KINOKS: UMA REVOLUÇÃO (10/4/1923)
por Dziga Vertov



(De um apelo no início de 1922)


Você – cineastas, diretores e artistas que nada têm para fazer, todos os câmeras e escritores confusos espalhados por todo o mundo;

Você – plateia, pacientes como mulas sob o fardo das experiências emocionais que lhes são oferecidas;

Você – impacientes proprietários de salas que ainda não vieram à bancarrota, surrupiando avidamente as sobras da mesa alemã, ou, mais raramente, da americana;

Você – exaustos pelas lembranças, aguardam com suspiros sonhadores a lua de uma nova produção em seis atos... (os mais nervosos são requisitados a fecharem seus olhos).

Você está esperando por algo que não virá; a espera é inútil.

Um aviso amigável:
Não escondam suas cabeças como avestruzes.
Levantem seus olhos,
Olhem em volta –
Lá!
É óbvio para mim
como para qualquer criança
As entranhas,
as tripas das sensações fortes
estão caindo
da barriga do cinema,
destripada no recife da revolução.
Veja-as se arrastando,
deixando um rastro de sangue na terra
que estremece com horror e nojo.
Está tudo acabado.


(Passagem de um registro estenográfico)
Ao Conselho dos Três – Dziga Vertov


Drama, policial, comédia, filme de atrações – não importa o gênero –, se eliminarmos todos os temas, deixando apenas os subtítulos, obtemos o esqueleto literário do filme. Podemos filmar outros temas para acompanhar esse esqueleto literário – realista, simbolista, expressionista, o que você quiser. Essa situação não mudará. A correlação é a mesma: um esqueleto literário mais ilustrações fílmicas – quase sem exceções todos os filmes são assim, os nossos e os estrangeiros.


(De um apelo de 20 de janeiro, 1923)
Aos cineastas – O Conselho dos Três
[1]


Cinco anos fervilhantes de ousadia universal passaram por vocês e se foram, sem deixar vestígios. Vocês mantêm modelos “artísticos” pré-revolucionários suspensos como ícones nos seus interiores, e é somente para eles que a vossa piedade interior se dirigiu. Países estrangeiros lhes sustentam nos seus erros, enviando para uma Rússia renovada as relíquias imperecíveis do filme dramático realizadas com esplêndida consistência técnica.

A primavera chega. Espera-se que as fábricas de filmes retomem os trabalhos. O Conselho dos Três observa, com indisfarçado pesar, trabalhadores da produção cinematográfica folheando textos literários em busca de dramatizações apropriadas. Nomes de dramas teatrais e épicos propostos para adaptação pairam no ar. Na Ucrânia, e aqui em Moscou, vários filmes com todos os signos da impotência já estão em produção.

Um forte atraso tecnológico; uma perda de pensamento ativo, perdido durante um período de indolência; uma orientação para o psicodrama em seis atos – i.e., uma orientação para o que está atrás de você –, todos esses fatores condenam cada tentativa (de adaptação) ao fracasso. O sistema cinematográfico está envenenado com a terrível toxina da rotina. Exigimos a oportunidade de testar o antídoto que encontramos no seu corpo moribundo. Pedimos aos incrédulos que vejam por si mesmos: concordamos em testar nossa medicina de antemão nas “cobaias” – film études...


A resolução do Conselho dos Três, 10 de abril, 1923


A situação no front do cinema deve ser considerada pouco auspiciosa.

Como era de se esperar, as primeiras produções russas que nos foram exibidas lembram os velhos modelos “artísticos”[2] da mesma forma que os homens da N.P.E.[3] lembram a velha burguesia.

A programação prevista para o verão, tanto aqui quanto na Ucrânia, não inspira a menor confiança.

As propostas para um trabalho amplo e experimental foram descartadas.

Todos os esforços, suspiros, lágrimas e esperanças, todas as orações dedicam-se a ele: o filme dramático em seis atos.

Portanto, o Conselho dos Três, sem esperar que os kinoks se atribuam trabalhos e ignorando o desejo deles mesmos executarem os seus próprios projetos, está temporariamente desconsiderando os direitos autorais e decide divulgar imediatamente para uso geral os princípios e slogans comuns da iminente revolução-pelas-atualidades-cinematográficas; para este fim, em primeiro lugar, determina-se ao kinok Dziga Vertov, de acordo com a disciplina do partido, que publique alguns trechos do panfleto “Kinoks: uma revolução”, os quais devem esclarecer suficientemente a natureza dessa revolução.


O Conselho dos Três


Em cumprimento à resolução do Conselho dos Três de 10 de abril deste ano, publico os seguintes trechos:


1. Após examinar os filmes que nos chegaram do Ocidente e da América, e levando-se em conta as informações disponíveis sobre o trabalho e a experimentação artística realizados aqui e no exterior, cheguei à seguinte conclusão:

A sentença de morte declarada em 1919 pelos kinoks contra todos os filmes ainda permanece válida, sem exceções. O exame mais minucioso não conseguiu revelar um filme ou um experimento artístico propriamente dirigido à emancipação da câmera, a qual permanece reduzida a um estado de lamentável escravidão, de submissão às imperfeições e à miopia do olho humano.

Não nos opomos ao desgaste da literatura e do teatro pelo cinema; aprovamos plenamente a utilização do cinema em todos os ramos do conhecimento, mas definimos essas funções como acessórias, ou seja, como consequências secundárias do cinema.

O principal e essencial é:

A exploração sensorial do mundo pelo filme.

Portanto, tomamos como ponto de partida o uso da câmera como cine-olho, mais aperfeiçoado do que o olho humano, para a exploração do caos dos fenômenos visuais que preenchem o espaço.

O cine-olho vive e se move no tempo e no espaço; ele reúne e registra impressões de uma maneira totalmente diferente daquela do olho humano. A posição de nossos corpos enquanto observamos ou nossa percepção de um certo número de características de um fenômeno visual em um dado instante não são de forma alguma limitações obrigatórias para a câmera que, uma vez aperfeiçoada, percebe cada vez melhor.

Nós não podemos aperfeiçoar a feitura dos nossos olhos, mas a câmera pode ser indefinidamente aperfeiçoada.

Até agora muitos operadores de câmera foram recriminados por filmarem um cavalo deslocando-se com uma lentidão acentuada (movimento rápido da manivela da câmera); ou, pelo contrário, um trator arando o campo a toda velocidade (movimento lento da manivela), e assim por diante.

Essas são ocorrências fortuitas, é claro, mas estamos preparando um sistema, um sistema pensado a partir desses casos, um sistema de aparentes irregularidades para investigar e organizar fenômenos.

Até agora nós violamos a câmera e a forçamos a copiar o trabalho de nossos olhos. E quanto melhor a cópia, melhor se considerava a tomada. A partir de hoje, estamos liberando a câmera e fazendo-a funcionar na direção oposta, o mais distante possível da cópia.

A fraqueza do olho humano é manifesta. Nós professamos o cine-olho, que descobre no caos do movimento o resultado do próprio movimento do cine-olho; nós professamos o cine-olho com as suas próprias dimensões do tempo e do espaço, elevando-se em força e em potencial ao ponto de se autoafirmar.


2. Eu faço o espectador ver da maneira mais adequada à minha apresentação deste ou daquele fenômeno visual. O olho submete-se à vontade da câmera e é direcionado por ela àqueles pontos sucessivos da ação que, mais sucinta e vividamente, conduzem a cine-frase à altura ou profundidade da resolução.

Exemplo: filmar uma luta de boxe não do ponto de vista do espectador que assiste ao espetáculo, mas dos gestos sucessivos (dos golpes) dos boxeadores.

Exemplo: a filmagem de um grupo de bailarinos não do ponto de vista do espectador sentado numa sala com um balé no palco diante dele.

Afinal, o espectador de um balé segue, confuso, ora o grupo combinado de dançarinos, ora figuras individuais aleatórias, ora as pernas de alguém – uma série de percepções dispersas, diferentes para cada espectador.

Não se pode apresentar isso ao cine-espectador. Um sistema de movimentos sucessivos requer a filmagem de dançarinos ou boxeadores na ordem de suas ações, uma após a outra, através da transferência forçada do olhar do espectador para os detalhes sucessivos que devem ser vistos.

A câmera “dirige” o olho do espectador dos braços às pernas, das pernas aos olhos etc., na ordem mais favorável, e organiza os detalhes em um estudo ordenado da montagem.


3. Você anda por uma rua de Chicago hoje, no ano de 1923, mas eu o forço a cumprimentar o camarada Volodarski que caminha por uma rua de São Petersburgo em 1918 e responde ao seu cumprimento.

Outro exemplo: os caixões dos heróis nacionais são baixados à terra (filmado em Astracã em 1918), o túmulo é fechado (Cronstadt, 1921); salva de canhões (São Petersburgo, 1920), serviço funerário, as pessoas tiram os chapéus (Moscou, 1922) – essas coisas se seguem umas às outras, mesmo com tomadas ingratas não filmadas especificamente com esse propósito tais cenas se combinam entre si, mesmo quando se trata de um material ingrato que não foi filmado especialmente para esse fim (cf. Kino-pravda no. 13 – Vchera, segodnia, zavtra. Kinopoema, posviashchennaia Oktiabrskim tozrzhestvam, Dziga Vertov, 1922). A montagem da saudação das multidões e do aceno das máquinas ao camarada Lênin (Kino-pravda no. 14, Dziga Vertov, 1923), filmadas em locais distintos em momentos distintos, pertence a essa categoria.

Eu sou o cine-olho. Eu sou um construtor. Eu coloquei você, a quem eu criei hoje, em um aposento extraordinário que não existia até há pouco e que também foi criado por mim. Nesse aposento há doze paredes que eu filmei em várias partes do mundo. Justapondo tomadas das paredes com tomadas de detalhes, consegui encadeá-las em uma ordem que é aprazível e edificar com intervalos, corretamente, uma cine-frase que é justamente esse aposento.

Eu sou o cine-olho, crio um homem mais perfeito do que Adão, crio milhares de homens diferentes de acordo com esquemas preliminares e diagramas de diferentes tipos.

Eu sou o cine-olho.

De um eu pego as mãos, as mais fortes e mais destras; de outro eu tomo as pernas, as mais bem torneadas e mais velozes; do terceiro a cabeça mais bela e expressiva – e, pela montagem, crio um novo homem, um homem perfeito.


4. Eu sou o cine-olho, eu sou o olho mecânico. Eu, máquina, vos mostro o mundo como só eu posso vê-lo.

Agora e sempre me liberto da imobilidade humana, estou em constante movimento, aproximo-me e depois me afasto dos objetos, rastejo por baixo e depois subo neles. Movo-me em ritmo acelerado com o focinho de um cavalo a galope, mergulho a toda velocidade no meio da multidão, ultrapasso os soldados que correm, caio de costas, subo com um avião, mergulho e voo junto com corpos em queda livre. Agora eu, uma câmera, arremesso-me ao longo deles, manobrando no caos do movimento, registrando movimentos, começando com movimentos compostos pelas combinações mais complexas.

Liberado do imperativo dos 16-17 quadros por segundo, liberado dos limites do tempo e do espaço, justaponho todos os pontos do universo, independente de onde os registrei.

O meu caminho leva à criação de uma percepção nova do mundo. Eu decifro numa nova maneira um mundo que vos é desconhecido.


5. Mais uma vez, concordemos: o olho e o ouvido. O ouvido não espia, o olho não bisbilhota.

Separação de funções.

Rádio-ouvido – a montagem do “Eu ouço!”.

Cine-olho – a montagem do “Eu vejo!”.

Eis, cidadãos, em primeira mão: no lugar da música, da pintura, do teatro, do cinematógrafo e de outras efusões castradas.

Dentro do caos dos movimentos, correndo, fugindo, acudindo e colidindo – o olho, por si só, entra na vida.

Um dia de impressões visuais escoou-se. Como recriar as impressões desse dia de um modo eficaz, em um estudo visual? Se filmarmos tudo o que o olho viu, o resultado, é claro, será o caos. Se montarmos com uma certa ciência o que foi fotografado, o resultado será mais claro. Se jogarmos fora o que é supérfluo, ficará ainda melhor. Obteremos um resumo organizado das impressões visuais de um olho comum.

O olho mecânico, a câmera, ao rejeitar o olho humano como suporte, tateia no caos dos eventos visuais, deixando-se atrair ou repelir pelos movimentos, buscando o caminho do seu próprio movimento à medida que prossegue. Faz experiências, dilatando o tempo, dissecando o movimento, ou, ao contrário, absorvendo o tempo em si mesmo, deglutindo os anos, esquematizando, assim, processos de longa duração inacessíveis ao olho normal.

Para auxiliar a máquina-olho existe o piloto-kinok, que não apenas controla os movimentos da câmera como também se entrega a ela durante experimentos no espaço. E o futuro verá o engenheiro-kinok, que controlará as câmeras por controle remoto.

O resultado desta ação conjunta da câmera liberada e aperfeiçoada e do cérebro estratégico do homem que dirige, observa e calcula – a apresentação das coisas, mesmo as mais comuns, revestir-se-á de um frescor excepcional e, por isso mesmo, digno de interesse.

Quantas pessoas, ávidas de espetáculos, não gastam os fundos das calças nos teatros?

Elas fogem do enfado, da “prosa” da vida. E, no entanto, o teatro é quase sempre apenas uma indigna imitação dessa mesma vida, além de um amontoado idiota de afetações coreográficas, de chiados musicais, de artifícios de iluminação, de cenários (que vão de borrões ao construtivismo), e ocasionalmente o trabalho de um escritor talentoso distorcido por todo esse disparate. Certos mestres destroem o teatro do seu interior, arrebentando as velhas formas, elaborando novas teorias para o trabalho teatral; para prosseguir com o resgate eles apelam à biomecânica (em si uma excelente ocupação), ao cinema (honra e glória a ele), aos escritores (nada errado com eles), às construções (há algumas até boas), aos automóveis (como não admirar um automóvel?), ao tiroteio (coisa impressionante e perigosa no front), e nem de longe alguma coisa saiu disso tudo.

O teatro e nada mais.

Não apenas isso não é síntese, não é nem mesmo uma mistura legítima.

E não poderia ser o contrário.

Nós, os kinoks, como adversários resolutos da síntese prematura (“só chegaremos à síntese no zênite das realizações!”), entendemos que é inútil misturar migalhas de realizações: os pequenos simplesmente desaparecerão em meio à desordem e à falta de espaço. E no geral:

A arena é estreitíssima. Venham, por favor, à vida.

É lá que nós trabalhamos – nós, os mestres da visão, os organizadores da vida visível, armados com o cine-olho onipresente. É lá que trabalham os mestres da palavra e do som, os mais hábeis montadores da vida audível. E eu me atrevo a dar-lhes o onipresente ouvido mecânico e megafone – o rádio-telefone.

Ou seja:
as cine-atualidades,
as rádio-atualidades.

Prometo angariar um desfile dos kinoks na Praça Vermelha no dia em que os futuristas lançarem o primeiro número da montagem de rádio-atualidades.

Não se trata de atualidades da Pathé ou Gaumont (crônicas jornalísticas), nem mesmo do Kino-pravda (atualidades políticas), mas de verdadeiras atualidades kinoks – uma pesquisa impetuosa de eventos visuais decifrados pela câmera, pedaços de energia real (em oposição ao teatro) unidos através de intervalos a um todo tectônico pela grande arte da montagem.

Essa estruturação do objeto fílmico permite desenvolver qualquer tema, seja ele cômico, trágico, de trucagens ou de outra ordem.

Trata-se inteiramente de uma questão da justaposição particular de detalhes visuais, de intervalos.

A extraordinária flexibilidade da construção da montagem permite introduzir no estudo do filme qualquer motivo – político, econômico ou de outra ordem. Consequentemente:

    de hoje em diante não serão mais necessários dramas psicológicos ou policiais no cinema;

    de hoje em diante produções teatrais adaptadas para o cinema não serão mais necessárias;

    de hoje em diante Dostoiévski ou Nat Pinkerton não serão mais adaptados para o cinema;

    tudo está incluído na nova concepção das atualidades. Entram decididamente no turbilhão da vida:

    1. o cine-olho, que desafia a representação visual do mundo dada pelo olho humano e que propõe seu próprio “eu vejo”, e

    2. o kinok-montador, que organiza os minutos da estrutura da vida, vista desse modo pela primeira vez.



Notas:


[1] Um grupo de formulação de políticas próximo dos kinoks, a equipe de colaboradores de Vertov. O Conselho articulou os projetos e imperativos de Vertov através de declarações e manifestos. Presume-se que o grupo tenha sido composto por Vertov, Mikhail Kaufman, seu operador de câmera e irmão, e Elizaveta Svilova, editora e esposa de Vertov. Georges Sadoul, em Histoire générale du cinéma: L’art muet, 1919-1929, adiciona ao Conselho um pintor chamado Belyaev. [N.T.]

[2] Em russo o filme narrativo ficcional é chamado de “artístico” em oposição ao “documentário”.

[3] N.P.E. é o acrônimo da Nova Política Econômica instituída em 1921, após o período do comunismo de guerra, que visava estimular a economia da União Soviética. A ênfase da Nova Política Econômica na demanda do mercado e nas exigências do mercado levou-a a fazer concessões à agricultura privada e a reordenar muitos aspectos da industrialização do país. Ela criou igualmente uma classe de intermediários para organizar a troca entre a produção e o consumo dos centros urbanos e do interior. Os empreendimentos especulativos dos homens da N.P.E., que envolviam lucros rápidos e altos, são frequentemente aludidos por Vertov em sua condenação dos efeitos de um renascimento das normas e práticas burguesas dentro da indústria cinematográfica.


(Republicado em Annette Michelson [org.], Kino-eye: The Writings of Dziga Vertov, pp. 11-21. Berkeley: University of California Press, 1984. Traduzido por Valeska G. Silva e Bruno Andrade)

 

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