O MOVIMENTO DAS COISAS, Manuela Serra, 1978-1985
por Pedro Faissol



O movimento das coisas é um filme quase esquecido. Graças a uma exibição em 2004 na Cinemateca Portuguesa (exibição acompanhada de um belo texto de João Bénard da Costa), assim como ao importante trabalho de resgate realizado por Ilda Teresa de Castro, o filme ganhou um fôlego a mais nos anos 2000 – e mais recentemente parece estar sendo muito reconhecido entre os cinéfilos portugueses.

O filme da cineasta portuguesa Manuela Serra, o único de sua carreira, poderia figurar no panteão dos grandes filmes dirigidos por realizadores de um filme só. Assim como fizeram no passado Mário Peixoto e Curzio Malaparte (e como posteriormente faria Alain Cuny), Manuela Serra realiza um único e grandessíssimo filme: Limite (1930-1931), O Cristo proibido (Il Cristo proibito, 1951), O movimento das coisas e L’annonce faite à Marie (1989-1991) são, de fato, filmes únicos.

O conturbado processo de produção parece ser também uma constante entre realizadores de um filme só. No caso de O movimento das coisas, as dificuldades de financiamento provocaram longas paralisações (razão pela qual o filme, inicialmente filmado em 1979, foi lançado apenas em 1985). Segundo Manuela Serra, a euforia do pós-25 de abril – que de fato alavancou a produção documental nos anos 1970 em Portugal – não provocou mudanças significativas para as cineastas mulheres. Além da conjuntura desfavorável, a posterior dissolução da cooperativa Virver (de que Manuela fazia parte) também atrapalhou na captação de recursos para a finalização do filme. As mesmas dificuldades de financiamento que assombraram O movimento das coisas na década de 1980 a impediram de dar continuidade, já na década de 1990, ao seu projeto posterior (intitulado provisoriamente de Ondas ou Ondulações – ou ainda O movimento das ondas).

O filme de Manuela é fruto da percepção de que algo estava prestes a mudar nos pequenos vilarejos rurais situados no norte de Portugal. Com a iminente adesão de Portugal à União Europeia, pressentia-se uma virada tecnológica que atingiria em cheio as práticas agrícolas – assim como os rituais que davam corpo e sentido a essas práticas. No final da década de 1970, havia ainda em Portugal inúmeras comunidades quase autossuficientes, dotadas de um estilo de vida muito particular. Em comparação com as áreas rurais de países já tomados pela industrialização (como a Bélgica, por exemplo, cuja agricultura – segundo Manuela – parecia “plastificada”), o norte de Portugal mantinha ainda pequenas aldeias com práticas e ritos ancestrais que refletiam uma mitologia coletiva riquíssima. “Parecia que todo o norte [de Portugal] tinha sido guardado”, diz Manuela Serra em entrevista a Ilda Teresa de Castro.

Diante dessa morte anunciada, Manuela Serra vai até um desses vilarejos com o intuito de registrar a vida em comunidade dos seus habitantes. O lugar escolhido é Lanheses, situado na província do Minho, às margens do rio Lima. O desejo de fixar no tempo algo que já dava sinais claros de declínio justifica a qualidade documental do filme. O impulso retratista parece estar no cerne do projeto estético de O movimento das coisas. Pode-se dizer que o filme, em sua integridade, é fruto do desejo de retratar a cidade. O retrato de Lanheses se dá em dois níveis que se cruzam e se complementam simultaneamente. Num primeiro nível, o registro se caracteriza pela atenção dada às práticas conservadas por seus moradores. Por “práticas”, nos referimos tanto às práticas agrícolas artesanais (da colheita, do plantio, do preparo etc.) como às práticas festivas e mitológicas (festa do milho, mercado de pulgas, missa de domingo, toque de sinos para cerimônia fúnebre etc.). Como consequência direta da proposta de retratar três dias seguidos (sexta-feira, sábado e domingo) na vida dos moradores desse vilarejo, esses rituais são reservados para a segunda metade do filme, no final de semana, formando assim a estrutura da obra: das práticas agrícolas às ritualísticas. Ou seja, a estrutura do filme não é fruto de um pensamento prévio que procura dar forma ao filme, mas antes consequência direta da própria dinâmica semanal da cidade.

Em um segundo momento, num nível mais interiorizado, pode-se dizer que a veia retratista de Manuela Serra se manifesta também na forma do filme. Parece haver no interior de cada plano (em cada zoom, em cada movimento de câmera para os lados, na entrada de cada ator em cena, na precisão mecânica de cada corte) um desejo de equivalência com o próprio ritmo da cidade. A dinâmica particular de Lanheses parece ser estranhamente incorporada à forma do filme. A atuação de Manuela Serra, nesse sentido, é aqui mais ostensiva. Já não se trata de uma câmera observacional, devotada às ações dos moradores, mas uma mise en scène empenhada em oferecer ao espectador a respiração secreta da cidade, o sopro de vida que move seus habitantes. A maestria de Manuela Serra como montadora se revela aqui tão afinada quanto como diretora. Cada panorâmica e cada zoom são cuidadosamente articulados com os movimentos internos dos atores. Cria-se, assim, uma engrenagem muito bem costurada entre todos os elementos da cena (na qual, por exemplo, um corte coincide com a saída de um ator em cena; um zoom out termina no exato momento em que se inicia um movimento interno ao quadro, e por aí vai). Um gesto único, originário de uma mesma intenção, parece ditar todos aqueles movimentos, mantidos em grande simbiose com o espírito compassado de Lanheses.

Como consequência dessa orquestração quase bressoniana, o filme provoca no espectador uma espécie de vertigem. O movimento das coisas é um filme hipnotizante. Não apenas pela trilha de José Mário Branco, leitmotiv do filme, mas pelo uso de uma engrenagem toda concebida para a absorção física do espectador na cena. Trata-se de um filme fincado na terra, trabalhado cuidadosamente com as próprias mãos; em cada zoom, em cada corte, em cada gesto. Nos momentos mais dinâmicos do filme, quando essa orquestração se mantém num nível mais impessoal, o ritmo da montagem encontra a vibração do corpo, e a ordem das coisas se reconcilia com a ordem interior de cada um. Desse encontro surge uma grande paz. O movimento das coisas é uma reconstituição dessa grande paz, nostalgia do presente.


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Três comentários isolados sobre o filme.

Durante o preparo do pão, um pequeno gesto ganha destaque na cena. Após a mistura dos ingredientes da massa, a senhora que prepara o pão usa o suporte de madeira para “abençoar” a fornalha com o sinal da cruz. Num simples gesto, se reestabelece a dimensão sagrada que se atribui ao pão no ato da eucaristia, ao mesmo tempo denotando uma devoção ao alimento nas práticas sincréticas de todo dia. O alimento, aliás, é tratado no filme de forma sempre muito positiva. Manuela filma com muito gosto as refeições dos moradores de Lanheses. Cada refeição em família, jamais mostrada sem a dimensão do preparo, é sempre fruto de uma longa jornada de trabalho. O tempo dedicado ao cultivo/preparo de cada alimento redimensiona o afeto investido no ato de servir uma refeição em família.

Há uma moça que destoa do restante dos moradores da cidade. Essa moça é a Isabel. Seus olhos estão sempre voltados para o fora-de-campo, Lanheses é pequena demais para si. Isabel é cordial com todos, mas seus gestos denotam um não pertencimento ao pequeno vilarejo. Na cena em que Isabel volta do trabalho, Manuela Serra realiza uma operação de fixidez que destoa do restante do filme: o ponto de vista de Isabel, o único de todo o filme, é marcado por um repentino congelamento na imagem. E os planos que vemos a seguir, mediados pelo olhar de Isabel, são de tédio e melancolia. A cidade de Lanheses é apresentada de forma estática, sem justamente aquilo que a caracteriza, o movimento das coisas.

Já no final do filme, vemos a missa de domingo. Ela parece reunir todos os habitantes da cidade. Simultaneamente à missa, não muito longe da igreja, uma montagem paralela mostra alguns barqueiros atravessando o rio, completamente tomado por uma espessa neblina (a bela fotografia de Gerard Collet dá o tom soturno à parte final do filme). Nesse momento, Manuela Serra abandona por completo as referências temporais do filme, e já não se sabe quanto tempo se passou nessa estranha tarde de domingo. A missa é longa, atemporal. Após o término da cerimônia, os moradores saem contentes. Despedem-se e logo voltam para as suas casas. Do alto da torre da igreja, os sinos anunciam o enterro de algum morador. A cidade inteira volta a se reunir, dessa vez para uma cerimônia fúnebre no cemitério de Lanheses. Os moradores rezam em silêncio. Um corte seco nos leva novamente para o rio. No último plano do filme, sob o signo da modernidade, uma usina funciona a pleno vapor. Um zoom out recoloca a usina em relação ao rio. A pequena distância que os separa, assim como o ritual fúnebre que se desenrola em paralelo, prefigura a inevitável morte daquela pequena comunidade.

 

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