OTHON, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, 1969-1970
Corramos o risco de nos lançarmos no cinema sem esperar permissão: inventemos os nossos próprios critérios, fiemo-nos apenas na crítica selvagem, cuja existência é uma realidade. E somos já muitos a acreditar apenas nela. A ler nos cartazes, nos programas, os nomes de Dreyer ou de Straub e a ir vê-los. São exatamente esses que a crítica nos proíbe de ver. Uma razão a mais para vê-lo.
Em 1964 uma das obras-primas do cinema, Gertrud (Carl Theodor Dreyer, 1964), foi morta e enterrada (oito dias de exibição em Paris) pela crítica. De quem é a responsabilidade? É vossa, que acreditou no que dizia a crítica. Agora é tarde demais.
Atenção! Othon[1], quinto e último filme de Jean-Marie Straub[2], estreou no dia 13 de janeiro em Paris. Você tem quinze dias para ir vê-lo. Decorrido esse prazo, se a “rentabilidade” do filme não atingir uma determinada cifra, Othon abandonará as salas, abandonará vocês. Atenção! É difícil acreditar que os críticos profissionais sejam capazes de julgar Othon. Certamente não podem ouvir nem ver, nem mesmo entender nada do projeto e do trabalho de Straub. Pois se trata aqui de um cinema que não reconhecerão. Da inteligência de um texto de uma pureza tal que não a reconhecerão. De uma liberdade, concedida a eles sem qualquer recurso, da qual fugirão.
Dirigimo-nos a desconhecidos, não sabemos como irão reagir ao filme de Straub, nossa única intenção ao falar-vos de Othon é tentar evitar que ele tenha o destino de Gertrud.
Eu, Marguerite Duras, vejo que Othon foi exumado da sepultura em que jazia desde 1708, e que Straub recuou no tempo para encontrá-lo no seu estado nascente. Vejo milagrosamente o homem de Rouen encolerizado com o poder a escrever com essa cólera. Compreendo que não é por acaso que esta tragédia só tenha sido representada trinta vezes entre 1682 e 1708 na Comédie-Française, e que ela põe em cena o poder e as suas contradições internas. Ignorava-o. Acreditava que Corneille, Shakespeare e Racine (à parte Bérénice, de Planchon) dormiam na poeira do tempo, na repetição sempiterna da cultura e que já não era mais possível escutá-los nem vê-los. E quando vi Othon, a violência da proposta é tal que me esqueci de Corneille e de Straub. Foi a primeira vez que me sucedeu isso.
Dizer de uma obra que ela é obscura ou que é uma obra-prima de transparência é um desastre estritamente equivalente para a obra e sobrecarrega igualmente o texto de um a priori que impede a relação do leitor com a obra. A obra encerra-se em si. E o mesmo acontece com o espectador. Straub abriu as portas dessas duas prisões. Othon se apresenta livre de todas as visões que precederam a vossa. O espectador de Corneille não está habituado a esta liberdade. E é justamente esta liberdade que lhe é consentida o que chamaremos de dificuldade do projeto de Straub. O texto não é lido aqui com o intuito de agradar. Não está nem bem dito nem mal dito: encontra-se no estado de leitura interior. A versificação não é aqui inflação, embriaguez ou gargarejo do orador.
O texto é desenvolvimento dialético, ritmo respiratório, espaço em branco. E isto leva-nos a pensar que o teatro está presente em todos os lugares em que é declamado para ser dito. E que sob os textos políticos aparentemente menos versificados, como os de Saint-Just ou Marx, bate em surdina o batimento do contrabaixo corneliano. Aqui todos os tons são permitidos, exceto o da Comédie-Française, ou seja, o da camuflagem do sentido, o da autoridade. Aqui, o enquadramento é o da palavra. O cerimonial herdado da tragédia e a ênfase do gesto desaparecem; não há nada inútil, tudo é eficaz. A universalidade do sentido é reencontrada. Straub partiu através do tempo em busca de Corneille. Ele rompeu o vínculo da tragédia com o seu impacto histórico literal, estabelecido de uma vez por todas pela cultura racionalista.
Em outras palavras, devolveu-lhe o seu impacto subversivo. Extraordinário trabalho de saneamento, de ressurreição. Um crime foi cometido contra Othon durante três séculos. Eis aqui um Othon rejuvenescido. A subversão existe dentro e fora. O filme foi rodado na atualidade e isso se vê. No monte Palatino, em Roma, em 1969. Esta altitude desempenha um papel no espaço e no tempo. O espaço cênico é delimitado pela circulação automóvel da Roma contemporânea: este imperturbável movimento que pouco a pouco se converte em um movimento puro, qual rio ou tapete de lava. Ouvimos esta circulação intensa. Aliás, existe algum lugar onde não a escutaríamos durante a leitura do texto? Tratar-se-ia de uma situação falsa se não a ouvíssemos paralelamente ao texto. Não existe mais um espaço sagrado intemporal. É necessário ler Corneille na atualidade ou não fazê-lo em absoluto.
O poder denunciado existe aqui como os automóveis. Como diz Lacus, e como diz qualquer homem de governo de qualquer época: “Construamos a nossa segurança e zombemos do resto. Não pensemos no bem público se ele se nos tornar funesto. Vivamos apenas para nós e pensemos apenas em nós”.
Sob a capa de chumbo desse poder um homem livre leu Corneille: Straub.
Notas:
[1] O título exato e completo do filme, que se inspira fielmente na peça de Corneille, é: Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer, ou Peut-être qu’un jour Rome se permettra de choisir à son tour (Os olhos não querem sempre se fechar ou Talvez um dia Roma se permita fazer sua escolha).
[2] Jean-Marie Straub é francês. Os filmes que fez (dentre os quais Crônica de Anna Magdalena Bach [Chronik der Anna Magdalena Bach, 1967-1968], estreado em Paris) são de nacionalidade alemã. Straub, tendo se recusado a participar na guerra da Argélia, foi obrigado a se exilar. O exército ainda está no seu encalço. Tem 38 anos. Essa é a condição daquele que muitos de nós consideramos como o maior cineasta da atualidade.
(Politique-Hebdo, 14 de janeiro de 1971. Traduzido por Bruno Andrade) |
2016/2021 – Foco |