PAT GARRETT & BILLY THE KID, Sam Peckinpah, 1973
A lendária vida de William Bonney continua estimulando o cinema. Após os Billy the Kid de King Vidor (O vingador, 1930, com Johnny Mack Brown) e David Miller (Gentil tirano, 1941, com Robert Taylor), Um de nós morrerá (The Left Handed Gun, Arthur Penn, 1958, com Paul Newman), Uma aventura de Billy the Kid (Une aventure de Billy le Kid/A Girl Is a Gun, Luc Moullet, 1970-1971, com Jean-Pierre Léaud) e O pequeno Billy (Dirty Little Billy, Stan Dragoti, 1971-1972, com Michael J. Pollard), agora é Sam Peckinpah quem aborda a saga de Pat Garrett & Billy the Kid (1973, com James Coburn e Kris Kristofferson, respectivamente), a qual já havia fascinado Jorge Luis Borges (“O assassino desinteressado Bill Harrigan”, em História universal da infâmia), pois não em vão Billy the Kid é o mais mítico das personagens do Oeste americano, junto com Jesse James (a quem Henry King, Fritz Lang, Samuel Fuller e Nicholas Ray dedicaram filmes).
A história que narra este filme é conhecida por todos, pois há muito tempo Billy the Kid e Pat Garrett abandonaram a história para se imortalizarem na mitologia. Consequentemente, qualquer espectador de Pat Garrett & Billy the Kid sabe de antemão o que vai acontecer: Billy, o jovem bandido e pistoleiro, vai ser morto pelo seu antigo mentor e amigo, o agora xerife Pat Garrett. Por isso, assistimos a este filme não para inteirar-nos do que foi que aconteceu entre essas duas personagens, mas para assistir, mais uma vez, como a uma cerimônia, ao espetáculo lendário do seu confronto mortal. Não é o quê, mas o como o que importa; não é o evento, mas a representação o que nos interessa. Em última instância, o que queremos é descobrir o sentido, o significado profundo da morte de Billy the Kid pelas mãos de Pat Garrett, não as causas ou as motivações. Não há, pois, intriga nem “suspense” algum, e Peckinpah não pretende criá-los, pois isso seria um absurdo com uma história cujo fim e princípio são de domínio público, e que é – por conseguinte – reversível (de fato, na montagem inicial de Peckinpah, alterada pela M.G.M., o filme iniciava com a morte de Pat Garrett, anos depois de ter assassinado Billy). Nem sequer é um filme própria e classicamente narrativo: sua trama é tão conhecida que não é preciso contá-la, relatá-la minuciosamente. Sobram, por não serem imprescindíveis, a continuidade, as explicações, a apresentação das personagens: Peckinpah, consequentemente, permite-se omiti-las e passa a expor, de forma límpida, as cartas com as quais vai jogar desde a primeira sequência. Nela, durante uma rinha de galos, os amigos alheados reencontram-se. Cenário: um café imundo, em uma aldeia do território do Arizona, na fronteira com o México. Pat pede a Billy para deixar a região, pois esse é o desejo do “povo decente”. Ambos sabem muito bem de quem se trata, e riem da sua suposta decência. Billy pergunta se está sendo pedido ou intimado. “Estou pedindo, mas dentro de três dias eu vou ser o xerife de Lincoln County, e então farei você ir”, retruca Pat. Billy o repreende por ter se vendido a Chisum, o poderoso fazendeiro que no passado também perseguiu Pat. Mas Pat Garrett já está velho, está cansado, já cedeu; sem muita convicção, com melancolia, e não sem constrangimento, desculpa-se: “É como se os tempos tivessem... mudado.” Ao que Billy, sem pensar, como um adolescente que se recusa a aceitar o peso da realidade e a passagem dos anos, responde: “Os tempos, talvez... mas eu não”.
Temos, portanto, o confronto de dois homens que foram amigos, que cavalgaram juntos e que juntos foram perseguidos, que uma vez – ou várias – se salvaram um ao outro, e que agora, ao reencontrar-se novamente após uma separação mais ou menos prolongada, descobrem que compartilham um passado – que Pat quer esquecer, e ao qual Billy se agarra –, mas não o presente em que ambos, cada um a seu modo, lutam para sobreviver. Para os dois – embora Billy se recuse a reconhecê-lo, e Pat, ao contrário, o admita com tristeza para se autojustificar – os tempos mudaram, o tempo deles já passou, seja porque o progresso, a civilização, a lei, a guerra, o capitalismo, os novos conceitos sociais os ultrapassaram e os expatriaram de seu tempo, seja porque envelheceram ou porque, pelo contrário, não souberam amadurecer, tornarem-se adultos. Em todo caso ambos se sentem, se não caducos e anacrônicos, já com as horas contadas: já não têm mais lugar nenhum no mundo, ou pelo menos não têm o seu velho lugar no seu velho mundo. Como os últimos dinossauros, são meros sobreviventes. São deslocados, prestes a perder, estão cansados ou acossados, encurralados pelo tempo ou pela sociedade. Começam a compreender que a história não para: ambos pensam em se aposentar, em dar o último golpe, em mudar de vida. Mas, pela força das circunstâncias, ou pelo seu próprio caráter, ou sua maior experiência, um deles acabou sendo mais rápido em mudar, deixou-se levar pela corrente dos novos tempos opondo-lhe menos resistência, ou se tornou mais descomprometido e renunciou aos seus princípios, seus ideais ou seus instintos vitais. Esses dois sobreviventes fraternos se enfrentam precisamente porque se conhecem, porque a existência do outro constitui por si só um opróbrio e uma recordação da falsidade ou da falta de sinceridade da sua própria atitude, e porque um deles – mais ou menos voluntariamente – traiu a amizade que os unia quando os dois eram ainda verdadeiramente eles mesmos. Um deles morrerá, aquele que sempre – para a sua desgraça – se resignou menos ao curso da história e se converteu, de uma forma ou de outra, em um anacronismo vivo. E o outro, no fundo, também morrerá – se não conseguir renascer assumindo uma nova causa que o redima –, ao menos moralmente.
Este drama, de ressonâncias universais, não é exclusivo do western (Um ninho de nobres de Turgueniev, O duelo de Tchekhov, O leopardo de Lampedusa e Visconti [Il gattopardo, 1963], ou The Unvanquished de Faulkner, não abordam outro tema), mas encontrou nele terreno fértil, de Duelo ao sol (Duel in the Sun, King Vidor, 1946) e Homem sem rumo (Man Without a Star, King Vidor, 1954-1955) a Rio Vermelho (Red River, Howard Hawks, 1946-1948) e O homem do Oeste (Man of the West, Anthony Mann, 1958). Com as nuances e a estrutura dualista enunciada acima, esta abordagem da tragédia, a de Pat Garrett & Billy the Kid, acaba servindo também para descrever Pistoleiros do entardecer (Ride the High Country, 1962), Juramento de vingança (Major Dundee, 1964-1965), Meu ódio será sua herança (The Wild Bunch, 1969) e até mesmo – em chave de comédia, com menos dramatismo, quase sem violência – A morte não manda recado (The Ballad of Cable Hogue, 1969-1970); ou seja, os outros quatro westerns magistrais do seu autor (não conheço O homem que eu devia odiar [The Deadly Companions, 1961], seu primeiro filme, também pertencente ao gênero que mais lhe inspira). Mas essa semelhança serve não apenas para constatar a importância desse tema para Peckinpah (visto que lhe dedicou a maior parte de sua obra), mas para dar mais relevo às diferenças que existem entre filmes tão claramente aparentados. Por exemplo, é importante notar que Billy the Kid é, de todas as personagens centrais de Peckinpah, a que morre mais jovem, aos 21 anos, enquanto Pat Garrett chega vivo aos 50 anos e Gil Westrum, Steve Judd, Amos Charles Dundee, Benjamin Tyreen, Deke Thornton, Pike Bishop, Cable Hogue e Joshua Duncan Sloane variam entre 30 e tantos e os 60 e vários anos. Deve também ser recordado que, com a exceção de Tyreen contra Dundee, até Pat Garrett & Billy the Kid costumavam morrer antes os mais velhos. Ainda por cima, é significativo que todas as mortes mencionadas – exceto a de Tyreen, em 1865, mas no rescaldo de uma guerra civil – ocorreram no início do século XX, enquanto a de Billy aconteceu em 1881 – ou seja, antes, quando o progresso ainda não tinha avançado muito, quando a fronteira ainda estava ao norte do Rio Grande e ao leste das Montanhas Rochosas, quando algumas tribos indígenas ainda se mantinham insubmissas e em pé de guerra, quando o Arizona era ainda um território e não um estado da União, quando ainda haviam veteranos do exército confederado que não aceitavam a derrota do Sul, quando se recordavam os ataques dos guerrilheiros de Quantrill, quando ainda faltava um ano para que Jesse James fosse assassinado traiçoeiramente por Bob Ford. Ou seja, quando Billy the Kid é assassinado pelo seu velho amigo Pat Garrett – seu mestre e cúmplice tornado perseguidor e inimigo descontente com sua missão –, não há guerra, não existem carros, ele não é velho ainda; ou seja, não há causas, não há desculpas para a sua morte, salvo a própria essência do drama representado, o drama existencial de toda a obra de Peckinpah: o fim da fronteira, o estreitamento dos horizontes vitais, o cerco ao individualismo e o declínio da anarquia.
Não devemos nos surpreender com o interesse que Peckinpah sente pelas guerras civis (a da Secessão nos Estados Unidos, as da Revolução Mexicana, as que enfrentam brancos e índios), pois elas tendem a representar uma extensão do conflito latente entre as duas personagens opostas, simétricas e complementares em torno das quais se estruturam seus melhores e mais característicos filmes (incluindo, dentro do western moderno, e em termos muito gerais, o muito triste e notável Dez segundos de perigo [Junior Bonner, 1972], através da oposição entre Steve McQueen e seu irmão no filme) por todo um país, um território ou uma sociedade. O conflito entre o Norte e o Sul, entre Dundee e Sierra Charriba e entre os camponeses mexicanos e os lanceiros franceses de Maximiliano são apenas uma expressão mais abrangente do duelo que afrontam Dundee e Tyreen. Mas em Pat Garrett & Billy the Kid Peckinpah despojou o filme de todo drama que não está enunciado no título: dessa forma o sentido da tragédia é desnudado, mais evidente do que nunca, uma vez que não são causas externas as que limitam e põem um fim à vida de Billy, mas a sua própria atitude em relação à existência e à alternativa que lhe sobraria caso se entregasse: a de corromper-se e se tornar um Pat Garrett. Pode-se argumentar contra Pat Garrett & Billy the Kid que Peckinpah se repete, que tudo isso já nos havia sido contado e já tinha sido o objeto de suas reflexões, talvez com uma ressonância mais abrangente, com uma maior complexidade (Meu ódio será sua herança, Juramento de vingança), ou de forma mais discreta (A morte não manda recado), ou mais clássica (Pistoleiros do entardecer). Mas é que nesse mais ou menos reside a novidade essencial de Pat Garrett & Billy the Kid em relação aos outros westerns de Peckinpah: no fato de que este último filme já é outra coisa, não é propriamente um western, mas a dissolução do western, o estertor agônico – e o último sobressalto, mas já desregrado, ressequido, descarnado – do gênero; daí o barroquismo espontâneo de certas composições, dos jogos de luzes e sombras e cores (nuvens carregadas, chuva suave, crepúsculos, árvores retorcidas como não se viam desde Duelo ao sol, madeira seca, paredes deterioradas ou carminadas pelo sol poente, atitudes crispadas) que compõem os planos exageradamente longos deste western fantasmagórico e fúnebre; daí também o ritmo lento, majestosamente dilatado – por dispersão narrativa, por reiteração ritualizada das mesmas situações –, de lânguidos e tristes blues, que se corresponde fielmente com a admirável trilha sonora de Bob Dylan. É o western que, antes de ser definitivamente desmantelado e acuado, veste-se com as suas melhores roupas para se despedir; é o western moribundo, o ponto final, a certidão de óbito. Por isso, Pat Garrett & Billy the Kid é, para mim, um dos filmes mais comoventes, mais angustiantes e mais lúcidos que existem, e por isso é um filme estranho e desconcertante.
Essa confusão, essa frustração que logicamente Pat Garrett & Billy the Kid tende a provocar provém, em primeiro lugar, do fato de que – coisa rara no gênero – não há narração, quase nenhuma ação, e muito pouca verossimilhança naturalista (dentro do campo restrito que tem o naturalismo no western). Aqui tudo é comentário, reflexão, mito; em uma palavra, forma. Esse altíssimo grau de formalização que pode ser verificado no último Peckinpah obedece, precisamente, ao fato de que do western somente sobrevivam as formas, os signos, os iconogramas (alguns de grande potência: “igreja, cadafalso, bandeira americana”, “crianças balançando na forca do cadafalso que foi ereto para Billy à sombra da bandeira”). Cada plano possui uma beleza singular e dilacerante, com uma cor ainda mais “antiga”, mais física e desgastada do que em Juramento de vingança ou Meu ódio será sua herança (devido ao genial fotógrafo inglês John Coquillon), e sua acumulação lenta e monótona (sem dar a este adjetivo seu habitual sentido pejorativo) não faz a ação progredir, mas acumula patéticos testemunhos da decadência e da desintegração dos bunches, da traição, do abandono, da solidão e da violência insensata e absurda, da aterradora tristeza da morte (de cada morte, que apaga, abre um vazio, devasta, mas especialmente as de L. Q. Jones, Slim Pickens, Jack Elam, Kris Kristofferson), da amarga ironia que encerra o ter que matar ou morrer, da cega e onipresente ameaça dos pistoleiros de Chisum, da mais total desolação que tudo corrói (o amor de Billy e María, o último olhar de Rita Coolidge, o velho que continua falando sozinho; Billy que cai assassinado por Pat, que logo depois defende o seu cadáver e o vela na cadeira de balanço da varanda, até que ao amanhecer vai embora sozinho e de mãos vazias enquanto as crianças lhe atiram pedras). É um filme não apenas alheio, mas inclusive contrário a toda trepidação espetacular (sobretudo quando é vazia, como a de Os implacáveis [The Getaway, 1972]), mais próximo, portanto, da fatigada melancolia de Dez segundos de perigo, mas conservando ainda as ruínas do vigor de Meu ódio será sua herança: todo o filme é como o final de Meu ódio será sua herança, desde a chegada de Deke Thornton ao cenário do massacre até ele se levantar da terra poeirenta para ir com o velho Sykes para lutar por uma nova causa, só que em Pat Garrett & Billy the Kid já não há sequer a alternativa de ir para o México (Billy encontra Paco – Emilio Fernández, o Mapache de Meu ódio será sua herança – torturado até a morte, e desiste de cruzar a fronteira do Rio Grande). É por isso que o filme parece ir sangrando pouco a pouco, tornando-se cada vez mais grave, taciturno, sério, pessimista, desesperançado. As mortes não são “impressionantes” (Sob o domínio do medo [Straw Dogs, 1971]) nem “divertidas” (Os implacáveis), mas terrivelmente tristes e dolorosas: a canção Knockin’ on Heaven’s Door (por Dylan) toca enquanto L. Q. Jones agoniza lentamente, crivado por Coburn, e Slim Pickens, mortalmente ferido, afasta-se (começa a chover) em direção ao fundo do plano, para morrer no rio, perplexo, com um sorriso para sua esposa (Katy Jurado), que chora; Jack Elam e Kris Kristofferson desafiando-se contra suas vontades, obrigados pelas circunstâncias, sabendo o primeiro que irá morrer, e o segundo que irá matá-lo; etc. Essa melancolia também explica que Pat Garrett, afundado na indignidade, conserva ainda um resto de dignidade ferida que o faz desprezar os seus colegas (“Este país está envelhecendo e eu envelhecerei com ele”, esclarece ao detetive Poe, para manter as distâncias), e que, no fundo, seja mais afortunado Billy – que morre amado por María, e quando ele ainda tem alguma confiança na amizade – do que Pat Garrett – cujo horizonte, ao fim do filme, reduz-se a esperar que lhe chegue a morte, porque já não há nada que justifique a sua sobrevivência.
Post-scriptum
Por falta de mais espaço, não foram abordadas neste comentário várias questões de indiscutível interesse suscitadas pela visão de Pat Garrett & Billy the Kid, e entre as quais caberia mencionar, sumariamente, as seguintes:
a) O uso do “ralenti” (câmera lenta) em todos os seus filmes posteriores a Juramento de vingança – embora seja muito provável que já recorresse a esse procedimento questionável nos seus telefilmes anteriores – variou entre o aparentemente funcional e significativo (Meu ódio será sua herança) e o puramente arbitrário e floreado (Dez segundos de perigo) ou extravagante (Os implacáveis), passando pelo rotineiramente sistemático (Sob o domínio do medo), mas não há dúvida de que sua adesão a um procedimento tão exterior e óbvio como o “split screen” (divisão de tela ou tela múltipla) de A morte não manda recado, ao não ser jamais imprescindível – e se, por outro lado, é frequentemente desnecessário e pleonástico – revela no emprego feito por Peckinpah uma falta de confiança, de segurança e de rigor inimagináveis em Ford, Hawks ou Walsh, e até mesmo em Ray, Mann ou Boetticher, e constituem, portanto, o sintoma de uma limitação ou de uma falta de maturidade que Pistoleiros do entardecer, apesar de alguns movimentos de câmera ou mudanças de plano muito manifestamente significativas, não permitia temer. No entanto, e embora – para mim – continuem supérfluos, os “ralenti” de Pat Garrett & Billy the Kid são mais discretos e, sobretudo, melhor integrados na absoluta estilização do filme que em qualquer uma das ocasiões anteriores.
b) O tratamento absolutamente lendário e mitológico conferido por Peckinpah à sua narração de eventos históricos, mas incertos, tem um claro precedente no que Nicholas Ray tentou fazer – e só alcançou em parte, devido à companhia produtora, que insistiu em dar ao filme uma abordagem oposta – em Quem foi Jesse James? (The True Story of Jesse James, 1957).
c) Em estreita relação com o ponto anterior há o fato de que, pela primeira vez no cinema americano, Billy the Kid não é nem um herói do tipo Robin Hood, nem um vilão, nem um neurótico, mas sim, apesar da idade que pode aparentar Kris Kristofferson – mas não da que se costuma atribuir ao Billy histórico –, um adolescente colérico, um homem que não soube e/ou quis deixar de ser um adolescente, e que – consequentemente – é ao mesmo tempo tímido e agressivo, introvertido e exibicionista, ingênuo e desesperado, violento e suave, desajuizado e cauteloso, imprudente e covarde, irresponsável e vítima de um complexo de culpa, sexualmente ambivalente (Garrett, as prostitutas mexicanas, a quadrilha, María) até certo ponto, lúcido e inconsciente, cínico e idealista (nunca matará Garrett porque é – ou foi – seu amigo), audacioso e submisso, rebelde e conformista; instável, em suma, e emocionalmente desequilibrado, sem dúvida, mas não por causa de condições sociológico-familiares ou psiquiátricas, mas sim enraizadas na sua falta de maturidade e na época histórica que lhe coube viver: como Arthur Rimbaud, Georg Trakl, Paul Verlaine, Piotr Tchaikovsky, Ludwig II de Baviera, Jesse James etc., Billy the Kid foi um romântico tardio, e não sendo rei, nem artista, nem pirata, nem general, nem um revolucionário, o banditismo e o pistoleirismo acabaram sendo a sua forma de vida e de expressão.
d) As relações de simetria e de complementaridade mencionadas na crítica entre as duas personagens estão refletidas, mais do que em qualquer outro filme de Peckinpah, em Pat Garrett & Billy the Kid, não apenas tematicamente (sob as ordens de Chisum, Billy foi a lei, perseguindo Garrett; agora é Garrett quem, convertido em xerife de Chisum, persegue Billy), mas também visualmente: após assassinar Billy – sem lhe dar uma oportunidade, com a frieza e a falta de entusiasmo de um executor ou de um algoz profissional –, Garrett dispara contra a sua própria imagem refletida em um espelho: este ato é, ao mesmo tempo, uma tentativa de cegar-se à desagradável realidade (não ver-se como o assassino de seu amigo), uma forma de rechaçar sua própria imagem (a do pistoleiro que foi e já não quer ser) e o seu passado (do qual tanto Billy como o que vê refletido no espelho fazem parte), e uma espécie de suicídio metafórico.
e) Valeria a pena estudar a fundo a semelhança existente entre o que faz Peckinpah neste filme com o western tradicional e o que faz Bob Dylan na trilha sonora do mesmo com a música folk tradicional, bem como a perfeita adequação entre essa música – talvez o mais importante LP da música moderna desde Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles – e a montagem baseada nos tempos mortos que Peckinpah – como Godard em Acossado (À bout de souffle, 1959-1960) – utilizou no filme.
f) A misteriosa personagem – Alias – interpretada por Bob Dylan não precisa de maiores explicações para a sua total passividade que o fato de ser reconhecido como Dylan pela maior parte dos espectadores, e que sua função de testemunha – sugerida pelo ofício de linotipista de um jornal, que deixa o seu vilarejo para seguir Billy the Kid – fique evidente na sua música e nas suas canções.
g) A aparição de Peckinpah, nos minutos imediatamente anteriores à morte de Billy, é bastante significativa, dado que se limita a dizer a Garrett, com uma mistura de desprezo, compreensão e compaixão fatalista, ao ver que chega ao refúgio de Billy e que vai matá-lo: “Finalmente conseguiu, hein, Garrett? Vamos, acabe logo com isso”.
(escrito em 1974; originalmente publicado em Ojo al Cine n.º 2, 1975, Cáli, Colômbia, pp. 67-75. Traduzido por Valeska G. Silva e Bruno Andrade) |
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