NÓS NÃO SOMOS MAIS INOCENTES
por Jacques Rivette



Rever hoje os filmes de Stiller, Murnau, Griffith arrebata e revela a importância excepcional que os gestos do homem assumem nos processos de todo o universo sensível: o simples ato de beber, de andar, de morrer tem densidade, plenitude de significação e a evidência confusa do signo, sempre transcendendo todas as interpretações e limitações – as quais doravante seria vão procurar no filme; praticamente sozinhos, Vigo e Renoir sugerem assim uma incessante improvisação do universo, uma perpétua, tranquila e segura criação do mundo. O silêncio não explica nada.

O mal começa com os seguidores dos “pioneiros”, com a reflexão sobre o milagre; toda reflexão implica análise – que teve de começar, evidentemente, pelo mais básico: realizam-se filmes de síntese, ainda inexperientes e ingênuos, de onde toda a seiva se esvaiu. A sistematização desajeitada de uma linguagem, de uma sintaxe que Griffith confusamente teve de elaborar para se exprimir, e que era a consequência superficial de seu universo particular, pôs o verme na fruta, que não irá cessar, sob formas sempre mais surdas e sutis, de literalmente desvitalizar o cinema: lenta criação de uma retórica, sempre mais fina e nuançada, mas também mais impiedosamente analítica.

Porque: toda descoberta, a partir do plano único ou do “tableau” dos primitivos, deveria avançar quase sempre no sentido da análise, e mais precisamente da elipse, espacial ou temporal (um close-up é a elipse do contexto espacial); em nome da eminente superioridade da sugestão, a recusa imediatamente sistemática de nada mostrar além do pálido e inofensivo, a fuga em pânico diante do ato vivo, inserido no espaço concreto, e seu tranquilo impudor, comandavam uma fatal e obstinada dissecação do real. O espaço fílmico “decupado”, fragmentado, rapidamente desorientado na acumulação de ângulos raros e divergentes e de movimentos de aparelhos mecânicos, perde toda realidade, toda e qualquer existência; chega-se a um cinema unicamente do tempo, no qual nada existe além da pura duração de uma sucessão de atos sem densidade nem realidade: nascimento da perigosa noção, completamente gratuita, de ritmo e de velocidade – tentando iludir pela substituição da existência e da presença pela acumulação, e esperando criar uma presa a partir de uma multiplicação desenfreada de sombras fugidias.

Um cinema do discurso retórico, onde tudo deve se dobrar às fórmulas usuais e polivalentes, estereotipadas para todos os usos: o universo é capturado e destruído sob um tecido de convenções formais.

Que correspondem cinematograficamente às convenções de razão, e portanto do ser: um universo, marcado pela superficialidade, pela irrealidade, pela atonia, pela ineficácia, pela insignificância, engendrando inevitavelmente a mais completa desconfiança pelas formas convencionais segundo as quais ele aparece; menos ainda que em outros lugares, não há aqui separação entre forma e fundo: o objeto está todo no seu ato de aparecer; premeditação e rotina o condenam automaticamente e sem apelo.

O grande erro parece, então, de uma linguagem corrente, indiferente ao seu objeto, de uma “gramática” válida para não importa qual narrativa; e mais, ao invés de um estilo necessário e necessitado por esta, criado por ela à medida de sua expressão. O realismo não pode ser uma solução se nós o entendemos somente por esta palavra, substituição, dentro dos quadros preexistentes, intercambiáveis e irremovíveis para os signos convencionais (adaptados em suma às suas funções e aos seus contextos) – outros quadros, que valem apenas por referência a um universo outro, não possuem medida comum com aquele na tela. Mas tão somente é realista aquele que se recusa a analisar e dissecar sua visão a priori, seguindo esquemas e bisturis habituais, e ao invés disso a transcreve tal qual e sem intermediário sobre a película, colocando a câmera em contato direto com a sua realidade.

O “fundo”, em seu esforço natural para se exprimir, torna-se forma e linguagem: o organismo vivo não é o informe (mas apenas aquele que é artificialmente animado). Um ato de fé impõe-se: no poder natural, a força vital do universo interior a nascer no mundo sensível e a expressar-se piamente: o fato de passar à existência, à aparência, o formula automaticamente se nenhuma “contrição”, nenhum preconceito, nenhum complexo ou ranço paralisante de retóricas antigas vierem embaralhar o jogo, o campo magnético do milagre natural, e se nenhuma apreensão, nenhuma impaciência, ou falta de fé, fizer tremer a mão que guia a câmera.

Nós perecemos de asfixia e de intoxicação retórica: é preciso retornar a um cinema-transcrição sobre a película: “escrita” simples; fixação do universo e de suas realidades concretas, sem intervenção pessoal da mecânica (pelos níqueis de aborteira, assassina, dissecadora...); inscrever simplesmente sobre o filme as manifestações, o modo de vida e de existência, o comportamento do pequeno cosmo individual; filmar friamente, documentalmente, para que o universo viva; a câmera reduzida ao papel de testemunha, de olho; Cocteau introduziu justamente a noção de indiscrição; o mais claramente. É preciso tornar-se “voyeur”. Os achados visuais surgem sem cessar a partir do momento em que cessamos de procurá-los (“Tu não me encontrarás se me procurares”), pelas associações sucessivas dos fenômenos observados entre eles, e em relação a um olhar do qual eles não suspeitam: eles não agem em consequência deste, mas no seu estado natural.

A personalidade do criador certamente se manifesta, é claro, em sua escolha de ângulos, em seu jogo com a retórica usual, na medida em que aquilo que ele quer mostrar difere de um espetáculo anônimo e necessita, para aparecer por completo, de um olhar novo, mais curioso e livre de preconceitos, que apenas ele saberá dar conta plenamente. E o universo comanda esse olhar, mas o olhar ao mesmo tempo impõe e cria este universo; o universo do criador nada mais é que a manifestação, a florescência concreta de seu olhar e de seu modo de aparecer, esse olhar que é ele próprio aparição do universo.

Convém recordar, ao término de uma análise cujas necessidades internas puderam nos conduzir a uma divisão artificial do real cuja própria existência, absurda e contraditória, não poderia ser diretamente tomada como objeto, mas deve surgir ao término do exame, como seu coroamento natural e sua prova. Universo e olhar, um e outro uma única e mesma realidade; que só existe pelo olhar que temos dela e este, por sua vez, só tem sentido por sua relação com ela; realidade indissociável, onde aparência e aparição são confundidas, onde a visão pode parecer criar a matéria (os travellings de Renoir), como a matéria pode parecer implicar a visão; sem antecedência, nem relação de causalidade. Uma única e mesma realidade com as duas faces confundidas e fundidas na obra criada.

Todo o resto é espetáculo.


Post-scriptum: lugares comuns e verdades primeiras.

O filme é linguagem, claro, e profundamente significativa, mas feita justamente de signos concretos, e não se deixando reduzir a fórmulas; é inútil, parece, relembrar a unicidade do plano, da tomada: captação do instante irremediável. Lá reside a falha de todas as aproximações literárias: gramáticas, sintaxes, morfologias, mesmo que sejam bem-intencionadas. A sistematização negligencia sempre a priori a complexidade da realidade sensível para elaborar essas construções teóricas; não pode haver gramáticas, sintaxes fundadas em uma lei, mas somente rotinas empíricas, generalizações precipitadas em tal meio de expressão: nenhum plano se deixa levar por uma fórmula que não revela imediatamente a riqueza complexa, todas as virtualidades e potências confundidas, que são sua própria realidade e sua existência; no mais, poderemos discernir algumas linhas de força que tendem a orientar, em seguida, certas direções às partículas sensíveis (mas tão imponderáveis quanto) do “campo” magnético. Nada de semelhante às palavras, signos abstratos e convencionais, que se organizam seguindo regras estáveis; o plano permanece sempre do domínio do acidental, do sucesso único e sem retorno; uma frase se reescreve à vontade. As convenções da sintaxe e da retórica são consubstanciais à palavra, e participam da mesma natureza de convenção social para uma compreensão recíproca: a cruzada de Paulhan contra o “terror” literário encontra nesses fatos a sua justificativa. Mas sintaxe e retórica são no filme artificialmente pregadas sobre o vivo, que lhes escapa, ou que elas paralisam, congelam e matam: nenhum Paulhan é aqui concebível; onde a única lei é o Terror. A expressão natural que, em uma linguagem artificial e de convenção, dobra-se às convenções e aos artifícios, exige, nesta linguagem sem lei, a todo o momento improvisada, criada, a todo o momento tentativa aventureira, uma improvisação contínua, uma criação perpétua.


(Bulletin intérieur du Ciné-club du Quartier Latin, janeiro de 1950. Traduzido por Cauby Monteiro)

 

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