GÊNIO DO MELODRAMA
Em 17 de agosto celebrou-se o centésimo aniversário do nascimento de Raffaello Matarazzo, que morreu em 1966.
Sua obra apresenta a particularidade de reunir todos os ingredientes do melodrama, a saber:
– o papel central da personagem feminina,
– a importância da criança (e da família),
– o gosto do quiproquó e da coincidência,
– o conformismo moral,
– o pleno recurso à música (melodrama), engrenagem essencial,
– uma intriga complexa, acumulando inverossimilhanças e artifícios teatrais,
– a presença do fogo (Caluniada [Torna!, 1954], Il tenente Giorgio, 1952),
– a presença da água, elemento fatal (o mar de O anjo branco [L’angelo bianco, 1955], a chuva de Tormento, 1950, e Quem não tiver pecado [Chi è senza peccato...., 1952]).
A grande força da obra de Matarazzo se funda sobre a disposição da intriga e a concisão da decupagem, que se torna uma verdadeira depuração. O mais belo exemplo pode ser encontrado nesses vinte minutos de O amor que não morreu (Catene, 1949), a partir do momento em que o jovem garoto começa a suspeitar (equivocadamente) de que sua mãe é infiel, até a fuga do marido pela janela, após a morte do suposto amante. Nem um plano a mais, uma lógica implacável da organização dramática. Comparável a Hitchcock. O gênio de Matarazzo – é muito evidente durante Voragem (Vortice, 1953) – se alimenta do encadeamento de fatos, de seus entrelaçamentos. Nós chegamos muito rapidamente a situações incontroláveis para o herói, que crê escapar pela astúcia. Mas esta apenas o faz afundar um pouco mais. Pensemos no protagonista de As oito vítimas (Kind Hearts and Coronets, Robert Hamer, 1949), que é inocente da morte da qual é acusado, mas que só pode inocentar-se pela confissão de outro crime, bem real por sua vez.
Uma arte abstrata, uma mecânica perfeitamente lubrificada, mas que se apoia sobre a emoção. Trememos ao ver os obstáculos aos quais são confrontados os heróis, mas estamos verdadeiramente comovidos pela angústia de seu devir próximo? Ou, antes, como os nós são grossos, participamos, nós, no trabalho do demiurgo? Nós nos dizemos: “Não, Matarazzo não ousará fazer isso.” Mas ele o faz, com uma audácia desconcertante.
Eu penso na magnífica cena de Tormento em que o pai, deitado na sua cama de enfermo, faz sua esposa jurar, sobre um crucifixo, que ela vai cuidar bem da criança abandonada, e morre dois segundos depois.
A emoção, frequentemente amparada pela qualidade excepcional da interpretação das crianças, é também renovada – ciência dialética – por margens de repouso, intermédios, em que só conta a pequena música de uma canção. A favor dos filmes, notemos também a intrusão de cúmplices com atitude mais humana, mais ponderada (o excelente Roberto Murolo), o jogo extremamente elaborado dos pretos e brancos que evoca Dreyer (cf. as grades da prisão, do convento, da cama do hospital em Tormento, os brancos ofuscantes da pedreira de mármore em Os filhos de ninguém [I figli di nessuno, 1951]), a emoção contida da cena da prisão, novamente em Tormento, em que se segue o percurso do buquê de flores que os outros detentos oferecem a Amedeo Nazzari no dia de suas bodas.
Evoquemos também o final de Verdi (Giuseppe Verdi, 1953): septuagenário, o compositor vai frequentemente ver suas óperas no teatro em companhia de sua esposa. Ele olha os cantores com o auxílio de seus binóculos, que ele passa em seguida à sua mulher. Isso se torna uma espécie de rito.
E depois o vemos um pouco mais velho. Ele está prestes a passar os binóculos, como de hábito, mas se apercebe de que não há mais ninguém ao seu lado. Compreendemos então que ele está viúvo.
Em outros tempos muitos repreenderam em Matarazzo o respeito pelas convenções e o conformismo moral que reinavam em seus filmes. Isto é ridículo, pois tratam-se de elementos incontornáveis do gênero, do mesmo modo que o cavalo no western.
Matarazzo sempre respeita a regra do jogo, enfim, quase sempre... Às vezes ele desvia, para nossa maior surpresa, para nossa maior emoção: assim a criada de Tormento, muito devotada durante todo o filme, e que esbofeteia repentinamente sua horrível patroa.
Um filme inteiro pôde explorar até a última gota esse princípio de contracorrente: trata-se de A nave das mulheres malditas (La nave delle donne maledette, 1953), fascinante inventário de torpezas sado-cristão-masos. Talvez nosso autor tenha levado um pouco longe demais a iconoclastia, a paródia. O filme é impregnado de um sistematismo que se torna quase cansativo. Sem dúvida Matarazzo quis espairecer – bastante brilhantemente, aliás – após uma dezena de melodramas muito ortodoxos.
A um Matarazzo, não basta dizer que é um melodrama; mas que é a quintessência do gênero, sua definição, seu apogeu.
É certo que a corrente do melodrama perde sua força com o passar dos anos. Matarazzo conseguiu manter-se oito anos (de 1950 a 1958) com o mesmo par de atores, Amedeo Nazzari e Yvonne Sanson – sete filmes, portanto. Mas os recursos de invenção diminuem, os filmes se assemelham – por vontade dos produtores – até o ponto em que a repetição cansa (daí o fracasso, em 1958, de O outono melancólico [Malinconico autunno]).
Há também a passagem à cor, que provoca uma queda de rendimento. Com Caluniada, percebe-se que é difícil dominar a cor em um melodrama, sobretudo com os poucos meios de que dispunha Matarazzo, e com o obstáculo da medíocre Ferraniacolor, ao passo que a convenção do preto e branco, de oposições nítidas da bicromia, permitia fazer valer melhor a convenção e a abstração do gênero.
O que não impede que os outros melodramas, de O amor que não morreu até O anjo branco, conservem uma força inalterável.
Em Matarazzo, o puro napolitano, o mal vem do estrangeiro, da América, o lugar onde se deve se exilar (O amor que não morreu, Quem não tiver pecado), da odiosa madrasta encarnada por uma estrangeira (Françoise Rosay em Os filhos de ninguém, Quem não tiver pecado).
A conspiração contra Matarazzo fomentada na Itália se explica pelo ciúme de seus colegas em vista das receitas recordes obtidas principalmente por Os filhos de ninguém: 958 milhões de liras contra 26 milhões para A terra treme (La terra trema, Luchino Visconti, 1947-1948) e 52 milhões para Alemanha, ano zero (Germania anno zero/Deutschland im Jahre Null, Roberto Rossellini, 1948). Ela se explica também pelo respeito às convenções, oposto ao socialismo marxizante erigido em panaceia universal (Pontecorvo, Lizzani, Maselli, Zavattini-De Sica), em que a suposta justeza ideológica serve de álibi à preguiça dos cineastas. Note-se, no entanto, que a acumulação melodramática desafina muito mais em um discurso neorrealista (cf. Ladrões de bicicletas [Ladri di biciclette, Vittorio De Sica, 1948]) que na fantasia de Matarazzo.
O desprezo será ainda mais vivo na França, onde a crítica maldirá os filmes sem tê-los visto, desencorajada por títulos excessivos (Le mensonge d’une mère, cf. “A mentira de uma mãe”, para O amor que não morreu; Bannie du foyer, cf. “Banida do lar”, para Tormento) e por uma difusão unicamente em versão dublada.
Hoje em dia, a roda virou a favor de Matarazzo. Sabe-se atualmente que não existe gênero menor.
O melodrama, como o western, desapareceu. E existe uma nostalgia de gêneros defuntos.
Ocorre a mesma coisa que na literatura, em que os escritores dos gêneros menores, de livros para crianças, uma vez omitidos dos tratados escolares e universitários, têm eclipsado os valores acadêmicos. Jules Verne pulverizou Lamartine, Lewis Carroll atomizou Tennyson.
Matarazzo é uma das grandes matrizes da história do cinema. Nós reencontraremos o vil sedutor de O amor que não morreu, que especula sobre a timidez da heroína e a encoraja a atirar nele, em Uma mulher livre (Una donna libera, 1954) de Cottafavi, que escolherá, para encarnar seu chefe de orquestra, Pierre Cressoy, que fora Verdi em Matarazzo. Que se note, quanto a isso, a diferença entre Matarazzo e Cottafavi: o primeiro coincidia plenamente com o espírito do melodrama, chorando lágrimas calorosas durante a filmagem, enquanto que, para o segundo, o gênero era apenas um meio desprezível que ele tentava transgredir.
Nós reencontraremos o quiproquó de Il tenente Giorgio em Fale com ela (Hable con ella, Pedro Almodóvar, 2002) e em A marquesa d’O (Die Marquise von O.../La marquise d’O..., Éric Rohmer, 1976).
Os tenores da península passarão também mais tarde ao grande melodrama, caso de Rossellini (Europa ’51, 1952), De Sica (Um lugar para os amantes [Amanti/A Place for Lovers, 1968]) e Visconti (O inocente [L’innocente, 1976]).
O neorrealismo do pós-guerra encontra sua origem em um dos primeiros Matarazzo, Trem popular (Treno popolare, 1933), que anuncia ostensivamente Domingo de agosto (Domenica d’agosto, Luciano Emmer, 1950). O sucesso desta crônica de vida tão simples tende a invalidar minha tese segundo a qual Matarazzo era bom apenas no melodrama, e que se fundava sobre a mediocridade dos Matarazzo fora do melodrama (Il birichino di papà, 1943, Os viciados [La fumeria d’oppio, 1947], Notte di fortuna, 1941).
Fosse ele apenas o homem de um único gênero, isso já bastaria à glória de Matarazzo, como prova a carreira dos grandes da comédia (Sturges, Edwards, Lubitsch, Chaplin), do filme fantástico (Bava) e do filme policial (Chabrol), que às vezes desviam para além do seu domínio favorito.
(Trafic n.º 71, outono de 2009, pp. 62-65. Traduzido por André Barcellos) |
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