AS SERPENTES E O CADUCEU
Caso se considerasse de maneira bem simplista que, na origem das constantes francesas, existem duas antíteses, Louis Lumière e Georges Méliès, dever-se-ia então imaginá-los como as duas serpentes entrelaçadas sobre um caduceu.
Tal como na vida, há sempre alternância no cinema. Não se saberia possuir a sensação do fantástico, se não houvesse a sensação do realismo...
É possível afirmar, por exemplo, que, no René Clair de História de um chapéu de palha (Un chapeau de paille d’Italie, 1928), Lumière prevalece através da posição da câmera. Mas, ao se invocar a direção, a referência a Méliès seria forçosa.
Deve-se falar de realismo poético? A expressão, afinal, poderia ser aplicada a homens tão diferentes como Clair, Carné, Epstein, Becker, Vigo, Perret, Grémillon, Tati, Feuillade, Delluc. Tenho grande admiração por Renoir – e especialmente por Toni (1934-1935), A noite da encruzilhada (La nuit du carrefour, 1932) ou Madame Bovary (1933-1934). E, além disso, há A regra do jogo (La règle du jeu, 1939), juntamente com A idade do ouro (L’âge d’or, Luis Buñuel, 1930) um dos dois pilares do cinema francês. Hoje, talvez, exista uma tendência exagerada de criar parentesco entre as imagens do cineasta e as telas do pintor, seu pai. Houve exagero ao ver-se sempre um reflexo do impressionismo. Nada disso em Toni, que é sobretudo uma grande obra devido à entonação do diálogo. Sobre Jean Renoir, parece-me mais importante a influência de Zola; o folhetim, o grande movimento sinfônico e até a ópera. É recordar um de seus livros (não seria Uma página de amor?) onde uma mulher, encerrada em seu apartamento, olha, do alto da Colline de Chaillot, Paris viver e palpitar. Na obra de Jean Renoir, surgiram, sem dúvida, homenagens a seu pai, como Nana (1926) e Um dia no campo (Partie de campagne, 1936-1946), mas também um gosto excepcional pelos valores táteis, como dizia Berenson ao falar da pintura. Essa tradição (e aquela de Zola) é reencontrada em muitos outros cineastas franceses. Zecca, Jacques Feyder, Feuillade etc... Este último é o meu deus – um dos meus deuses. Somente o conheci depois de 1944, graças à Cinemateca Francesa, e através de seu Fantômas: à sombra da guilhotina (Fantômas – À l'ombre de la guillotine, 1913). Eu já era um fanático pelo romance, bem próximo de Zola (ao qual procederam Pierre Souvestre e Marcel Allain). Poder-se-iam inscrever na S.A.F., nessa imaginária “Sociedade dos amigos de Fantômas”, que Apollinaire e Max Jacob fundaram antes de 1914.
Mediante uma cena de Fantômas, rodada no estilo “a vida como ela é”, numa praia da Bélgica, Feuillade demonstrou-me como o fantástico era criado mais desenvoltamente num ambiente natural do que num estúdio. É disso também que gosto bastante em Georges Franju.
No cinema, é a surpresa que faz a poesia e nem sempre as tomadas o conseguem. Foi desse modo que a poesia do absurdo, ilustrada por Jean Durand e Jacques Tati, pôde nascer em cenários naturais. Para mim, Fantômas veio inscrever-se na tradição dos romances populares franceses que, em minha infância, enriqueceu filmes, como o O Conde de Monte Cristo (Monte Cristo, Henri Fescourt, 1929) ou O fantasma da torre Eiffel (Le mystère de la tour Eiffel, 1927-1928), com Tramel, a obra-prima de Julien Duvivier, da qual não esqueço nunca mais as perseguições de trem em Marselha ou aquele castelo da Ku Klux Klan na Provença.
É claro que não procuro sistematicamente repetir Feuillade. Se a gente quer fazer intencionalmente, a coisa não funciona. As semelhanças são apenas percebidas ao ver-se as imagens projetadas na tela. Uma pesquisa forçada destrói fatalmente o frescor da impressão. Não se pode pedir aos intérpretes que ergam um piano, enquanto declamam um trecho de tragédia: o esforço físico nos impede de representar. No tocante à direção, acontece a mesma coisa.
Quando se roda um filme, não se deve refletir demais. É preciso permanecer ao máximo no estado de abandono, não pensar conscientemente no estilo. Pode-se, sem dúvida, antes da filmagem, querer atingir este ou aquele objetivo: porém não se deve mais ficar meditando no palco de filmagem. O melhor método de realização seria preparar tudo de antemão a fim de que, durante a filmagem, seja possível estar-se livre para escolher uma solução inteiramente diversa, de deslocar à sua vontade as personagens dentro do cenário, ou de concretizar, em plano geral, aquilo que no roteiro estava previsto para sair em grande plano. Seria necessário, a princípio, que a decisão ocorresse sempre no último segundo, captando todas as soluções que brotam do trabalho em comum. Mas com a condição de não transformar o plano de trabalho, pois parece-me que sonhar com um cinema sem sujeições econômicas seria violar as regras do jogo.
Gosto muito do melodrama e de que o filme seja um espetáculo. Ao convocar pessoas para uma exibição, jamais seria então possível proporcionar-lhes espetáculo exageradamente belo.
– Dever-se-ia, daí, dirigir-nos a restrição do formalismo? – Esta crítica deveria incidir não apenas sobre o filme, mas sobre a própria plateia. Dever-se-ia suprimir as poltronas porque são demasiado macias e obrigar os espectadores a se manterem de pé ou numa posição incômoda. Na querela do formalismo, é Robert Ménégoz que me parece ter lançado a palavra final: “Nada é demasiado belo para se dizer a verdade”.
“Devemos, não repelir, mas, sim, acolher os estrangeiros que venham trazer-nos os seus conhecimentos e o seu talento. Trata-se de uma política que, depois de Leonardo da Vinci e de Picasso, não deu resultados tão maus assim para a arte francesa”, escrevia Renoir, em 1938, num célebre artigo para o Le point. Dentro desse sentido, considero A idade do ouro, do bem espanhol Buñuel, como pedra angular do cinema francês. E considero o expressionismo (que se expandiu, por volta de 1920, nos filmes alemães) longe de estar hoje superado. Nossa arte cinematográfica pode utilizá-lo sempre, caso seja apreendido em seu significado profundo, e não como uma maneira de maquilar os rostos ou de pintar o cenário. Tornei a encontrá-lo recentemente em Viver a vida (Vivre sa vie: Film en douze tableaux, Jean-Luc Godard, 1962), no diálogo entre Anna Karina e Brice Parain. Esse expressionismo foi criado por Jean-Luc Godard, através da composição dos seus planos? ou por meio da montagem? Não sei...
De qualquer modo, o trabalho de direção termina sobre a mesa de montagem, onde se consuma uma fase tão importante como a de preparação e a de filmagem. A montagem não constitui apenas a relação das imagens entre elas, mas de sons e de imagens entre si. Quanto mais evoluir o cinema, melhor saberão as pessoas escutar e ver simultaneamente; quanto mais importância tomem essas relações, mais se esquecerá essa falsa noção de que somente vale a imagem, de que ela se consiste no essencial. No cinema, de fato, o importante reside na relação som-imagem.
Fui muito influenciado por cineastas como Agnès Varda, Henri Colpi, Chris Marker...
Poder-se-ia imaginar um filme onde as imagens seriam perfeitamente abstratas, mas que se tratasse de grande cinema, caso os choques luminosos e as mudanças de planos estivessem relacionados com um texto e uma montagem sonora... Tais preocupações já existiam no tempo da arte muda. Abel Gance impressionou-me bastante pelos seus escritos e pelo seu Napoleão (Napoléon vu par Abel Gance, 1925-1927), ao qual assisti quando ainda era bem criança. Este grande realizador pediu, outrora, uma partitura a Arthur Honegger para seu filme mudo, A roda (La roue, 1919-1923). Não tinha confiança, então, nas imagens isoladas. Em hipótese contrária, teria recorrido à música?
Com Acossado (À bout de souffle, 1959-1960), Jean-Luc Godard criou uma extraordinária montagem elíptica, construindo, primeiro (diz-se), a faixa sonora, e depois, em função dela, a faixa de imagens. Renovou, assim, a montagem, num momento em que se dizia que, havendo a sua técnica atingido um ponto de perfeição, estava impossibilitada de evoluir.
Chris Marker, inversamente, só escreve o texto de seu comentário depois de montar suas imagens. Isso não impede que os seus filmes também não deixassem de existir como obra de arte, caso fossem projetados mudos, porque a sua faixa sonora é ritmo e cadência.
A novidade da linguagem cinematográfica de Orson Welles proveio, a meu ver, por ele ser originariamente homem do rádio. Montou e concebeu Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) como se fosse emissão radiofônica, encontrando as equivalências visuais, mas partindo da base sonora... Em Trágico amanhecer (Le jour se lève, 1939), de Marcel Carné e Jacques Prévert, a faixa sonora seria excelente, mesmo sem as imagens. De forma idêntica, as fitas de Sacha Guitry, desde Romance de um trapaceiro (Le roman d’un tricheur, 1936) até Quadrille (1938).
Seria uma ideia anormal (ou, antes, uma necessidade) fazer o cinema mudo e em preto e branco. O cinema sempre quis ser falado, em cores e em relevo. Já com Méliès, a cor possuía extraordinária força expressiva.
O importante é produzir impactos, associando, num espetáculo, os sons e as imagens. A televisão não sabe proporcionar um espetáculo porque é recebida a domicílio. Impossível concentrar-se, em família, de chinelos. Ao passo que, numa sala de projeção, a gente está noutro lugar, num meio diferente, e tornamo-nos um espectador, parte de um público...
Gosto, em Marcel L’Herbier, de um certo prazer pelo romance popular (evidente em Eldorado, 1921), do seu cuidado em permanecer em contato com o movimento literário e de artes plásticas e de sua definição: “o diretor é o primeiro espectador do filme”.
O público é formado de homens. E cada homem, na vida, não se encontra mais em dois ou três planos sonoros ou visuais, do que somente em um? Ele não se satisfaz em registrar o que vê e ouve numa rua – seleciona determinadas imagens, determinados sons. Se fecha os olhos, se a sua atenção se relaxa, a vida, talvez então, se torne puramente mental; porém, ela não deixa de continuar, ela não existe menos. Não se deveria tentar fazer o mesmo nos filmes?
(Le point n.º 59, “Constantes du cinéma français”, 1962. Em A ideia do cinema, por José Lino Grünewald [org.]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, pp. 117-121) |
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