de permutações, passagens e trocas, onde as telas preta e branca se alternam, dá lugar a formas geométricas e, dessa dialética entre preto e branco, começam a surgir quadrados e linhas. O filme finalmente se molda como uma composição preta e branca reminiscente de uma pintura de Mondrian. É uma construção no tempo, baseada em ritmos musicais, que evoca o estilo pictórico de Mondrian mas se expande para além dos elementos absolutos das telas preta e branca. Um filme igualmente significativo, feito pouco tempo depois por um colaborador de Richter, também já apontava para o futuro. Em Symphonie diagonale (Viking Eggeling, 1924) um eixo ilusório é traçado no meio da tela. Figuras mais ou menos cônicas aparecem posicionadas diagonalmente, e as diagonais se movem do canto esquerdo superior para o canto direito inferior, e do canto direito superior para o canto esquerdo inferior. Ele não faz a tela inteira piscar e se transformar como Richter fez, mas o seu cinema axial estabelece novas direções e novos limites na tela. Nos dois filmes, por meio da animação, cria-se uma sensação de profundidade conforme as figuras diagonais, ou os quadrados, recuam para dentro da tela ou saem dela. Isso é feito de maneira muito simples: ou deixando a imagem um pouco menor em cada quadro, ou um pouco maior, criando o potencial de sensação de profundidade na tela. Eggeling utiliza as trocas de eixo, uma série de variações na construção básica da imagem, inversões – isto é, o que ele faz no lado esquerdo ele replica no lado direito –, e ele utiliza a repetição absoluta: uma sequência inteira será repetida ou aparecerá novamente em negativo. Da tradição de Eggeling surgiu o primeiro cinema de Harry Smith. Era um cinema pintado à mão, com formas circulares e quadradas orientadas de maneira dialética, movendo-se para dentro e fora da tela. Vemos uma variação de quadrados e círculos e de movimentos para dentro e para fora, e há uma sensação de inversão, repetição e estrutura musical que evoca Symphonie diagonale, do mesmo jeito que os movimentos mais planos dos irmãos Whitney evocavam Rhythmus 21. Um terceiro filme crucial do mesmo período é Cinema anêmico (Anémic cinéma, Marcel Duchamp, 1926), que teve sua influência na América vinte anos depois, no qual vemos espirais girando e criando a ilusão de estarem descendo em direção ao centro ou ascendendo para fora da tela, intercaladas com trava-línguas escritos em forma espiral. Essa forma cônica foi utilizada por um tipo muito diferente de cinema, que não era dadaísta na intenção, mas homenageava o pensamento indiano, o Oriente, um tipo de misticismo. Desta forma duchampiana vieram os primeiros filmes de Jordan Belson e os últimos filmes de James Whitney. As espirais se tornam mandalas, rodas que giram com outras formas circulares girando dentro delas. Conforme os princípios que descrevi na minha aula anterior, foi a utilização de uma forma pregressa, mas transformando a estética dessa forma em algo completamente novo. Revendo cerca de cinquenta ou sessenta filmes não-objetivos na semana passada, eu me perguntava: quem são os grandes coloristas do cinema de vanguarda? Os filmes mais antigos que estou descrevendo (Richter, Eggeling, Duchamp) eram em preto e branco, os seguintes eram todos coloridos. E então percebi que não havia um único filme na tradição da vanguarda americana que dependesse primariamente da cor para a sua forma. Não havia nesse cinema um filme equivalente à maior parte da pintura contemporânea, como a de Ellsworth Kelly, Kenneth Noland ou Helen Frankenthaler. Isso era muito estranho. Não sei de uma motivação clara para isso, mas talvez possa adivinhar. As pessoas que se destacaram como os maiores coloristas quando analisei esse campo foram Harry Smith, com o seu trabalho inicial, e Jordan Belson, em todo o seu trabalho. Mas me parecia que, enquanto as figuras geométricas se movimentassem ao longo do plano vertical através da animação, enquanto elas realmente parecessem retroceder para o fundo e avançar para frente, muito da pesquisa moderna sobre cor estava invalidada. Quando a pintura admitiu a sua superfície plana (começando no mínimo com Mondrian, mas é preciso considerar ainda antes, e culminando em pesquisadores como Hans Hofmann e Josef Albers), uma espécie de vibração foi estabelecida entre uma cor plana e outra. A busca radical por relações de cor veio dessa ideia de vibração. O cinema construiu em cima disso o potencial para fazer essas formas e figuras se moverem para dentro e para fora. Esse uso inicial da cor como mecanismo vibratório de repente se torna redundante no cinema abstrato. Além disso, o material da película não reproduzia as cores da maneira mais satisfatória. A ênfase na cor como motivo principal para juntar duas imagens se tornou muito mais importante entre cineastas e não-cineastas que estão utilizando o vídeo como ferramenta. Acho que de alguma maneira vamos descobrir uma visão do campo da cor surgida do vídeo que terá uma ilusão muito mais rasa do que o cinema. Embora Michael Snow e Stan Brakhage, por exemplo, empreguem um controle preciso da cor nos seus filmes, há outros fatores que predominam na sua construção. Bruce Baillie, o único cineasta a estabelecer uma obra convincente dentro do perímetro do vocabulário visual de Brakhage, trouxe a cor mais em evidência do que seu mestre. Uma das qualidades do estilo de Baillie é uma sensualidade da cor que ultrapassa a de Brakhage, talvez porque outros aspectos do trabalho de Brakhage sejam diminuídos no de Baillie. Ele começa a fazer um cinema onde a cor adquire uma força primordial, principalmente conforme seus filmes ficam cada vez mais planos, através da sobreposição. Paul Sharits é o único cineasta que de certa forma tentou embasar um filme unicamente na cor. Ray Gun Virus (1966) é feito totalmente com diferentes cores sucedendo umas às outras rapidamente, mas a primeira impressão que esse filme passa é estrutural, de um flicker film em tons pastéis. A primeira impressão não vem da saturação das cores ou de vibrações que surgem entre as cores, mas sim do fato de ser um flicker film colorido, ou que usa a cor na sua oscilação. Essas são distinções sutis que estou apresentando nesta palestra em específico, a mais desorganizada de todas, porque não tenho outro lugar para inseri-las. Vamos dar uma olhada em outro filme europeu chamado Schwechater (1957-1958), feito por Peter Kubelka; tem um minuto de duração; vamos vê-lo duas vezes, as duas estão no mesmo rolo. — O filme é mostrado — A forma deste filme é imagética, ou seja, é um filme sobre um único gesto – nesse caso, o servir e beber cerveja – visto do ponto de vista analítico de uma série de tomadas diferentes, momentos diferentes agrupados. De maneira geral, a forma deste filme segue aquela estabelecida por Eggeling: um tema, o seu inverso, suas variações, suas repetições. Vemos um conjunto básico de imagens dentro de um padrão métrico, criando uma variação rítmica uniforme. Visualmente, vemos inversões: às vezes em negativo, às vezes em positivo; e o aumento da presença do vermelho é sincronizado com o som. Primeiramente a imagem vermelha é muito breve; no segundo agrupamento de imagens ela é um pouco mais longa; no terceiro, mais longa ainda, e assim por diante até o fim do filme. O som acontece somente sobre a imagem vermelha para dar ao mesmo tempo a sensação de um ciclo que se repete e de um filme com uma forma espiral ascendente. É um filme muito simples que, mais do que qualquer outro que conheço, sustenta a ideia do cinema como um trabalho sobre o fotograma individual, ou como uma continuidade de movimento construída na alternância entre um ou dois fotogramas. Kubelka é um caso interessante nesse sentido: como um austríaco que encontrou seu público nos Estados Unidos, que trabalhou na América e que agora faz filmes tendo em mente especificamente a situação americana, ele consegue fazer a ponte entre as tradições europeia e americana que mostrei na aula anterior. Robert Breer é outra figura interessante nesse contexto, o inverso de Kubelka: um americano que começou fazendo filmes na França, viveu lá por muito tempo e então retornou aos Estados Unidos. Ele também faz a ponte entre o cinema europeu e o americano, mas de outra direção. Os filmes de Breer seguem uma quarta tradição europeia, a de Léger. Os quatro textos centrais para o cinema abstrato são Rhythmus 21 de Hans Richter, Symphonie diagonale de Viking Eggeling, Cinema anêmico de Marcel Duchamp e Ballet mécanique (1923-1924), de Fernand Léger. Esses quatro filmes são os quatro pilares ou direções sobre os quais se construiu a maior parte do que tem se chamado “o puro” no cinema (ou o abstrato, ou o gráfico), embora esses trabalhos estejam sempre sendo controvertidos ou contrariados por trabalhos novos. Um dos pontos fortes do cinema de Breer tem sido uma tensão no movimento de um filme para o seguinte. Em um, ele usaria todas as técnicas disponíveis e então, no próximo, se restringiria a trabalhar com apenas uma. Ele criou uma dialética em miniatura em toda a sua filmografia, sobre todo o problema da abstração e a fusão desta com os princípios narrativos no seu trabalho. Seria possível analisar oito ou nove filmes de Breer como um microcosmo do diálogo entre os meros indícios da narração e os extremos da não-objetividade. Em Glens Falls Sequence (1937), o maior trabalho do grande predecessor de Breer, Douglass Crockwell, vemos na tela um teatro muito raso: o desenho de um quarto, ou um espaço, e no fundo do quarto uma pequena toca de rato. As imagens acontecem dentro desse teatro virtual, e às vezes surgem repentinamente no centro da tela, ou aparecem e desaparecem por um pequeno buraco que dá a impressão da existência de um espaço atrás da tela. As imagens evocam as paisagens de Yves Tanguy, uma paisagem surrealista de formas humanoides não-objetivas. Ele mistura argila, animação de recortes e cenas de fundo realistas com líquidos em movimento, criando uma mescla constante de formas gráficas que nos deixa permanentemente cientes, em Glens Falls Sequence, da variação entre cada quadro e da colisão de estilos e técnicas possível na animação. Sendo usada por realizadores preocupados com questões estéticas, a própria animação se tornou uma das formas de definir o uso do fotograma no cinema. Uma das maneiras de se definir animação seria chamá-la de um cinema feito de trabalhos planos, ou seja, feito de imagens estáticas, quer você as faça durar um fotograma, quer sejam dois ou mais. Michael Snow testou esse conceito em um filme excepcionalmente interessante chamado One Second in Montreal (1969), apresentando uma série de fotografias de cenas de neve em Montreal e mantendo cada uma por muito tempo; conforme o filme chega à metade, o tempo é cada vez mais longo. São macrorritmos, que excedem nossa expectativa normal de duração. Breer merece crédito por ser uma das figuras mais importantes que fez da velocidade uma parte da percepção estética do cinema. Ele fez isso enquanto trabalhava em Paris. Ele também desenvolveu o que pode se chamar um cinema do microrritmo, no qual pequenas variações de ritmo acontecem dentro de um segundo. O filme de Kubelka é métrico: ele reitera as mesmas variações de ritmo o tempo todo até que nos tornamos conscientes da unidade da experiência rítmica. A estrutura microrrítmica e a evolução dos ritmos nos filmes de Breer fazem pensar em Anton Webern ou Olivier Messiaen. Ele lida com a diferença entre a tela plana e a profundidade, e uma das maneiras pelas quais ele achata as imagens é através da velocidade. Em Recreation (1956), vemos imagens se movendo muito rapidamente e então o filme para por dez ou vinte quadros, enquanto um chumaço de papel se desdobra; um rato mecânico atravessa uma tábua; e então percebemos que estas são imagens que estávamos vendo alguns segundos atrás de maneira tão rápida que pareciam planas. Agora, de repente, elas se expandem em profundidade, conforme o filme desacelera. Ele mistura as formas combinando papel com objetos e coisas que se movem; ele arranha o filme e pinta sobre ele. E uma das conquistas de Breer, que acredito que o aproxima mais de Léger do que de Richter e Eggeling, é que a sua tela não é centralizada. Em Richter, Harry Smith, Eggeling, os irmãos Whitney, o centro da tela orienta todas as variações rítmicas. Em Léger há movimento que atravessa a tela, uma composição excêntrica. Tem-se a noção de todo o espaço em volta da tela, ao invés da de um quadro rígido que contém todos os movimentos, como em Symphonie diagonale. Breer utiliza a amplitude da área em torno, além de movimentos para dentro da tela e atravessando-a. Em Jamestown Baloos (1957), ele começa a incluir fotografias e misturá-las com animação. Então em Fist Fight (1964), um de seus filmes mais recentes, vemos uma mistura de meios gráficos: desenhos misturados com fotografias animadas, animação de recortes e amarras. De repente, a câmera é erguida da mesa de animação e vemos os pés do realizador, presumivelmente, enquanto ele caminha para fora da sala de animação e aponta a câmera para o sol. É um momento dramático, um grito das tensões envolvidas na realização de filmes quadro-a-quadro, e o movimento para fora é uma metáfora para a libertação da dialética entre abstração e narrativa. Assim o filme entra na história da maneira mais inesperada: a animação se torna a história do realizador fazendo o seu filme, uma espécie de autorretrato no sentido mais oblíquo possível. Mas essa sequência só se torna narrativa dentro do contexto da abstração. Em um filme convencional, o movimento súbito da câmera para a rua seria uma abstração. Depois disso, ele fez 66 (1966), retornando à imagem plana, com imagens estáticas mantidas por muito tempo, que de repente são interrompidas por outras imagens, e então uma cintilância de interrupção que depois retorna para as imagens estáticas. Eu mencionei antes que Jordan Belson foi um dos mais importantes coloristas do cinema de vanguarda. Vamos assistir a um dos seus filmes mais recentes, a meu ver o seu maior trabalho até hoje. — Exibição de Samadhi — Belson conecta o filme gráfico com a mitopoética que descrevi na semana passada. Eu gostaria de retraçar um pouco a evolução do cinema de Belson: sua fase madura começa com um filme chamado Allures (1961), em que obviamente há uma dívida muito mais óbvia a Duchamp. Vemos uma imagem espiral na tela que se transforma numa imagem parecida com uma galáxia; a galáxia se divide de uma maneira que lembra a imagem de um átomo com um campo de elétrons no seu entorno; esse campo de elétrons se transforma no olho humano; e o olho se move de um jeito que sugere um planeta eclipsado. Por essa cadeia de metáforas, Belson vai de um cinema puramente gráfico para outro que evoca certas imagens cósmicas primitivas. Em Phenomena (1965-1968), ele inicia com imagens concretas e segue por uma hierarquia abstrativa, partindo do muito concreto em direção a uma série de imagens cada vez mais puras. Samadhi (1966-1967) é de certa forma o seu trabalho mais sofisticado e bem-sucedido. Gostaria de ler para vocês algumas das coisas que ele disse sobre a sua feitura:
Aqui temos a fantástica aspiração de criar um retrato da alma em imagens cinematográficas, resultado de um longo período de meditação iogue praticada pelo cineasta. Não estou aqui para comentar se essa é uma representação precisa da alma humana, mas há uma certa intensidade que vem de uma qualidade abstrata altamente ilusória dessas imagens. Essas imagens não têm a ilusão cosmológica, fisiológica e microscópica implícita em Allures; não vemos um olho especificamente, ou não tão especificamente quanto no trabalho anterior; não vemos um planeta, mas uma vez que Belson havia estabelecido um nexo entre as formas, ele pôde invocar essas coisas sem sair do plano abstrato. O filme é, primeiramente, cêntrico, isto é, tudo irradia do centro, mas a quantidade de movimentos virtuais para dentro e fora da tela é mínima para um filme gráfico, e a maior parte da sua sensação de profundidade vem da alternância e mudanças de cor dentro da tela. Em Samadhi chegamos ao momento do cinema gráfico em que nossa busca e nosso estudo sobre a abstração convergem no tema básico da última palestra: a busca romântica pelo eu. Nessas alturas do cinema, nos anos 1960, algo importante se desenvolveu dentro do filme gráfico: ele amadureceu na América e se fundiu com a tradição de vanguarda cinematográfica dominante. Foi como se, por um lado, houvesse uma escola mais gráfica de cineastas que se inclinavam para a animação, no momento em que os filmes mitológicos pareciam esgotados. E nesse momento houve uma confusão de interesses. Desse período surgiu um novo cinema muito importante e muito vital, que descrevi em um artigo como cinema estrutural. Para esclarecer esse ponto, gostaria de comparar dois trabalhos de um mesmo realizador, como fiz na semana passada. Um cineasta comprometido com a pesquisa sobre o significado da abstração, que como pintor foi aluno de Hans Hofmann, que iniciou no cinema muito jovem, que vem fazendo filmes há muito tempo e que se tornou nos últimos anos um dos realizadores mais importantes da vanguarda americana: Ken Jacobs. Em 1963, Jacobs editou Blonde Cobra. Durante os anos 1950 ele havia feito filmes com Jack Smith e Bob Fleischner, trabalhando em um filme longo e ainda não terminado chamado Star Spangled to Death[1], um monumento aos anos 1950, os anos de Eisenhower e Nixon. Nessa época, Bob Fleischner começou um filme com Jack Smith e nunca o terminou. Alguns anos depois, ele entregou o material para Jacobs, que as passou para uma série de fitas junto com Smith. Ele pegou essa pequena quantidade de material e várias fitas e começou a construir um trabalho abstrato com isso. A coisa mais interessante sobre o filme é sua agressividade com relação à plateia. O filme começa como uma fantasia: vemos Jack Smith cantando uma música, ele encena uma espécie de fantasia vampiresca e, de repente, a tela fica preta e ele recita uma história muito longa sobre a imagem preta. É uma fantasia erótica sobre um garoto que queima o pênis de outro garoto. Quando Smith chega no clímax da história há uma transposição súbita, histérica, da terceira pessoa para a primeira. Quando a imagem do filme retorna, vemos um ou dois minutos de fantasia visual, uma homenagem aos filmes de Maria Montez que se tornariam famosos, no estilo de Flaming Creatures (1962-1963) alguns anos depois. Então, repentinamente, a tela fica preta de novo com uma história mais comprida ainda sobre uma Madre Superiora e uma noviça e suas práticas sexuais no convento. A imagem volta para mostrar uma espécie de diário das atividades de Smith; ouvimos breves citações dele, num determinado momento crucial, a imagem escurece enquanto ele diz que “a vida está tomada por criaturas inocentes”, e aparecem os créditos para Charles Baudelaire; e então de repente a imagem volta novamente. Jacobs havia montado um sistema no qual o filme se dividiria entre essas histórias. Embora as histórias tenham uma função narrativa mais direta do que o próprio filme, elas operam na totalidade deste como interlúdios agressivos, de maneira que o espectador sente, toda vez que a tela fica preta, que há um período indeterminado de tempo que ele teria que suportar antes que o filme retornasse, ouvindo, privado da visualidade. Esse arranjo possui força formal. Nessa época, ele falou de seu filme anterior, Star Spangled to Death, que ele estava trabalhando para ser um filme que se destruiria constantemente, que daria ao espectador a sensação da morte na tela; conforme o seu contexto narrativo se estabelecesse mais claramente, o filme entraria em colapso, ou então iniciaria em outra direção; o contexto narrativo evaporaria na sua frente. Esse diálogo entre a narração e o seu colapso era a base da forma de Jacobs. Em 1969, Jacobs fez um filme notável chamado Tom, Tom, the Piper’s Son. É um dos pilares do que chamei de filme estrutural. Definindo de maneira bastante grosseira, os filmes estruturais são aqueles cuja forma geral é a sua qualidade mais aparente. Seja enquanto se assiste ao filme, ou logo após este ter terminado, percebe-se claramente a estrutura do filme; seja um longo plano fixo, um plano em zoom, um flicker, um filme revelado em loop (a repetição de um único plano ou sequência de planos continuamente), ou um filme que cria seu efeito através da filmagem da tela, em qualquer caso, fica-se com a impressão imediata da forma geral do filme; não é preciso recontar os acontecimentos do filme para descrever sua forma. Ele não possui nenhuma movimentação barroca de enredo, mas nos impressiona primeira e principalmente com sua forma geral e faz isso equiparando a forma a uma técnica específica (um frame estático, um movimento de câmera em especial, o flicker, a revelação em loop, ou a filmagem da tela). Tom, Tom, the Piper’s Son começa com um filme de 1905, Tom, Tom, the Piper’s Son (Frank Marion e Wallace McCutcheon), um filme anônimo que conta a história da música infantil sobre um garoto que rouba um porco. Vemos o filme de 1905 e depois, por mais de uma hora, vemos uma refilmagem dele diretamente da tela com diversas táticas: câmera lenta, movimento reverso, fotogramas congelados, close-ups, movimentos de close-ups para planos abertos e de planos abertos para close-ups; às vezes ele filma a tela pela lateral, de modo que a imagem fica trapezoidal ao invés de frontal; um gesto particularmente bonito de um bobo da corte dando um salto mortal é visto de frente para trás e de trás para frente, o salto reiterado a cada vez. Também vemos o movimento desacelerado do obturador da câmera, e então, de repente, o filme se interrompe. Surge um teatro de sombras em cores e depois o filme retorna novamente. A desintegração é típica dos filmes de Jacobs. As pessoas estão pulando de cima de um palheiro sobre um monte de feno, flutuando em câmera lenta; o que vem depois está concentrado em um detalhe em câmera lenta, um movimento de braço em close-up de alguém que sobe uma escada. A tela inteira se torna granulada e pontilhista à maneira de Georges Seurat. O movimento varia sutilmente. O filme quase começa a morrer, a se desintegrar; ele desacelerou de tal maneira que parece que está a ponto de se desfazer; e nesse momento uma mão arranca a tela e somos repentinamente confrontados com o projetor de luz atrás dela, de frente para nós – a experiência cinematográfica crua, a luz tremulante. Jacobs mostrou a lenta decadência do filme narrativo, passando da total dissolução para o diálogo existente entre narração e não-narração. O filme é uma aula de história da arte, e a encarnação de uma teoria da abstração. Algo muito interessante acontece em um novo filme de Bruce Baillie chamado Quick Billy (1967-1970). É o exato oposto do filme de Jacobs. O filme é basicamente abstrato; usa cores puras que lembram tingimento, com muitas sobreposições, sem continuidade narrativa. Esse belo e sedutor fluxo de imagens é rompido, não pelo projetor direto – que não seria nem de longe tão contrastante nesse contexto –, mas pela narrativa. Repentinamente, ele adentra um contexto narrativo. Baillie introduz um western recriado, baseado nos mesmos temas que o filme abstrato. Como se não estivesse satisfeito em somente ter rompido a forma, ele acrescenta, de maneira solta, quatro rolos extras de material, que ocupam um espaço visual entre o alto nível de abstração do início do filme e a conclusão narrativa. Esses quatro rolos de três minutos devem ser mostrados com interrupções entre eles, nas quais as luzes da sala devem ser acesas. Temos, nesse caso de dois filmes realizados próximos um do outro, mas sem influência entre si, maneiras opostas de entrelaçamento e ruptura na forma narrativa. O primeiro pega uma forma essencialmente narrativa e a dissolve, despedaça, estende-a para torná-la mais perceptível; o outro toma uma forma essencialmente abstrata e insere dentro dela a narrativa, para depois destruí-la com a inserção dos quatro rolos. Estamos agora fechando um ciclo nesta palestra: saindo da narrativa, passando pela consideração de filmes mais puramente abstratos, quadro a quadro, e de volta para uma reconsideração sobre a narrativa que une os dois polos. Ao longo destas palestras, procurei me restringir a citações das mesmas fontes para que uma unidade teórica possa acontecer e uma aula possa fazer referência à outra. Alguns de vocês devem se lembrar do texto de Paul de Man da semana passada. Há uma afirmação parecida que ele faz no mesmo ensaio que é bastante relevante para as nossas preocupações hoje. Recapitulando para quem não estava aqui na semana passada, eu apontei duas ou três questões: a primeira, que a evolução formal dentro de uma arte radical não precisa ser um rompimento absoluto com o passado, mas uma recolocação do material do passado em novos termos formais; a segunda, que toda a evolução do filme de vanguarda americano, do filme de transe freudiano, passando pelo filme mitopoético jungiano, o filme estrutural meditativo, e filmes recentes participativos tais como Bleu Shut (Robert Nelson, 1971), Zorns Lemma (Hollis Frampton, 1970) e os filmes de Landow, que imitam os processos lógicos da consciência, podem ser vistos como uma tentativa de reprodução da mente humana em termos cinematográficos; a terceira, que toda essa rede de formas e aspirações restabelece ou reafirma de maneira bastante precisa a continuidade do romantismo literário. Em um dos textos que usei na semana passada, citei Paul de Man. O que ele diz, relevante à nossa discussão aqui, é:
E ele se refere ao longo do texto a Mallarmé, cujo posicionamento crucial nós discutimos na aula passada. Uma pergunta muito interessante foi feita na semana passada, uma pergunta muito simples. Depois que mostrei o filme de George Landow, alguém comentou sobre como aqueles filmes que chamei de estruturais são difíceis de assistir; não são o tipo de filme a que ela gostava de assistir, e ela elaborou a pergunta mais ou menos como: o cineasta quer dizer algo para o público ou não? De Man descreve a aspiração romântica de aproximar o trabalho o máximo possível da condição de um objeto. Não é de forma alguma a intenção de um cineasta fazer um trabalho que tenha uma função dramática específica para um membro da plateia, mas criar um trabalho que aspire não a fazer referência, mas a ser; que tenta desafiar a prioridade ontológica do objeto. E isso é tão verdadeiro para o cinema quanto é para a linguagem, porque, como na linguagem, o cinema tem um comprometimento paradoxal com a referência, a algo fora de si próprio, que é parte da essência da fotografia, e ao mesmo tempo tem um comprometimento com uma autoconsciência específica de ser uma ilusão de 24 imagens fixas projetadas por segundo. Vamos ver agora o final de um grande filme chamado Wavelength. Vou descrever muito breve e grosseiramente a totalidade do filme. Ele começa com um plano aberto de uma galeria. Dois homens levam uma estante de livros para dentro, e há duas garotas ali; todos saem do local. O local agora está vazio. Começa-se a ouvir um som senoidal conforme a imagem lentamente avança em direção à parede de fundo. Vemos cores variadas, flashes, flares, ajustes na câmera. As duas garotas aparecem novamente; elas não falam uma com a outra; elas ligam um rádio; a música dos Beatles Strawberry Fields Forever está tocando, frases como “nada é real” podem ser ouvidas. As garotas saem e o filme continua a explorar o local avançando para frente, a imagem às vezes passando para negativo, com mudanças de cor e textura. Ouvimos algo quebrando, o estilhaçar de um vidro; uma porta sendo arrombada; o som de passos subindo as escadas; alguém entra na imagem, que agora está na metade do caminho do local, e desaba no chão. A imagem rapidamente passa por ele e retorna o som senoidal. De repente fica noite lá fora, e o filme continua, e volta a ser dia e nós vamos ver exatamente o momento enquanto ainda é dia, antes de voltar a ser noite, e assistiremos ao filme até o final. — Exibição do filme — A tradição de Wavelength remonta de um lado à aspiração muito antiga da narrativa e, de outro, à aspiração essencial do filme abstrato. Podemos retraçá-la a uma carta famosa que Gustave Flaubert escreveu em que ele diz que gostaria de escrever um livro sobre absolutamente nada, “um livro que não teria quase nenhum assunto, ou pelo menos que o assunto fosse quase invisível”, conforme ele disse. Flaubert nunca escreveu esse livro, talvez nem sequer tenha compreendido o alcance visionário dessa aspiração inicial, mas Mallarmé o compreendeu. Uma tradição em literatura surgiu do estreitamento, do afunilamento, da dissecação do princípio narrativo. Vemo-lo plenamente desenvolvido em Gertrude Stein, na sua separação entre uma narrativa de eventos consecutivos e uma narrativa do ser, do existir, ou do vazio. Falamos de elipse como uma maneira de concentrar dois eventos, trazer dois centros próximos um do outro para fazer alguma coisa avançar. Uma elipse deixa algo de fora. Existem elipses de ausência tanto quanto de condensação. Nessas, a parte mais significativa é deixada de fora e nós sentimos sua presença através de uma tremenda ausência. Snow lida com as duas; ele nos dá a noção de um quarto vazio, que nos remete a Whitehead e a um conceito de cinema que é feito quadro a quadro conscientemente: um acontecimento sendo repetido e reiterado, além de um padrão existindo ao longo do tempo. Esses tremeliques, as mudanças de textura, as alterações de luz, são afirmações de uma flutuação que é essencial para a atual visão filosófica da realidade. A narrativa de um filme é cumulativa. Inicialmente os acontecimentos são abstratos da mesma maneira que boa parte da dança contemporânea é abstrata: são atividades, o carregar uma estante de livros, o ouvir um rádio, o homem que cai (não sabemos se ele está morto, não sabemos nada sobre ele). A sequência toda se torna uma história quando a garota vai até o telefone; e essa história se rompe quando vemos o fantasma da garota, quando temos a sensação do local não como um lugar onde algo acontece, mas como uma realidade acontecendo, como um evento complexo que tem uma memória própria. A polaridade domina ao longo desse filme. Ele se move entre a profundidade extrema e o achatamento completo, da polaridade entre o único fotograma cintilante e a longa continuidade mantida ao longo de 40 minutos. Nós percebemos em Ménilmontant como o sol se punha refletido no lago, ou como a lua surgia e a luz mudava; primeiro era dia, depois se tornou fim de tarde, ou noite, e então voltava a ser dia. Essa sequência em Ménilmontant tem uma função narrativa específica; ela nos narra uma passagem de tempo. O mesmo processo acontece em Wavelength em um plano altamente abstrato. No quarto inicialmente é dia, depois se torna noite, depois dia novamente, e logo antes da garota entrar se torna noite e termina assim. Há premonições do que vai acontecer e memórias do que aconteceu (a imagem fantasma da garota é uma memória do que aconteceu no quarto). A sobreposição das ondas é uma premonição de onde a câmera vai estar dali alguns momentos. A estrutura inteira do filme parece estar fundada na própria natureza da diferença entre a ilusão de profundidade, isto é, a profundidade cinematográfica convencional, e a ilusão da mesa plana, ou seja, o tipo de imagem que se obtém na animação através da projeção das ondas no plano. Por fim, falando em abstração, citamos Whitehead a respeito dos dois polos: uma hierarquia abstrativa que se afasta da atualidade e uma abstração da possibilidade. Enquanto ficamos sentados por 45 minutos assistindo à galeria de Wavelength, ela se torna uma gama de possibilidades, e os eventos que acontecem nela são concretizações de possibilidades. É um filme que, como a maioria dos filmes mostrados hoje, é curiosamente fragmentário; todos eles aspiram à forma de fragmentos, alguns de maneira mais pura do que outros. Para terminar referindo-me novamente ao texto que mencionei da última vez, de Blanchot escrevendo sobre o romantismo; podemos relacionar o filme de Snow à aspiração romântica básica de que venho falando. Blanchot diz:
Proponho que a abstração de que venho falando coincide com a narrativa no filme de Snow e na aspiração do filme estrutural em geral, na criação de uma fábula de sinédoque (da qual o fragmento é um caso especial), ou seja, os dois ao mesmo tempo um trabalho abstrativo e fictício, nos quais as partes abstratas e as partes fictícias se fundem e dialogam entre si. Essa é basicamente a invenção americana: a distinção que Gertrude Stein fez entre a ficção americana e a europeia, entre a narrativa como era antes e a que existe agora, continua a existir no cinema, entre a tradição de Ménilmontant, a tradição radical europeia, e a tradição da vanguarda americana. É uma diferença entre sucessão e pura existência. Finalmente, a mais alta aspiração do artista cinematográfico dentro da dialética entre abstração e narrativa é o Mito do Filme Absoluto, que discutiremos mais detalhadamente na próxima sessão.
Nota:
[1] Ken Jacobs concluiu e lançou o filme no ano de 2004. [N. do E.]
(Film Culture n.º 63-64, 1977, pp. 1-24. Traduzido por Clarice Dantas) |
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