SLEEP, Andy Warhol, 1963-1964
A primeira coisa que é preciso esclarecer sobre Sleep é o assunto do filme: diferentemente do que se pode pensar, este não é um filme sobre a experiência do sono, mas sobre alguém que observa um corpo que dorme. Não importa a que o título nos induza, não importa o que pensasse o próprio Warhol. É preciso ver o filme.
Dos filmes de Warhol, este é um dos mais estritamente decupados. John Giorno dorme, e a câmera alterna entre diversas partes de seu corpo, sem nunca abandoná-lo, sempre retornando a ele, invariável e obsessivamente: abdômen, cabeça, pescoço, joelho, peitoral, punho, cu. As escolhas são tudo menos aleatórias. Durante o filme inteiro, nunca tiramos os olhos deste corpo, nunca vemos outra coisa a não ser ele. Por cinco horas e vinte minutos este corpo alheio, inconsciente, impessoal é nosso. A câmera o possui e nós desfrutamos dele.
Não há “tempo real”: Warhol filmou Giorno em diversas sessões noturnas. Mas o material reunido era bem menor do que as cinco horas finais. Warhol então duplicou, triplicou, quadriplicou as bobinas (o que fica nítido pelas variações regulares de luz no interior de cada uma delas). Ele também decidiu projetar o filme a 16 fotogramas por segundo, mais lento que o normal, o que se tornaria regra em seus filmes silenciosos – “Por quê?” “Porque assim se fazia na era silenciosa”, ou “para compensar o tempo gasto nas trocas de rolo”, nos responderia Warhol com sua candura desinteressada habitual.
É que toda obra de Warhol, como se sabe, é pautada por uma falsa inocência, uma banalidade aparente. As cinco horas são, claro, um ciclo de sono, uma “noite”; mas elas são igualmente o exercício incansável de observação de um corpo por alguém obcecadamente apaixonado. Por quanto tempo se pode olhar alguém que se ama? Uma noite inteira? Estudar seus movimentos, cada canto de sua pele. Quanto tempo até que o amor se esgote (se é que ele se esgota)? Sleep se insere na longa tradição romântica do velar o corpo da pessoa amada durante o sono. Quando sabemos que Giorno era o parceiro de Warhol à época, é ainda mais difícil não pensar neste como um imenso filme de amor obsessivo.
Warhol monumentaliza o corpo de Giorno. Pescoço, cabeça, mão, abdômen, bunda são amplificados em planos detalhes. Ao mesmo tempo, eles se tornam impessoais. Este corpo desacordado, sem vida, reduzido à sua nudez, se torna despersonalizado. Apenas um corpo. Warhol o filma como uma estátua horizontal, reforçando seu aspecto ao mesmo tempo majestoso e pétreo. A câmera na altura da cama eventualmente cria contre-plongées que magnificam e anamorfizam o corpo de Giorno (Dominique Païni lembra bem das semelhanças entre alguns enquadramentos do filme e a Lamentação sobre o Cristo morto, de Mantegna).
É essa monumentalização que dá a Sleep seu sentido cósmico. Não precisamos sair do corpo de um homem para ter o mundo inteiro, como numa espécie de atomismo. Tudo está lá. Sua respiração é a respiração do mundo. O corpo anônimo e nu se torna uma entidade impessoal, um elo universal: apenas a vida reduzida a seus sinais vitais, como este movimento violento e profundo de respiração da pele que se expande e se retrai no primeiro rolo do filme.
O contraste da iluminação, a granulação e a precariedade do 16 mm. subexposto eventualmente põem esse corpo sob a ameaça de um desaparecimento, o que faz com que ele se funda à imagem, perdendo-se na sua falta de definição. Patrick De Haas tem um bom insight sobre o paradoxo da imagem em Warhol: pois se por um lado seu olho de vidro conserva a transparência absoluta, por outro, essa mesma transparência é superexposta até que “se torna paradoxalmente visível, ela exibe sua presença a tal ponto que se torna uma parede”[1].
Os movimentos da respiração de John Giorno sob a luz de penumbra subexposta criam verdadeiros buracos negros na imagem: buracos nos quais somos tragados, absorvidos por esta mucosa resultante da pele impressa sobre a película. Esse movimento obsedante é o que tira o filme da mera experiência epidérmica, da experiência de um corpo particular, para dar a ele seu sentido cósmico. Em certo momento, o contorno do traseiro de Giorno se funde com o escuro da sombra (um desses buracos negros) e temos a impressão de ver a própria lua fundida no braile poroso de sua pele.
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Sleep, diferentemente do que se pode imaginar, é um dos filmes de Warhol mais prazerosos de se ver – o que não quer dizer que a tarefa de chegar até o fim seja simples. O minimalismo do filme é rigoroso, mas ao mesmo tempo suave. Seu radicalismo tem qualquer coisa de reconfortante para o cinéfilo: sabemos que a imagem vai sempre estar ali, que pouco ou nada vai se passar, que precisamos apenas estar lá, olhar para a imagem. Não é preciso se inquietar. Não ficaremos para trás, não perderemos o filme enquanto ele passa. Basta vê-lo, basta olhar.
Nada significa em Sleep. Nada “tiramos” do filme. Warhol reduz o cinema a uma máquina de visibilidade pura, que elimina toda possibilidade de produção de significados. Um literalismo que, em sua radicalidade, reeduca o nosso olhar, como ocorre nos grandes cineastas. Reaprendemos a ver as coisas, a sentir prazer em tão-somente ver. Porque os filmes de Warhol são sobretudo isso: filmes sobre o prazer de olhar. Prazer profundamente erótico, às vezes perverso, seguramente mórbido – mas afinal por que não?
Nota:
[1] Patrick De Haas, Andy Warhol: Le cinéma comme « Braille Mental ». Paris: Éditions Paris Expérimental, 2005. |
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