TRÊS FAROESTES DE CHARLES MARQUIS WARREN
por Fábio Visnadi



O vaqueiro John Cord arrasta-se, amarrado a uma carruagem, pelos lamacentos e ásperos chãos de Hamilton, vilarejo qualquer no oeste americano, traumatizado por um motim de bêbados que anos antes lhe fora imputado, o que lhe custou alguns anos na prisão. Da voz de um dos moradores do povoado, sempre do mais ferido no caos longevo, daquele que padecera dos piores reveses no tumulto, é proferida uma sentença de perdão em nervosa retórica comum ao western norte-americano: a solitária e compassiva voz contra o bode expiatório. Cord recebe nova missão, desacreditado por alguns dos residentes, confiado por outros, mas, como forma de vingar-se, aceita-a na expectativa de lhes frustrar os planos. Em um senso de dever cívico, em sua infernal jornada a personagem interpretada por Joel McCrea vai aos poucos se convencendo do compromisso da sua tarefa. Com ouvidos atentos escuta da boca daquele que o credenciou, falando aos demais vaqueiros que a contragosto o acompanhavam na trilha, que por mais que não confiassem nele a sua aptidão para o serviço nunca permitiria que pusesse a perder tantas cabeças de gado. Tomando como pretexto o privilégio das vacas sobre os homens na proporção de suas empatias, Cord opta por prosseguir viagem.

A esta altura é dispensável mencionar a inocência do cowboy, não porque ela fosse evidente, mas porque é pouco grave no resumo dos fatos. Mais importante é a maneira como essa alegação surge no filme: Cord impede os homens que o acompanhavam, nesse instante alcoolizados, de passarem por uma pequena cidade, por saber que o pior ocorre quando vaqueiros bêbados visitam cidades inocentes. Muitos dos vaqueiros do vilarejo de Hamilton permanecem mutilados, feridos ou traumatizados pela passagem de Cord e seus bêbados por lá anos antes, e agora o seguem na jornada não somente para auxiliá-lo, a seu pedido, como também para preveni-lo e vigiá-lo de quaisquer contratempos deliberados. Cord recebe uma réplica de um dos outrora golpeados: “Mas nós somos gente decente.” Ao que treplica: “Pessoas decentes destruíram suas lojas... decentes igual a vocês.” Atento ao conflito, o cego Ralph Hamilton (Don Haggerty), responsável por delegar a Cord sua atual função, confessa a todos os homens ali presentes que na realidade foi ele o culpado, cinco anos antes, por ter deixado seus homens chegarem embriagados a Hamilton. Cord sempre trouxe consigo uma garrafa de uísque para dividir entre os cowboys e evitar que eles se abeirassem dos povoados durante as trilhas de gados, mas um atrito entre ele e os seus vaqueiros na época, somados ao assentimento de Ralph, o impediram de barrar esses homens do estrago causado à cidade de Hamilton. Frustrado e exasperado por ter sido cegado no embate com Cord, Ralph permitiu que o vaqueiro passasse todos esses anos na prisão, mas agora, como forma de reparo, oferece a ele a chance de redenção. “Os homens ao menos são grandes para pedir desculpas”, afirma a moça apadrinhada por Cord que, apaixonada, o acompanhava.

Espécime do elo perdido dos anos 1950 entre o faroeste primevo e o moderno, como aquele de Budd Boetticher, engana-se pela descrição quem quer que tome Homens sem lei (Cattle Empire, 1958) como um filme sobre a honra e o dever. Ainda que Charles Marquis Warren carregue consigo a virtude moral de John Milius e verse, a seu modo, sobre a grandeza, ele é um predecessor direto do temperamento de Sam Peckinpah. Seus cowboys, embora reconheçam a dimensão de seus adversários, inscrevem com seus corpos suas marcas na fisicalidade da violência e cicatrizam suas feridas na suspeita da decência. Como parte de uma tradição de vigor, força e brutalidade descendente de Raoul Walsh, arrematada por Aldrich, Boetticher e Mann e herdada por Cimino e Penn, seus faroestes sobrevivem ainda que pouco comentados ou vistos, clandestinos em seu hemisfério cinematográfico. E, entretanto, no sigiloso contrabando de todas as forças do western, é possível que ele rode um título como Marcados pela violência (Tension at Table Rock, 1956). Se não há ainda o grafismo que certa liberdade de costumes autorizou à geração posterior à de Marquis Warren, há uma espécie de violência latente, em uma progressão nuclear que pulsa em cada avanço de uma sequência da película e que, na iminência do conflito, requer a resolução rápida, tanto no átomo de seus desdobramentos parciais como no encerramento de sua trajetória final.

Já era reta a jornada heroica de Homens sem lei, como também era um lobo solitário seu protagonista, mas há um acento na percepção imediata dessa retidão, a qual acaba reforçada justamente pela estranheza de uma sucessão delineadora de etapas. Tudo nesse filme é rápido e ecoa os principais mandamentos e matrizes do gênero, agora viciados por uma personalidade viril. É uma odisseia o caminho de Wes Tancred, vivido aqui por Richard Egan, mas cruza-se passo a passo estágios de westerns diversos, sem que a narrativa se detenha em qualquer um. Espécie de Robert Ford invertido, isto quer dizer sem a criminalidade, Tancred é acusado de ter atirado em seu melhor amigo nas costas quando na verdade defendia-se legitimamente. Traído pela namorada de seu companheiro (que flertara instantes antes com ele, tendo por isso alavancado o conflito e, no momento da confusão, conferido um testemunho às avessas), Tancred foi imortalizado em canção de traição, cantada por bêbados nos mais rasteiros saloons.

Esse não é, contudo, um faroeste de redenção, e Egan, como Joel McCrea, não é tampouco somente outro bode expiatório – embora Marquis Warren se sirva dessa possível condição, não para trabalhá-la e inseri-la como força gravitacional da estrutura do filme, mas como mola propulsora para precipitar o curso de seus heróis, pressionados para realizarem suas tarefas. Sem deter-se no desenvolvimento de cada pormenor apresentado, o filme avança em certas etapas: Tancred tenta proteger um vaqueiro e seu filho, mas não tem a sorte de evitar o assassinato à beira da estrada do vaqueiro. Tudo vai bem, este não é O resgate do bandoleiro (The Tall T, Budd Boetticher, 1957), e o conflito serve somente para levar o herói à iminência da sua missão, que descobriremos adiante. Responsável agora por uma criança, o filme deve também esboçar uma espécie de romance de formação de um homem, mas são traçadas aqui somente algumas diretrizes que não serão, também elas, o mote da obra. Esta, conforme já desconfiávamos, é Table Rock, onde vão parar o jovem aprendiz e o protagonista, que acaba levando o menino aos seus tios que ali habitam. Tancred presencia o assassinato de um morador local por uma gangue de forasteiros, testemunhando a falsificação da cena do crime pelos bandidos que situam uma arma na mão do cadáver para alegar legítima defesa. Em um tribunal Tancred defende o morto enquanto um xerife indeciso, também presente no ato, seduz-se pelo discurso do herói cívico e decide contrariar o relato hegemônico dos culpados. No entanto, não se trata também de um faroeste de tribunal, e, bruscamente, o filme chega à outra parte de seu título: a tensão. Em sua trajetória linear, como nos melhores filmes de John Flynn, o herói desse filme de Marquis Warren avança cada percalço superficialmente aludido justamente para chegar ao seu objetivo final. Tanto a personagem de Egan quanto o diretor por trás das câmeras não se questionam em tempo algum quanto a seus objetivos: estes assumem a forma de intuições presentes tanto na ação da personagem quanto no esquema de construção do filme, e funcionam como ferramentas manuais, extensões corporais, a fim de se chegar onde se deseja. Tancred não o sabe, Marquis Warren tem certeza: este objetivo é Table Rock. E, “com o desprezo de um deus aprisionado”, como bem disse Michel Mourlet, a intensidade do conflito é resolvida “tremendo de uma raiva silenciosa”... O que nos leva a O último guerreiro (Arrowhead, 1953), protagonizado pelo “axioma” Charlton Heston, o mais transtornado dos três heróis no mais indisposto dos três filmes mencionados no comentário presente.

Se O último guerreiro consiste em ser uma espécie de inversão brechtiana do gênero, ou uma aguda e sutil aplicação dele, ou um faroeste do anti-revisionismo, cabe aos comentadores políticos dizê-lo: a presente crítica apenas mostra as cartas. Rodado em 1953, na era do macartismo, Charlton Heston e Jack Palance são Ed Bannon e Toriano e, quando afrontam-se, o “homem do perfil de águia” e o da “esplêndida e animal feiúra” não somente corroboram alguns dos mais essenciais arquétipos do faroeste como também reverberam a imagem política do solitário conservador de têmpera individual do país de Ralph Waldo Emerson e Walt Whitman e a do líder revolucionário e insurgente que reconduz seu povo a uma missão teleológica em que os meios são relativos. Surge mais uma vez a figura do bode expiatório, mas desta vez ele é justamente Charlton Heston, que desconfia todo o tempo das intenções secretas por trás do acordo de pacifismo entre os índios e os moradores progressistas do povoado e que, todo o tempo desacreditado, marginaliza-se ao mesmo tempo em que procura adverti-los, como uma persistente sombra, das más intenções de Jack Palance. Ocorre, no entanto, que Heston, embora conservador, foi criado entre os índios e que Palance, embora indígena, teve educação ocidental e possui noções bem próprias e internalizadas do seu papel no revanchismo histórico em uma espécie de anti-humanismo althusseriano como líder do seu povo.

Nessa contradição dialética, ambos descortinam não somente a grandeza de seu oponente, como também a vileza e a sordidez de seu inimigo (novamente Milius com temperamento de Peckinpah), e é por isso que Charlton Heston, que profere o tempo todo a sentença de que todos os índios são traiçoeiros, mas que conta com uma amante mestiça, acaba por assassiná-la, atribuindo a traição que ela lhe faz ao seu sangue metade indígena, enquanto Jack Palance, por outro lado, vira-se contra seu irmão de honra branco num momento em que ele estende a mão e o quer apresentar a seu filho. Mas Heston é aqui o bode expiatório justamente porque ele é o único que sabe da torpeza do caráter de Palance e somente ele procura torná-la evidente – o que não significa que também ele não seja torpe a seu modo – enquanto uma comunidade local imbuída de valores iluministas crê na boa intenção do acordo. Se vemos o filme ser construído frontalmente a cada instante como uma confirmação paulatina das suspeitas de um Heston sempre à espreita (e muito se deve à fisicalidade violenta do filme tal condição não ser, novamente, explorada através da reviravolta, mas por não querer a obra largar o seu protagonista em momento algum quando, mesmo nas sequências em que está ausente, a desconfiança de Heston parece se insinuar ao espectador como uma espécie de “eu lhe avisei”), não se trata aqui de um alinhamento de Marquis Warren com os ideais de Ed Bannon ou como oposição marcada a Toriano, mas como confirmação retilínea de seu modo de enxergar através dos homens.

O último guerreiro não prega as más intenções do protagonista e o seu antagonista, mas certamente desconfia das boas. Nele, a transformação brechtiana não ocorre através da mudança de perspectiva de Heston ou Palance como em Rastros de ódio (The Searchers, John Ford, 1956), nem como em O fugitivo de Santa Marta (The Lawless, Joseph Losey, 1949-1950) ou Consciências mortas (The Ox-Bow Incident, William A. Wellman, 1942-1943) nos quais se faz a defesa de alguns bons homens contra a violência desmedida da comunidade, mas sim através da confirmação dos ideais de seus protagonistas e da transmutação da percepção do corpo local. No universo de Marquis Warren os otimistas progressistas enfim aprendem a desconfiar, enquanto os nativos insurgentes são obrigados a se despedirem dos valores ocidentalizados do rebelde instruído. Longe de qualquer revisionismo, o discurso de O último guerreiro não se constitui em torno de uma idealização humanista do índio ou do cowboy, mas da confirmação dos instintos mais brutais do ser humano. Esse desmascaramento do véu da cultura não surge nunca através da reviravolta, mas do franco confronto entre a repulsa e a perversão: ora a chance da redenção é arrastada pelo chicote da vingança, como em Homens sem lei, exigindo de seu herói a sublimação de seus instintos mais hediondos como forma de uma espécie de vingança mais elevada; ora ela demanda propriamente que se deixe de lado a ideologia e que se comece a dar conta de que por trás da aplicação fundamental de qualquer preceito moral esconde-se uma pulsão inconsciente mais profunda de violência e destruição. Se o Walsh de Meu pecado foi nascer (Band of Angels, 1957) joga o tempo todo com essa tensão, mas termina por acreditar em valores afetivos que acabam falando mais alto, o Marquis Warren de O último guerreiro parece dizer, conforme o enunciado de Joseph Heller, que “só porque você é paranoico não significa que eles não estejam atrás de você”. Em era de caça às bruxas, esse diretor dos faroestes menos parcimoniosos que se viu na era clássica não somente desconfiou dos caçadores como também das bruxas, certo de que nada impediu ou impediria os caçadores de continuarem caçando e as bruxas de continuarem tramando, relativizando a sua grandeza por sua vileza e a sua sordidez através de seu senso heroico.

 

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