CENA DA AÇÃO, ESPAÇO DO MOVIMENTO: A CRISE DA REPRESENTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA Começaremos por evocar um diálogo inaugurado há exatamente cinquenta anos, por dois dos precursores do discurso teórico sobre o cinema e as artes visuais: Eisenstein e Malevich, que, em 1925, conversam vigorosamente. Interessamo-nos por uma série de razões: por um lado, a importância das personagens está ligada, certamente, ao modo como as suas respectivas obras engendraram e circunscreveram o campo de grande parte do que apareceu para nós posteriormente como a expressão da modernidade nas artes; por outro lado, o importante é que eles falam como cidadãos soviéticos e como atores desta primeira década privilegiada de transformação revolucionária. O mais importante, contudo, é a maneira como esse encontro articula uma série de mal-entendidos. Esse diálogo é, na verdade, um diálogo de surdos, e o mal-entendido que ele delimita nos instruirá sobre o nosso assunto, que é a crise da representação que animou o cinema, sua teoria e sua exegese. É Malevich quem inicia essa comunicação, publicando, em 1925 e 1926, dois ensaios altamente polêmicos, que estão reunidos no primeiro volume de L’Art, de Malevich, sob os títulos Les images triomphent sur l’écran e Artiste et cinéma[1]. Esses textos interessam-nos, em primeiro lugar, pela data de publicação: o aspecto original e problemático dos filmes de Eisenstein e Vertov está presente neles e constitui o assunto de uma discussão, e isso algum tempo após o lançamento de A greve (Stachka, Sergei M. Eisenstein, 1924-1925) e O encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin, Sergei M. Eisenstein, 1925). Na época Vertov havia rodado apenas Cinema olho (Kinoglaz, 1924), o primeiro de seus filmes além de seus trabalhos de juventude, Kino-nedelya (1918) e Kino-pravda no. 1 (1922)[2]. Malevich foi na época um dos primeiros espectadores, atento às apresentações e aspirações da obra de Vertov. Qual é a direção e os principais eixos das reflexões de Malevich sobre o cinema contemporâneo? Elas são naturalmente determinadas pela posição da qual ele fala enquanto pintor: sua obra é o extremo limite do empreendimento pictórico de nosso século. A grande obra suprematista de Malevich alcançou um fim inovador na abstração que definiria o campo de pesquisa da pintura nos cinquenta anos seguintes. A sua obra é, na pintura, algo equivalente à de Vertov, na medida em que a sua verdadeira posteridade (pensamos em Robert Ryman, Ad Reinhardt, Agnes Martin e Jo Baer) surgirá nos anos 1960 e 1970.
Para Malevich, a arte contemporânea será então não-objetiva ou abstrata (ele empregará um ou outro termo indiferentemente) ou não será nada. Esse apelo intransigente à pura abstração (esse termo, novamente, é dele) se baseia na clara consciência de que o que foi questionado não é o objeto, mas sim a cena que ele ocupa, um espaço exaurido, pictoricamente morto, pelo menos para este período. Esse espaço é a cena da ação e de seus objetos. Em última análise, são as regras da representação que determinam a projeção dessa cena, de sua paisagem, que acabam anuladas por Malevich. E ele assim o faz, plenamente consciente de que essas regras são o instrumento de uma ideologia dominante, ela mesma sob o ataque da revolução marxista. Ele enfrentou o problema da crise da representação nas artes no interior da perspectiva revolucionária, identificando a tradição da representação pictórica e escultórica à de uma burguesia derrotada, que ficou escandalizada com a ideia de um proletariado agora vitorioso, cuja arte atribui a si mesma tanto as funções sociais quanto as formas estruturais da ideologia burguesa. Assim,
A intenção explícita de Eisenstein é liquidar a pintura de cavalete, uma vez que ele não vê o seu valor como meio de propaganda. Ele se esforçaria para consolidar a pintura de cavalete criadora de emoções, que a partir de então ele aprova na prática, aprofundando a verdade do seu conteúdo emocional usando contrastes para expressá-lo. Suas fotografias consistem em um conteúdo de conteúdo: traduzido para a linguagem pictórica, remete ao estilo Wanderer, em que a pintura utilizava o mesmo tipo de conteúdo. Os pintores daquela época estavam interessados nas características faciais com os seus estados psicológicos, seus “humores” expressando a alegria e a tristeza, a vida cotidiana, a história, a pena, a esperança e o contentamento sob suas diversas formas em vez de uma pintura reveladora “enquanto tal” ou, no caso presente, de um cinema “enquanto tal”.
São, naturalmente, imediatamente evidentes as contradições e os limites dessa posição. Esse modernismo, educado na relação entre a fotografia e o filme, recusa-se obstinadamente a reconhecê-los. Essa passagem da fotografia ao movimento, a constituição do cinema inerente a esta relação, no próprio momento em que ele a exprimia por escrito, foram celebradas na fecunda obra de René Clair, Paris adormecida (Paris qui dort, 1923-1924), um filme que assumiu uma importância capital para Vertov. Malevich não dá atenção às propriedades inerentes à fotografia como tal; sua materialidade não tem seu lugar nem seu reconhecimento nas fileiras das essências ideais que compõem os cânones suprematistas. A fotomontagem também é descartada como uma variação perversa qualquer sobre as regras da representação. Negligenciando a maneira como esta poderia inscrever “o ponto de encontro de uma centena de espaços” de que fala Klee, ele ignora a sua utilização enérgica feita por Eisenstein nas sobreposições de A greve. Contestando toda sujeição do cinema aos imperativos pictóricos, ele está perto, não obstante, de alistá-lo como servidor do modernismo pictórico, elevando esse alistamento à condição de uma ontologia cinematográfica, prescritiva, que ignora as condições históricas e materiais da produção de um filme e também as complexas restrições e possibilidades que são inerentes à sua inserção na intertextualidade cultural do século XIX. A resposta de Eisenstein é breve e inapelável. Só aparece mais tarde, só é apresentada em Métodos de montagem, importante texto de 1929 em que explica os modos de montagem: métrico, rítmico, tonal ou atonal. Depois de esclarecer quais são as transições orgânicas características da radicalização progressiva da construção da montagem, ele prossegue:
Ele dirá mais tarde, em 1939:
Mas, é claro, Malevich, para fazer essa análise, não toma o ponto de vista de um pintor paisagista; ele defende a total dissolução de um espaço construído de acordo com as regras da representação. Para ele, uma vez que certos resultados tenham sido obtidos definitivamente, certas consequências inevitavelmente se seguirão. A inovação da arte abstrata consistiu em separar a arte da função ideológica da representação; consistiu também em distinguir o local da ação e seus objetos do espaço do movimento, um espaço semelhante ao da pintura de Malevich e que é endereçado ao olho, ao olhar, ao invés de ao corpo e à sua cinese. É o espaço que chamamos de óptico, na medida em que se opõe ao espaço que chamamos de tátil. Ao rejeitar a representação métrica, Malevich destruiu a cena da ação narrativa, substituindo-a pelo espaço pintado do movimento. Contudo, ele não dedicou ao cinema – e Eisenstein sabia disso – a mesma atenção certeira e rigorosa que dedicou às pinturas de Léger e de Juan Gris. E, em todo caso, certamente não a concedeu aos próprios filmes de Eisenstein, tendo em vista que não são os escritos do cineasta e sim suas películas que trazem consigo a maior prova contra as críticas de Malevich. Porque nenhuma obra, nos anos 1920, mais que a de Eisenstein, contribuiu para questionar tão vigorosamente as convenções da representação pictórica. E é preciso lembrar que foi em Outubro (Oktyabr, Sergei M. Eisenstein e Grigori Aleksandrov, 1927) e em O velho e o novo (Staroye i novoye, Sergei M. Eisenstein e Grigori Aleksandrov, 1927-1929), seus últimos filmes mudos, que se exprimiu da forma mais séria e enérgica o compromisso com um espaço absolutamente sintético questionador da coerência da lógica pictórica. Foi a obra de Griffith que animou o espaço de Repin. Eisenstein (cujas alusões a Repin são de ordem crítica, como em O velho e o novo no momento da procissão) se engaja cada vez mais, em sua obra de maturidade, rumo à espaço-temporalidade absolutamente sintética do modo óptico, reconhecendo assim o confronto do cinema com a crise da representação. Pode-se dizer até que a crise é amplamente revelada e resolvida nas elaboradas sínteses e distensões espaço-temporais presentes em Outubro (como o episódio da ponte levadiça, o bombardeio das trincheiras, a ascensão de Kerensky ao poder) e que constituem o princípio orientador de suas inovações mais radicais. Os dois projetos utópicos, Ulisses e O Capital, intimamente ligados, dão, entretanto, luz à explicação mais completa de Eisenstein para essa crise. Esforçando-se por constituir um sistema capaz de articular um texto essencialmente moderno, recordando na Califórnia sua vontade de rodar Ulisses, ele descreve “um cinema da mente, um filme capaz de reconstruir todas as fases e todas as especificidades da abordagem do pensamento”. Nessa época, abandonou sua antiga concepção de “cinema intelectual” que culminou em um projeto de filmagem de O Capital e seu método analítico e dialético em prol de uma outra aspiração, mais complexa e ainda mais problemática: a tradução do movimento da consciência. Para Eisenstein, o “monólogo interior” fílmico é o agente capaz de dissolver “a distinção entre o sujeito e o objeto”, empreendimento iniciado nos romances de Édouard Dujardin e completada pela obra de James Joyce. Ulisses se torna então o seu outro projeto utópico essencial nos anos 1930, a partir do qual a sua noção de cinema intelectual continua a se aguçar. Ele expressa com emoção um trabalho preliminar que fez com o texto de An American Tragedy, outro projeto desse período que estimulou esse tipo de reflexão, e informa-nos também dos “belos esboços” desenhados nesta ocasião. Eis a descrição de Eisenstein:
E Eisenstein termina observando: “Estas notas que marcam uma mudança radical na história do cinema falado foram deixadas numa mala – e acabaram enterradas como Pompeia sob uma massa de livros...” É aí que elas ainda permanecem. O som levaria Eisenstein para uma direção completamente diferente, para o hieratismo exacerbado de Ivan, o terrível (Ivan Groznyy, 1942-1944). Essas páginas enterradas poderiam, no entanto, servir de negativo para um futuro cinema. A afirmação da disjunção, das relações mutáveis entre imagem e som, a ênfase na polifonia, no uso do silêncio e da tela preta são elementos formais dinâmicos que nos são familiares: Eisenstein, em um magnífico salto de imaginação, exprimiu no papel o teor, a forma, o impulso e a estratégia essenciais do cinema independente americano das últimas duas décadas. Foi nesse período que, logo após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos viram o florescimento da pintura, que cineastas independentes redescobriram as recomendações de Malevich, das quais Eisenstein deve ter se lembrado quando tentou construir um sistema visual de subjetividade joyceana. Eles percebem que é possível seguir uma tradição europeia de vanguarda cujos principais representantes no campo cinematográfico – Richter, Duchamp, Léger, Man Ray – naturalmente se refugiaram nos Estados Unidos. Dois elementos servem de base a essa redescoberta: por um lado, a rejeição das condições materiais da indústria cinematográfica, aquela da alienação inerente à divisão do trabalho em que se baseia, e, por outro lado, a crítica escrupulosa às regras de representação na arte e no cinema ocidentais. Essa crítica, subjacente ao empreendimento coletivo de Brakhage, Breer, Landow, Frampton, Gehr, Kubelka e seus companheiros, constituiu, nas últimas três décadas, a obra de duas ou três gerações de cineastas, cuja ilustração e desenvolvimento encontramos na teoria e prática cinematográficas de Stan Brakhage. Eis uma passagem de Metaphors on Vision sobre isso:
Qual foi a real natureza da estratégia cinematográfica de Brakhage, que correspondia à preeminência da interioridade que ele sistematicamente enfatizava, como Malevich? O que foi, por outro lado, a ofensiva concomitante contra o espaço da representação, e como ela deveria se desdobrar? Não pela destruição dos objetos e ações da representação narrativa, mas antes pela transformação da espacialidade e da temporalidade que são suas pré-condições, as coordenadas que permitem localizá-las e defini-las. O ponto mais importante da estratégia de Brakhage é a redescoberta radical da temporalidade fílmica, a criação de um presente perpétuo, fotogramas ou sequências se sucedendo na extrema fluidez da montagem, aumentando ou suprimindo a expectativa, enquanto vetor da experiência cinematográfica. A memória e a expectativa são aniquiladas por imagens que têm o caráter íntimo e evasivo das imagens hipnagógicas, que experimentamos no estado de semidespertar. E como essas imagens, o filme de Brakhage se apresenta ao mesmo tempo em uma renovação perpétua, em uma cognição e em uma observação resistente. A imagem hipnagógica é imediata, aparece e desaparece ao mesmo tempo; não está sujeita às leis da percepção – as da perspectiva, por exemplo. Tem, segundo a observação de Sartre, a propriedade de despertar a atenção e a percepção: “Eu vejo algo, mas o que vejo não é nada.” Portanto, no trabalho de Brakhage, não há tempo, não há lugar, de qualquer forma, para a espera; o movimento da câmera na mão, a pintura sobre a película, a velocidade, deixam os dados espaciais na sombra ou introduzem uma ruptura; a continuidade é rítmica, baseia-se nas sínteses metafóricas atualizadas pelo espectador justapondo fotogramas rapidamente. A pintura sobre o filme, que afirma o plano da imagem, o uso das fusões e o recurso frequente aos fotogramas vazios, sobreposições que, ao se estabelecerem movimento após movimento, contraem o espaço em que cada um se desenvolve, tudo isso tem uma ação também radical sobre o espaço. Este tende, de uma maneira ou de outra, a se contrair, a perder sua profundidade e a se tornar cada vez mais óptico. O espaço de Brakhage é conhecido como aquele que sucede ao cubismo, pertence ao movimento que defende a ausência de profundidade e do qual Malevich foi um dos representantes. Deve ser comparado ao espaço pictórico desse período, o de De Kooning e o de Kline, em particular. Não é importante apenas que o espaço do filme de Brakhage seja análogo ao dos pintores contemporâneos, é mais significativo que o espaço da pintura contemporânea, que perde profundidade para se tornar cada vez mais óptico, tenha sido adotado por esse cineasta, que às vezes o antecipa como um meio para ressituar as cadeias sintagmáticas. É a subversão radical dos dados espaço-temporais que dissolve a cena e os objetos da sua ação narrativa pela reconstituição de outro espaço de movimento. Brakhage, em seus textos teóricos, desafiou a autoridade das regras de perspectiva inerentes às lentes das câmeras e desejou restaurar a autoridade da imaginação. Desse modo, antecipou em quase dez anos a crise da representação, censurada tanto pelos filmes franceses quanto por sua literatura crítica até o início dos anos 1970, e finalmente reconhecida depois de 1968 pelo degradado marxismo parisiense. Foi debatida nos Cahiers du cinéma e na Cinéthique a nova demanda segundo a qual o cinema devia contribuir para a fusão do radicalismo político e estético e reformular sua infraestrutura econômica e política, bem como sua própria tecnologia. Foi precisamente em Paris, naquela época em que Hegel traçava os grandes contornos de uma história da pintura e os pintores começavam a ter consciência de que a perspectiva científica, que determina as suas relações com a figura, resulta de um modelo cultural específico... Foi, pois, neste preciso momento que Niépce inventou a fotografia. Esse contemporâneo de Hegel foi convidado a confirmar a visão hegeliana, a trazer uma reprodução mecânica da ideologia contida na regra da perspectiva, suas normas e seus efeitos censuradores. E Godard assegurou que a fotografia estava a serviço da Reação, assim como a ferrovia, o telégrafo e os meios de comunicação de massa. Quando a burguesia teve que encontrar outros meios além da pintura e do romance para disfarçar a realidade das massas, ela teve que inventar a ideologia dessa nova forma de mídia de massa, chamada fotografia. “A relação importante não era a de Niépce e Hegel, mas a de Niépce e Rothschild (em outras palavras, Hegel pago por Rothschild)”. Essa afirmação marcou a conclusão de um ciclo, e o discípulo de Rossellini, que dedicou seu primeiro longa-metragem à Monogram Pictures, questionou o ilusionismo de seu instrumento. Essa reviravolta completa levou dez anos para ser realizada e deu origem a uma crítica cada vez mais avançada à ilusão cinematográfica, crítica por meio da qual Godard encontrou a obra e as posições teóricas dos independentes americanos. E não apenas Godard. A tarefa crítica mais urgente que enfrentamos hoje é um exame atento da relação entre as obras que inovaram recentemente o cinema europeu e as dos independentes americanos do pós-guerra. A convergência de Straub e Landow, Godard e Brakhage exige uma reflexão sobre como a crise da representação cinematográfica, enraizada na hostilidade dos independentes ao condicionamento industrial do cinema dominante, encontra, cerca de vinte anos depois, seu eco na Europa. O catalisador dos realizadores europeus é Brecht, prolongamento lógico de um cinema fundado em um longo passado teatral. A primazia do cinema independente americano está enraizada em sua rejeição categórica dessa tradição e em sua preocupação constante com a temporalidade e a espacialidade conforme foram redescobertas no campo das artes plásticas. Assim como a Anticipation of the Night (Stan Brakhage, 1958) e Scenes from Under Childhood (Stan Brakhage, 1967-1970) resumem as opções radicalmente novas dos anos 1955-1965, o trabalho de Michael Snow delineia o campo das pesquisas marcantes da década seguinte. Basta pensar em Wavelength, rodado em 1966-1967. O campo visual em que a câmera se concentra é o canto mais afastado do ateliê de um artista, o do próprio realizador. As grandes janelas, cada uma composta por oito pequenos painéis retangulares, dão para uma rua onde podemos ver os sinais e semáforos. A nitidez de nossa percepção da parede, da janela, da rua, será modificada pelo uso de cores ou processos de sobreposição. O movimento da câmera – é claro – começa lentamente a estreitar e circunscrever o campo visual, e à medida que nos aproximamos por um movimento igualmente lento da parede, começamos a ver, ou mais precisamente a apenas perceber, dois elementos: em primeiro lugar a presença de outros objetos retangulares no painel central da parede (ainda os percebemos nesta fase apenas como pequenas superfícies retangulares) e, em segundo lugar, da mesma forma (embora o limiar da percepção varie naturalmente com os indivíduos), o destino ou objetivo que a câmera deseja alcançar. Ou melhor, percebemos que ela está de fato tentando alcançar algo, que inexoravelmente acabará fixando sua atenção em alguma superfície que ainda não nos foi revelada. Através do travelling óptico, a câmera faz nascer no espectador um sentimento de tensão ou de expectativa, provoca nele a impressão de que essa superfície misteriosa vai coincidir com alguma parte da parede, com uma vidraça. Ou talvez de fato, mais provavelmente, com um dos retângulos pontuando o painel central da parede, onde parecem estar penduradas imagens que ainda não podem ser discernidas a essa distância. Agora, essas percepções estão servindo ao seu propósito, apresentando o movimento para a frente como um fluxo. Pelo lento trabalho de focagem e pela direção implacável dada à câmera – a profundidade espacial de todo o ateliê gradualmente atravessada pelo movimento contínuo do zoom – essas percepções criam essa atenção para o futuro que constitui um horizonte de antecipação. A certeza substitui a incerteza quando nossa câmera estreita seu campo, dando origem a e depois satisfazendo nossa curiosidade ansiosa pelo objetivo final ao qual a câmera visa, descrevendo na esplêndida pureza de seu movimento único e lento movimento a noção de “horizonte” característica do processo subjetivo. Esse movimento contínuo para frente, com suas sobreposições, com tudo que passa no campo da câmera, vindo de trás dela, depois desaparecendo novamente desse campo, figura a ideia segundo a qual “a cada percepção pertence sempre um halo de percepções passadas, que deve ser concebida como uma potencialidade de lembranças passíveis de serem evocadas, e a cada lembrança pertence, como um “halo”, a intencionalidade mediada e contínua de lembranças possíveis (realizáveis por mim ativamente), lembranças que se escalonam até o momento da minha percepção atual”[6]. A câmera continua seu constante movimento para frente, criando uma tensão crescente na proporção direta ao do estreitamento do campo, e começamos a entender, não sem surpresa, que esses horizontes, na medida em que definem os contornos da narração dessa forma narrativa particular animada por uma temporalidade distendida, reorientam o conhecimento para torná-lo um modo de revelação. Enquanto aguardamos um resultado, ficamos “suspensos” na expectativa de uma solução. É como se, ao esvaziar o espaço do seu filme, apresentando-o como um simples volume, o espaço do puro movimento pelo seu desdobramento temporal, Snow tivesse redefinido o espaço do movimento como a própria cena da ação: a ação da câmera. Como ele chegou lá? Através de uma meditação sobre as relações entre o espaço e a cena, entre a ação e o movimento, mais uma vez apoiado e nutrido pelas inovações que apareceram na pintura e na escultura de seu tempo. Snow é principalmente um artista dos anos 1960, um pintor e um escultor cuja maturidade coincidiu com uma conjunção histórica na qual as pesquisas ópticas, a exploração da representação figurativa nas obras de Johns, Warhol, Rauschenberg, a ênfase na estrutura e na percepção pela prática e pela teoria minimalista, na qual tudo isso contribuiu para criar uma atmosfera de trabalho particularmente estimulante. Entre as estruturas norteadoras que inspiraram a criação na época em que Wavelength nasceu, devemos observar:
Desse modo, no travelling óptico do zoom que reenquadra de maneira coerente e gradual a “cena”, a vida da rua pode ser discernida no fundo, através dos ladrilhos da janela. Ao reintroduzir a expectativa ou a antecipação como pivô da estrutura de seu filme, Snow redefiniu o espaço; é essencialmente “uma noção temporal”, como havia afirmado Klee. Ao libertar o filme de todas as metáforas derivadas da montagem, Snow criou uma grandiosa metáfora da própria forma narrativa. Quando o espaço do movimento é redefinido como sendo a cena da ação da câmera, espaço e cena, movimento e narração se fundem no alicerce de um cinema renovado. Snow substituirá então nesse alicerce o espaço da paisagem, ocupado por uma única personagem, de quem não vemos nada além da sombra. Essa sombra e sua voz são aquelas da máquina móvel que traça, por meio de seus incessantes arabescos, a topografia de uma région centrale, eixo de uma nova “diegese”.
Notas:
[1] Kazimir Severinovich Malevich, “Essays on Art”, traduzido por Xenia Glowacki-Prus e Arnold McMillin. Publicado por Troels Andersen, Borgen Copenhage, 1968. As passagens citadas foram todas tiradas das páginas 226-238 do volume 1.
[2] Além de outra dezena de filmes que Michelson denomina “da juventude”. [N.T.]
[3] Sergei M. Eisenstein, “Methods of Montage”, em Film Form, publicado e traduzido por Jay Leyda, Nova York, 1949, p. 79.
[4] Ibid., p. 182.
[5] Stan Brakhage, “Metaphors on Vision”, Film Culture n.º 30, outono de 1963, páginas não digitalizadas.
[6] Edmund Husserl, “Meditações cartesianas”. Haia: Martinus Nijhoff, 1950, p. 44 (Nota do tradutor: pegamos emprestada a tradução de Mlle. Peiffer e M. Levinas, “Méditations cartésiennes”, J. Vrin, 1969).
(em Une histoire du cinéma, pp. 38-44. Peter Kubelka [ed.]. Paris: Centre national d’art et de culture Georges Pompidou, 1976. Traduzido por Fábio Visnadi e Ana Júlia Galvan. Revisado por André Barcellos e Valeska G. Silva) |
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