AS ALEGRIAS NÃO RIEM, AS TRISTEZAS NÃO CHORAM[1]
por Valeska G. Silva



Isso que nenhum olho humano é capaz de perceber, nenhum lápis,
pincel ou pluma de fixar, tua câmera o registra sem saber o que é
e o fixa com a indiferença escrupulosa de uma máquina.
— Robert Bresson, Notas sobre o cinematógrafo


É preciso ter visto três camponeses contrariados após uma discussão, subindo uma rua de pedra em uma vila de cariz medieval, para entender que a obsessão de Marcel Pagnol pela palavra não é maior que a necessidade de filmar esse território. A palavra marca o espaço e a câmera o fixa, como um instrumento de registro em um levantamento topográfico. É preciso ter visto ainda um documentário filmado como ficção por Jacques Tati para compreender que a apreensão da realidade pelo avesso, pela maneira menos inclinada a um registro documental, está mais próxima do que almejaram e mais distante do que realmente conseguiram as variantes da forma realista no cinema. Foi no ambiente extremamente familiar, caseiro, que o cinema revelou um universo insólito, único, da mesma forma que através de um olhar lúdico sobre o que é mais mundanamente material, terrestre e prosaico em qualquer cotidiano o cinema comunicou o que nunca havia sido identificado.


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Garlaban é uma colina com vista para Aubagne, província localizada ao sul da França, muito próxima do Maciço do Luberon, uma cadeia de calcário que passa dos mil metros de altitude. Marcel Pagnol nasceu em Aubagne, comunidade que permaneceu relativamente pequena, com pouco mais de 40.000 habitantes. Sobre Garlaban ele disse: “Senti o amor nascer, que duraria toda a minha vida.” Esse amor durou mais que a sua vida; transcorre por toda a sua obra.

Essa topografia vai além de uma simples presença em seus filmes provençais: quanto mais inconformado o coração da personagem, quanto maior a sua percepção em relação ao estado das coisas, mais difícil o acesso à sua morada, origem ou destino. Em Ugolin, a segunda parte de um dístico composto com Manon des sources (1952), a vingativa Manon surge criança na memória do culpado personagem-título. Ela caminha com extrema dificuldade pela trilha do vale que corta a floresta de solo acidentado, portando duas vasilhas com alças, cheias de água. A pequena, após tentar acompanhar os passos de sua família, para e senta-se numa pedra maior, à beira da trilha, buscando algum alívio para os pés. A rotina, da distante fonte de água à casa, repete-se por toda a sua infância. Adulta, ela vive apenas com a mãe numa caverna, no ponto mais alto da região; quando os moradores da vila Les Bastides Blanches sobem até lá pela primeira vez, numa espécie de peregrinação, com cada família surgindo de diferentes caminhos e se encontrando nas bifurcações, levando presentes e um pedido de perdão por toda a tragédia que poderiam ter evitado, compreendemos a importância que Pagnol deu à geografia local.

Por toda a sua obra manifesta-se a disposição em retratar o local e o particular. Em Le secret de Maître Cornille (episódio de Les lettres de mon moulin, 1954, adaptação para o cinema dos contos Cartas do meu moinho, de Alphonse Daudet), novamente toda a vila sobe a colina em busca de remissão, numa verdadeira ciranda que a câmera acompanha do alto. A comunidade, outrora iludida pela visão do progresso, mais uma vez se dá conta do erro após muito tempo e o grande prejuízo de alguns. O trigo, antes vendido ao estrangeiro, volta para as mãos do destemido Mestre Cornille, e o moinho pode então renascer em festa. Já em Regain (1937) Arsule, a mulher usada como um burro de carga pelo orgulhoso afiador de facas, enfrenta os obstáculos físicos de uma montanha pedregosa, puxando toda a carga do carrinho de amolar. Ao chegar ao topo, é recompensada ao conhecer Panturle, um verdadeiro revolucionário, último morador de uma vila que poderia bem ser Gordes renascida em nosso tempo, mas que permanecia condenada em ruína. Na imagem final de Angèle (1934) o casal sobe a colina a passos seguros, entre olhares mútuos, indiferentes à soalheira, em direção à terra de origem do herói. O comentário interior é retomado; o paraíso está conservado nas regiões mais isoladas, na parte mais alta da montanha.

Pagnol filmou o grão de trigo, principal produto da Provença – do qual se faz o pão “que não se nega a ninguém” –, como pepita preciosa sob os olhos dos camponeses; filmou a caça como o mais fino dos presentes e os longos sermões nas igrejas em longas sequências de até vinte minutos, com humor e mesmo troça, como o fez com as aulas em internatos. Nas mesas de bar, defrontou-se com longas conversas entre amigos e inimigos, em sotaques e dialetos que se tornam música para os ouvidos mais atentos. Um único espaço, bem como as sutis e principais alterações no tempo, narrados através de uma câmera tão familiarizada que olha para tudo como se pela última vez, nos entregando personagens reconciliadas, de volta à terra.


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Para Jacques Tati, um universo não se apresentou pronto, e foi preciso forjar uma nação simbólica, uma fantasia mítica, onde o domínio da técnica cinematográfica diz respeito menos à criação que a outro domínio: o da observação. Em seu projeto aparentemente mais despido de ambição, Forza Bastia (filmado em 1978 e lançado, postumamente, em 2002), Tati gera uma implosão de expectativas ao documentar uma festa em uma cidade com um registro fincado no estranhamento. Não se trata mais da relação concreta homem/natureza, a que se dedicou Pagnol, mas do homem com as suas criações. Tati cede à população da cidadezinha um motor de atração, aquele fascínio e magnetismo que encontramos nas suas personagens fictícias quando as observamos se relacionar com os objetos. O que vemos em Forza Bastia são movimentos que beiram a abstração, um universo inteiro de figuras burlescas lutando para se adequarem a um mundo inapreensível, repleto de agitações, tal como em seus filmes mais ficcionais, à maneira mesma que fez em Playtime – Tempo de diversão (Playtime, 1964-1967).

Não foram necessárias as grandes e caras produções, a arquitetura fictícia e os objetos espalhafatosos pertencentes a um futuro imaginado pela mente do grande artista: bastou o olhar do mímico em um ambiente suficientemente genérico. Tati ocupou-se, em toda a sua obra, dos aspectos que regem a atmosfera em determinado momento histórico, observando sempre o que existe de específico no geral para assim destacá-lo. Sua câmera registra essa realidade com o olhar investigativo de uma criança, como se visse tudo pela primeira vez. Este é um cinema que depende absolutamente de um exercício, uma abertura de recepção do público, para que o cotidiano seja revisto e finalmente redescoberto.


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A tão propalada invenção arquitetônica que alçou Tati na história das artes e a palavra mais presente no cinema que o próprio cinema em Pagnol não passam de ideias com arestas soltas, que limitam a aproximação com os seus filmes. Os que advogam a ideia do cinema menos dependente da palavra como mais afeito ao visual desconsideram que os diálogos não substituem a necessidade da composição espacial: quanto mais específico o verbo (um tipo de ação) e o sotaque (de uma região), mais se acentua a necessidade de demarcação geográfica e social. E quando o cinema retira os diálogos e une a mímica ao murmúrio, o cochicho ao sussurro, ele retoma um ponto: a palavra sempre fez parte do cinema de cunho realista, mesmo no período silencioso. Constatamos que o discurso cinematográfico é dado pelo que vemos, e que mesmo diante da absoluta falta de diálogos nós o intuímos através da linguagem expressiva das imagens. Não ouvimos nada no cinema silencioso, ouvimos quase nada do que Monsieur Hulot ou os cidadãos de Bastia dizem, mas compreendemos tudo como se os ouvíssemos. Essa arte mais devota e dependente do movimento requer e demanda uma atenção às respostas do seu tempo e lugar para “ser lida”; dela decorre um cinema que se engaja em soluções para outros tempos e outros lugares, o qual tende a instigar uma espécie de democratização da vida. Se temos o direito de insistir ainda mais na comparação Pagnol/Tati, diríamos que um amou demais um território (e com este o seu passado), enquanto o outro amou os seres (nos quais depositou suas esperanças para o futuro).

Se Keaton é um acrobata e Chaplin um dançarino, Tati impulsiona os corpos em direção ao céu, tal como no balé, enquanto Pagnol marca os pés das personagens ao rés-do-chão, mas ambos terminam por aproximar o homem do homem.


Notas:


[1] William Blake, Provérbios do inferno.

 

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