KING VIDOR: A MAGIA
Com as constantes “reprises” de fitas antigas temos a possibilidade de conhecê-las e até revalorizá-las sob uma nova estética, aquela introduzida pelo cinema moderno. Fúria do desejo (Ruby Gentry, King Vidor, 1952), que na sua estreia em São Paulo obteve uma receptividade negativa, vem agora firmar-se como uma das maiores obras do cinema norte-americano dos últimos vinte anos.
King Vidor, patriarca do cinema clássico americano, pode ser impunemente situado no nível privilegiado de Fritz Lang, Howard Hawks, Walsh, na profícua família dos grandes cineastas do seu país. Formalmente, Fúria do desejo é o cinema moderno antes do cinema moderno, como o são algumas antigas fitas de Lang, por exemplo.
Trata-se de uma mise en scène despojada, limpa – clássica – ao contrário dos delírios barrocos de Duelo ao Sol (Duel in the Sun, 1946) e do belicismo acadêmico de O grande desfile (The Big Parade, 1925), ambos do mesmo diretor. Nada de subterfúgios. A câmera filma o homem, em contato físico, diretamente: nos automóveis (elemento fundamental na intriga), lanchas, no bosque e em quartos velados. Valoriza-se o local e o momento em que ocorre a ação, aproximando talvez o diretor de um Vidor que não chega a ser “King”: Charles Vidor, com seus Uma aventura na Índia (Thunder in the East, 1951) e Gilda (1946).
A morte de Karl Malden na lancha, por exemplo, define o método do autor: a adição de instantaneidades livres (cenas) a compor um ritmo variável, lembrando (ou prevendo?) certas conquistas atuais, particularmente de Resnais e Francesco Rosi.
A realidade é fragmentada e recomposta segundo o princípio da mise en scène: uma câmera que se desloca e delimita os seres e objetos no décor, fornecendo necessariamente uma visão parcial, relativa e incompleta do mundo, a visão de 90 minutos, isto é, a visão cinematográfica.
Muito poderia escrever-se sobre a estrutura da fita, ainda mais relacionando-a com a de um autor tipo Fritz Lang. Como o diretor alemão, Vidor filma detalhes isolados da realidade, sugerindo-a globalmente através de uma relação indireta (voz off, marcação dos atores, corte entre plano aproximado e plano geral). Tal sistema admite a ambiguidade do universo, a ponto de Fúria do desejo parecer um “filme negro”, com todas as características peculiares que fizeram de 1946/48 sua grande fase (sadomasoquismo, insinuações sobre amor incestuoso, atmosfera onírica).
Captar o cosmos através de um microcosmo dramático facilmente poderia levar à metáfora ou à sinédoque. Ao invés disso, o diretor americano respeita o fragmento enquanto fragmento e não como signo da totalidade (como em Lang e, mais acentuadamente, em Hitchcock e Bresson).
O diretor de Os pássaros (The Birds, Alfred Hitchcock, 1963) também registra o mundo dos detalhes e objetos, relacionando-os com o conjunto (personagens e com a própria história, a ponto de ditá-la) e é assim que chega a construir um universo particular. Idêntica escolha por um microcosmo simbólico se verifica em Os mil olhos do Dr. Mabuse (Die 1000 Augen des Dr. Mabuse, Fritz Lang, 1960), O tigre de Bengala e O sepulcro indiano (Der Tiger von Eschnapur e Das indische Grabmal, Fritz Lang, 1958-1959) e, numa obra mais recuada, Metrópolis (Metropolis, Fritz Lang, 1925-1927), mas obedecendo a uma abstração estrutural mais elaborada. Em Robert Bresson o sistema não é menos evidente.
O mundo não é o mesmo que conhecemos; sofreu uma profunda transformação interna. Em vez de reproduzi-lo diretamente (através de suas impressões visuais), os cineastas apreendem os objetos segundo uma preocupação intelectual a ponto de submetê-los a uma lógica rigorosa, admitindo-o como expressão de alguma coisa... ou ideia (o misticismo cartesiano de Bresson, o “suspense” em Hitchcock, o discurso marxista em Eisenstein, reflexão sobre a fatalidade em Lang). Tais cineastas dirigem-se à abstração.
King Vidor apresenta vantagens que a abstração oferece mas não se condiciona a ela: propõe uma relação concreta entre câmera e personagem, evitando relacionamentos lógicos entre ser e objeto. O deslocamento de câmera apresenta as mesmas noções de relatividade de Tomu Uchida, já que colhe aspectos essenciais da intriga, sob um ponto de vista unilateral (e não se pode impô-la como signo da totalidade, sob pena de falsificá-la). Por exemplo: na sequência de baile percebemos a paixão de Ruby, o ciúme do marido e prevemos o escândalo. Vidor filma apenas o essencial: um espaço e tempo determinados, um local (o bar) por onde se deslocam, surgindo e desaparecendo, as personagens durante alguns instantes antes da situação iminente. Trata-se de um fragmento do real, sem por isto transformar-se em símbolo; a captação livre, desdramatizada e determinada de um local e de um momento. Neste sentido, Vidor pode ser comparado a Howard Hawks, em que o cinema aproxima-se da física, recusa o humanismo e habituais antropocentrismos, e onde, como diz o título de um livro de Vidor, “uma árvore é uma árvore” – e somente uma árvore.
“A tree is a tree” – e já se comprova como Godard tinha razão quando afirmou que uma mulher é uma mulher... É a mesma inclusão das coisas na pura visibilidade, destituídas de adjetivações e dramatismos, inclusive da protagonista (Ruby).
E o próprio diretor confessa que “a maneira de ver é tudo”. A visão é uma qualidade capital, o conceito fundamental de inúmeras fitas atuais. Em Vidor, como no cinema moderno, a dialética interna do filme parte de três constantes: 1) apreensão do presente; 2) apreensão do espaço (consequentemente, apreensão do “espaço presente” e do “presente enquanto espaço”); 3) predominância da visão. Sobre esta última, é necessário lembrar o tratamento de algumas sequências à base de cinema mudo, especialmente no flashback; tratamento ultramoderno, diga-se de passagem.
A primazia do fato. “Nada senão fatos: um homem anda, mata, é morto.” Luc Moullet refere-se a uma fita de 1930, O vingador (Billy the Kid, 1930). Diante do olho, a câmera, eles exigem somente a evidência.
Estranhos são os desígnios da criação cinematográfica. O cinema de Vidor conduz-nos à apreciação estética da magia. É da ilusão (principalmente ótica) que nasce o espetáculo fílmico. E como na prestidigitação, ela nasce da realidade concreta. De jogo entre objetos, da evidência destes fragmentos do real – assim podemos definir seu cinema. E a propósito, diz o próprio: “ele não é senão uma ilusão mais enganosa que as outras e por consequência deveria estar nas mãos de mágicos...” E está. King Vidor pode ser alinhado ao lado de Mizoguchi, Welles, Resnais, os Mandrakes da mise en scène.
Esta tentativa de compreensão do espetáculo pode estender-se, grosso modo, a grande parte do cinema americano, onde mais se destaca o interesse em criar um mundo imaginário, que é do cinema a partir de fatos banais, do cotidiano e da evidência das situações, enfim, de detalhes e tratamentos realistas. (“Hollywood é uma usina de sonhos”, lamentava-se o crítico comunista Ilya Ehrenburg). Mas não são muitas as ocasiões em que o mecanismo se realiza plenamente, como nesta espetacular produção independente rodada em cinco semanas no final de 1952.
“A vida designou-nos como mágicos”, diz o diretor, pensando talvez numa essência da sétima arte, instantânea, efêmera e relativa (“quando as sessões terminam a tela permanece imaculada, mesmo após tantas violências e infâmias, depois de tempestuosas peripécias de intrigas criminais e espetáculos os mais sinistros. A ilusão desvanece-se e a tela reconquista sua brancura inicial”). Mais propriamente: designou-nos como cineastas. |
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