O BRAVO GUERREIRO, Gustavo Dahl, 1968
...ou Roma não foi feita em um dia
Não há origem única de Lutas, mas sobre a terra
duas são! Uma louvaria quem a compreendesse,
condenável a outra é; em ânimo diferem ambas.
Pois uma é guerra má e o combate amplia,
funesta! Nenhum mortal a preza, mas por necessidade,
pelos desígnios dos imortais, honram a grave Luta.
A outra nasceu primeira da Noite Tenebrosa
e a pôs o Cronida altirregente no éter,
nas raízes da terra e para homens ela é a melhor.
— Hesíodo, Os trabalhos e os dias
Alex Viany, Paulo Emílio Sales Gomes e Vicente de Paula Araújo: Introdução ao cinema brasileiro, Cinema: trajetória no subdesenvolvimento e A Bela Época do cinema brasileiro. Nesses três historiadores de nosso cinema e em suas respectivas obras há um relato em comum, acerca dos primórdios da produção nacional, que salta prontamente aos olhos e à imaginação. Trata-se de uma espécie de centralidade conferida ao papel exercido pelos filmes ficcionais que recriavam crimes violentos, praticados principalmente na cidade do Rio de Janeiro, filmes hoje inexistentes (praticamente nada da “Bela Época” descrita por Vicente Araújo sobreviveu ao tempo). A partir desses autores, esses filmes traçam, contudo, uma espécie de paradigma central na historiografia do cinema brasileiro e constituem um objeto especulativo privilegiado.
Ora, se a taxativa e repetida ad nauseam característica atribuída por Paulo Emílio ao nosso cinema – “a incapacidade criativa de copiar” – tem lá seu fundo de verdade, essas recriações ficcionais de crimes violentos que marcaram a sociedade carioca no início do século XX deviam se relacionar de um jeito no mínimo furtivo com as formas de circulação cinematográfica da época, bem como com a própria realidade do país. Algo como uma influência direta recebida de uma característica central do cinema europeu da primeira década – como a recriação de fatos histórico-sociais marcantes (cf. O assassinato do duque de Guise [L’assassinat du duc de Guise, Charles Le Bargy e André Calmettes, 1908]) – rebatida por um gosto muito local pelas tragédias irrompidas seja nos estamentos mais baixos, seja nos estamentos mais altos da sociedade. Eventos que não necessariamente mudariam o rumo da história, muito pelo contrário: não teriam importância alguma, a não ser pelo fato de marcarem uma suspensão abrupta do cotidiano. Um gosto pela violência que irrompe sub-repticiamente, tentando ainda ser captado por uma linguagem cinematográfica muito distante do Modo de representação institucional definido por Noël Burch.
Dentro do cinema brasileiro moderno, a associação imediata que se faz a esses filmes hoje perdidos talvez seja os filmes que Júlio Bressane rodou logo que foi para o exílio. Amor louco (1971) e Memórias de um estrangulador de loiras (1971) retratam justamente uma série de assassinatos – tão ao gosto dos tabloides sensacionalistas – perpetrados por um serial killer em Londres. Os filmes (principalmente Memórias de um estrangulador de loiras) possuem traços formais muito próximos de uma obra estrutural: os assassinatos se repetem continuamente e quase que ininterruptamente. Possuem também uma série de filiações formais diretas com o primeiro cinema (planos organizados em tomadas únicas, sem muita delimitação espacial para a interação entre os atores e o quadro; deslocamentos espaciais abruptos, evitando a montagem em raccord e mais uma série de elementos já apontados por Burch), um traço estilístico e temático que perpassa boa parte da obra de Bressane. Nessa constante repetição, ensaia-se um perpétuo deslocamento da relação entre o gestual e o próprio sentido da violência posta em circulação em tais atos. Mais uma vez, voltemos a Noël Burch. A aproximação entre o primeiro cinema (ou o Modo de representação primitivo, como prefere o autor) e o cinema de vanguarda dos anos 1960 parece, sem ser forçada, um tanto quanto evidente. A forma como se organiza o espaço da encenação, a noção de tempo, a noção de espaço: tudo remete à mesma desmesura, à atenção e à separação ainda não organizadas pelo Modo de representação institucional, sendo, assim, a coincidência entre a temática da violência incontrolável e os próprios procedimentos formais, nesses filmes de Bressane, mais um coincidente indício histórico de tal hipótese.
Não é, porém, no Bressane exilado que uma linhagem entre os filmes perdidos sobre crimes brutais, que marcaram a sociedade carioca, parece irromper. Já que estamos no campo da pura especulação (uma vez que o que temos são apenas poucos fotogramas e alguns documentos como recortes de jornais), proponho que o filme que melhor sustenta essa linhagem é O bravo guerreiro, estreia na direção de Gustavo Dahl.
Se tivéssemos que arriscar um único grande tema para o cinema brasileiro moderno, uma possível e justa hipótese seria a impossibilidade de se controlar uma violência histórica que explode dentro daquela conjuntura. As chaves de análise tanto para as personagens quanto para as formas que deram vazão a esse sentimento são vastamente conhecidas. Acerca das primeiras, ficou famosa a clássica figura do intelectual impassível perante o poder. Já das segundas, há uma certa polarização entre alguns filmes que procuraram colocar em uma perspectiva histórica o problema, encaixando-o em interpretações alegóricas, e alguns filmes que partiram para o rompimento e o enfretamento direto do pacto espectatorial, apostando em alguns desdobramentos formais mais complexos que pudessem dar conta de tal fratura. Dentro desse esquema, num primeiro momento, O bravo guerreiro se encaixaria no perfil do filme que lida com o intelectual em crise, dentro da chave interpretativa alegórica (uma releitura em baixa voltagem, quase uma vulgata, de Terra em transe, Glauber Rocha, 1967). Nada mais distante do filme de Dahl, contudo, do que o barroquismo de cunho trágico-shakespeariano que norteia a obra que Glauber lançara um ano antes.
O bravo guerreiro é um filme de corredores, mas não os corredores por onde passam convolutos os líderes políticos no exercício solitário do poder, com a câmera de Dib Lutfi a acentuar os passos de sua inevitável queda. Nos corredores de O bravo guerreiro encontramos geralmente duas figuras a falar. Falam demasiadamente, mas, mais uma vez, nada das falas de verve extremamente poética expressas por Paulo Martins e pelas personagens que orbitam em seu entorno. Aqui fala-se num tom muito mais seco, muito mais didático. As falas adquirem um ritmo tão alucinante quanto as de Terra em transe, mas pela via inversa: trata-se de uma limpidez que adquire seu ritmo como pedras dispostas milimetricamente equidistantes ao longo de uma estrada deserta; sabe-se para onde vão levar, mas é quase inevitável acompanhá-las, segui-las exaustivamente. Nessa excursão pelos corredores do poder é notável também a forma como Dahl imprime o ritmo plástico do percurso. Tudo é tratado sempre a partir de travellings, aproximações e distanciamentos modulados por cortes que trabalham numa chave dicotômica: aceleração/inserção das figuras em grupo ou contexto maior, ou rarefação/isolamento das figuras em relação ao contexto e em choque com o fundo (a cena de abertura na sauna e a sequência da assembleia no sindicato são exemplares). Sempre se falou muito sobre uma certa herança eisensteiniana na obra de Leon Hirszman, principalmente pelo trabalho de choques plásticos na composição de Pedreira de São Diogo (episódio de Cinco vezes favela, Miguel Borges/Joaquim Pedro de Andrade/Carlos Diegues/Marcos Farias/Leon Hirszman, 1962). Não conheço, porém, trabalho mais milimetricamente sofisticado no cinema brasileiro, no que diz respeito a uma composição calcada no choque e no contraponto entre o visual e o sonoro, do que em O bravo guerreiro, de Gustavo Dahl, talvez o mais eisensteiniano de nossos filmes.
As linhas de força que compõem os choques, os quais veremos na circulação por esses corredores, se dissipam a partir de duas personagens: Miguel Horta (Paulo César Pereio) e Augusto (Mário Lago). O jovem congressista que trai o partido radical com fins pragmáticos de concretizar as suas pautas e a velha raposa acostumada aos conchavos do poder. Vale frisar que a personagem de Lago não é um escroque qualquer: ele se reconhece em Miguel – o jovem que ainda não se desprendeu de seus ideais – e ainda sonha em algum dia se aposentar e se mudar para Roma, onde pretende se dedicar à redação de um ensaio sobre Proust. O importante é que em sua habilidade (construída na base de muito cinismo) em circular pelas altas rodas do poder, ele não demonstra um traço sequer da vulgaridade escancarada que encontramos nos outros tipos que também rondam por essas esferas. A violência que Miguel Horta tenta domar – e a qual havia sido escancarada na montagem em paralelo da sequência do estaleiro – explode na cena em que ele rompe em definitivo com Augusto, mais um trunfo de Dahl no trabalho de isolamento progressivo de sua personagem dentro de um determinado espaço, com Augusto/Mário Lago funcionando como uma espécie de freio progressivo (por isso mesmo o seu suposto distanciamento de qualquer vulgaridade do poder) às ambições de Miguel/Pereio.
Se Roma não foi feita em um dia, como salienta a personagem de Lago em determinado momento, a violência que toma forma em O bravo guerreiro também não irrompeu do dia para a noite (como frisara Nelson Rodrigues, subdesenvolvimento não se improvisa). O que supostamente afina, contudo, a violência social que circula no filme de Dahl e o que era dado a ver naqueles filmes sobre crimes violentos no Rio de Janeiro do início do século XX não é uma afinidade eminentemente estilística (como na sugestão dada por Burch, a qual nos permitira traçar uma aproximação com Bressane), mas sim uma propensão em aliar uma técnica nova, eminentemente moderna, e a possibilidade de expressão artística dessa violência numa chave até então interditada a todas as outras artes. Uma sensibilidade estritamente cinematográfica (como havia mencionado, trata-se, aqui, sobretudo da condução temporal e plástica da derrocada encenada, modulada e acentuada pela dureza de uma montagem em contraponto) rebatida por uma urgência do momento em se filmar a violenta tragédia política nacional, mas aqui, sem o recurso à alegoria (como em Glauber) ou aos desdobramentos em choques formais que procuram internalizar e condensar essa urgência (como em Bressane). Mais uma vez: se Roma não foi feita em um dia, apesar de tudo, é a partir da conclusão do Coliseu, por exemplo, que uma série de traços característicos de tal sociedade se organizam de forma inédita, chegando até nós como informação definidora daquele momento. Se todos os traços espúrios da política, os quais embasam a violência social, não foram soerguidos da noite para o dia, é a partir daquela conjuntura histórica que eles ganham uma configuração até então inaudita. O bravo guerreiro não é, nesse sentido, simplesmente um filme “infelizmente ainda muito atual”, é um filme imediato (numa acepção exclusivamente positiva do termo): um homem com uma câmera.
O bravo guerreiro pertence a uma linhagem muito específica e reveladora do cinema brasileiro: a dos filmes que não geraram muitos desdobramentos nem nas obras futuras de seus próprios realizadores, tampouco nas obras de outros. Limite (Mário Peixoto, 1930-1931), O cangaceiro (Lima Barreto, 1953), A hora e a vez de Augusto Matraga (Roberto Santos, 1965-1966), O mundo de Anônimo Jr. (Aron Feldman, 1971-1972), Triste trópico (Arthur Omar, 1974), Forever (Walter Hugo Khouri, 1989-1991): nos menos piores dos casos, criou-se o mito; no resto, o silêncio. |
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