A LONGA VIAGEM DE RAFFAELLO MATARAZZO
por Jacques Lourcelles



Em maio de 1966 desaparecia brutalmente, com a idade de 57 anos, Raffaello Matarazzo, autor de 40 longas-metragens dos quais alguns, datando dos anos 1950, obtiveram sucessos fenomenais na própria Itália. Na França, àquela data, ele era muito pouco conhecido e eu devo ter sido um dos únicos, ou o único, a lhe consagrar como obituário um pequeno texto sublinhando sua importância no cinema italiano[1], mesmo se eu conhecesse apenas um quarto de sua obra à época. Na Itália, parece que seu desaparecimento suscitou pouca comoção. Em todo caso, ele tinha um defensor de peso na pessoa de Riccardo Freda, que não lhe poupava elogios. Era mesmo o único de seus colegas italianos a quem Freda admirou e se afeiçoou, descrevendo-o como alguém tímido, introvertido, ansioso, torturado até o extremo e até o absurdo.

Sua obra, após sua morte, suscitaria um crescente interesse junto à nova geração. Ela seria incensada, como a de Cottafavi e Freda, por certos cinéfilos franceses (particularmente os mac-mahonianos), reescrevendo parcialmente a história do cinema italiano como eles o haviam feito para o cinema americano. Uma ou duas décadas mais tarde, esta reescrita seria admitida como uma evidência pelos próprios italianos.

Após uma atividade regular de crítico cinematográfico, de roteirista e de assistente de direção, Matarazzo começa sua carreira de realizador por uma tentativa que se revela um golpe de mestre, um dos mais belos primeiros filmes da história do cinema, Trem popular (Treno popolare, 1933), realizado aos 24 anos e considerado como protoneorrealista (e que, de fato, prevê, engloba e excede todo o movimento). Ele o engloba pela atenção dada aos exteriores (rodado em Orvieto); pelo espírito de observação, a proximidade com as personagens (na maior parte pequeno-burgueses ávidos por liberação e frequentemente incapazes de assumir esse desejo); e, sobretudo, pelo olhar humilde do autor descrevendo essa humanidade em sua exploração da natureza, estimulada graças à redução das tarifas ferroviárias decidida pelo governo de Mussolini para os dias de feriados; o filme banha-se em um lirismo discreto, tanto visual quanto musical (é a primeira partitura de Nino Rota para o cinema, requisitada por Matarazzo), que envolve em sua leveza as mínimas notações sobre essas silhuetas em férias.

O fracasso do filme lança Matarazzo em um frenesi de ecletismo. L’anonima Roylott (1936) é um drama policial que se passa em um meio industrial e financeiro, no qual um dono de usina e seu advogado se tornam cúmplices para trapacear inventores e lhes privar dos seus direitos. O filme, sério de uma ponta à outra, desenvolve-se em um ritmo acelerado, se encerrando em um final alucinado em que vítimas e culpados, praticamente confundidos, se abandonam a uma vertigem e a uma loucura que lhes é comum. Tema igualmente policial, se assim se desejar, é o de Joe il rosso (1936), mas situado em um registro oposto àquele de L’anonima Roylott. O tom aqui é farsesco, picaresco, dando a Armando Falconi (cujo filho Dino é o autor da peça da qual é tirado o roteiro) a ocasião de uma composição pitoresca bastante teatral. Reencontrá-lo-emos em um grandessíssimo papel de Giorno di nozze (1942).

A cada dois filmes na filmografia de Matarazzo nesta época, um é uma comédia. Em Sono stato io! (1937), Matarazzo desenvolve o que o gênero tem de terno e de cruel ao mesmo tempo. Ele descreve a vida de um solteiro azarado, contador demitido justamente por ser solteiro, seus colegas podendo provar que têm almas de quem cuidar. Ele é hospedado pela família de seu irmão de leite e é então encarregado de todas as tarefas que a dita “família” quer evitar. O papel dessa Cinderela masculina é interpretado por Eduardo De Filippo, o papel do irmão de leite por Peppino De Filippo e Titina De Filippo interpreta a mãe de família. O célebre trio de atores é reunido pela primeira vez no cinema. Infelizmente o filme tem um grave defeito: ele é dramaticamente incompleto e desprovido de um verdadeiro desenlace. Em 1939 Matarazzo assina um de seus filmes mais inquietantes, mais inclassificáveis, constantemente oscilando entre o realismo e o fantástico. L’albergo degli assenti é uma espécie de pesadelo sobre o qual quanto menos se disser, melhor será, a fim de deixar intacta a surpresa do espectador. No máximo podemos aproximá-lo, por sua atmosfera e suas peripécias, aos grandes seriais mudos de Fritz Lang.

Sempre apaixonado pela comédia, Matarazzo começa os anos 1940 com um grande êxito, L’avventuriera del piano di sopra (1941), filme ligeiro e estilizado com muita maestria no plano técnico, e baseado no tema de um ciúme doentio a envenenar a vida de dois casais, com um dos cônjuges de cada casal sofrendo a perseguição permanente do outro. O filme seduz por sua economia de meios e de lugares, pela simetria regular de suas peripécias, assim como por um casting esplêndido. Ele marca a principal colaboração de Matarazzo com Freda, aqui produtor, decorador, montador, mas não roteirista (contrariamente ao que é indicado nos créditos). No começo dos anos 1940, Matarazzo dá dois de seus melhores filmes, Giorno di nozze e Il birichino di papà (1943). O primeiro título, em tom ao mesmo tempo áspero e amigável, mostra à maneira de Labiche (e particularmente de La poudre aux yeux) o papel do dinheiro em todas as camadas da sociedade, e mais especialmente no seio da pequena burguesia em uma ocasião (os preparativos de um casamento) em que esta quer se elevar ao nível da grande. O segundo nos introduz, pelo menu, nos ritos cotidianos de uma escola religiosa do tempo do fascismo, ou seja, em uma época em que a auto-exclusão e a revolta eram as únicas reações sãs em uma sociedade confinada, rígida e restritiva. Trem popular e esses dois filmes constituem, sem dúvida, o quadro mais verídico e o mais talentoso da sociedade italiana nos anos 1930. A data mais importante na redescoberta dessas três obras-primas (que diz respeito à obra de Matarazzo no geral) é a retrospectiva consagrada ao nosso autor durante o Festival de Avignon em 1974, por Simon Mizrahi. Seguirão homenagens em Savona, em Milão, em Ancona etc... Foram publicados, pela ‘Movie Club’ de Turim, dois volumes de documentos e de reflexões, “Raffaello Matarazzo Materiali”, particularmente interessantes. O volume 2 contém em especial cerca de 50 páginas de artigos de Matarazzo sobre o cinema dos anos 1930. Seu ecletismo conduziu Matarazzo em todas as direções (inclusive à Espanha, onde rodou dois filmes em 1943 e 1944). Quando retornou fez uma incursão muito elegante sobre o plano plástico no universo de Dante com Paolo e Francesca (1950) e realizou uma espécie de serial, Os viciados (La fumeria d’oppio, 1947). Após isso, ele não sabia mais o que rodar nem para onde se voltar. É aí que a amizade joga um papel capital em seu itinerário pessoal e suficientemente raro no universo do cinema para ser mencionado. Freda conta: “Do filme O amor que não morreu (Catene, 1949), posso dizer que fomos nós os responsáveis, Monicelli e eu (...) que o impulsionamos a se lançar nesse tipo de filme muito popular, uma espécie de folhetim, por assim dizer, e nós tivemos que vencer sua resistência porque ele não queria nem ouvir falar sobre isso.” Do sucesso triunfal de O amor que não morreu surge então uma série de sete filmes até 1958, dos quais muitos ultrapassarão largamente as receitas do primeiro. Esta série é extraordinária e relativamente única na história do cinema pelo fato de que ela faz reaparecer ao longo de sua duração não apenas uma única personagem, mas uma dupla de atores e de personagens (Yvonne Sanson e Amedeo Nazzari). E era necessário ao menos um casal para retraçar – o que é a ambição não assumida desta série – a crônica da humanidade ordinária buscando a paz e a serenidade após ter tido, antes, que superar eventos trágicos, conhecido separações dolorosas ou se afundado em um oceano de lágrimas. O amor que não morreu, o primeiro episódio, mas não o melhor, da série, lança as bases sociais, familiares, locais. Seu limite é talvez o de privilegiar excessivamente (um excesso que será nuançado e corrigido nos outros episódios) a personagem da mulher que é, de uma ponta à outra, o eixo do filme. A interpretação de Yvonne Sanson é espantosa, particularmente no plano físico em que, de madona radiante que ela é ao início, torna-se, de cena em cena, uma mulher torturada, deprimida, emagrecida, quase totalmente diferente ao fim (exceto na última cena) do que era no começo. Praticando sobre seus dois heróis esta sociologia das profundezas que faz a unidade da série, Matarazzo observa sua heroína sem a julgar, examina em detalhe seu ponto de vista, medindo seus erros pelo sofrimento que eles provocam nela. Sem derrisão, com uma seriedade imperturbável, ele mostra como ela salvará seu par e sua família aceitando entrar no jogo tortuoso da Justiça, que ignora a verdade dos fatos e dos sentimentos.

O sexto episódio, O anjo branco (L’angelo bianco, 1955), sequência direta do quarto, Os filhos de ninguém (I figli di nessuno, 1951), é o ponto culminante da série. Os filhos de ninguém comportava o fim mais negro de todos os episódios. Ao início de O anjo branco, tendo perdido qualquer pista de Luisa, a mãe de seu filho que mudou de convento e que ele continua amando profundamente, o herói se abisma em uma tristeza mórbida. Ele encontra em um trem a sósia absoluta de Luisa, ou sua reencarnação, ou sua coencarnação, na pessoa de Lina, cantora de music hall em turnê e traficante ocasional de dinheiro falso. A sideração de Guido em face de Lina faz pensar naquela do narrador de L’arrêt de mort, ficção de Maurice Blanchot (1948), quando a morta que ele velava retorna à vida. O filme vai fazer esta sideração de Guido passar por diferentes etapas e estados os quais, após múltiplas peripécias, colocam-no diante de uma Lina agonizante e uma Luisa bem viva. Ele termina por experimentar face a face com elas um reconhecimento tresloucado, próximo da beatitude. Assim se aproxima ele, e o filme com ele, do mistério do Ser (“o sol branco do Ser”, disse Romain Rolland a propósito de Espinosa), no seio do qual todas as criaturas, todas as individualidades, sejam elas semelhantes ou dessemelhantes, têm um lugar igual, como que fazendo parte de sua substância. O filme vai muito mais longe que duas outras obras-primas estruturadas sobre o mesmo tema: Um corpo que cai (Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958) e Zhizn za zhizn (Yevgeni Bauer, 1916). A mise en scène torna-se aqui uma verdadeira liturgia, capaz de unir, de sintetizar um cinema da encarnação (tipo Rossellini) e um cinema da arquitetura e da depuração (tipo Lang ou Dreyer). Plasticamente sua sobriedade é extrema e é graças a ela, notavelmente, que os eventos mais inesperados vão se engendrar uns aos outros em uma continuidade sem falha e, repetimos, siderante. Enquanto elaborava esta série de sete filmes (1949-1958), Matarazzo encontrou o meio de realizar outros nove, dentre os quais um filme histórico situado nos anos 1860, Il tenente Giorgio (1952), soberba e tumultuosa narrativa de aventuras que poderíamos chamar de stendhaliana se ela não estivesse tão impregnada de melodrama, marca suprema do realizador, seguida no ano seguinte de uma biografia de Giuseppe Verdi, terna, respeitosa e cheia de lágrimas. No ano seguinte ele assina o seu filme mais célebre, A nave das mulheres malditas (La nave delle donne maledette), aquele que todo mundo ama e ao qual seu nome está ligado. Na Espanha do século XVIII, para salvar sua prima Isabella e o casamento de interesse que ela obteve, a jovem Consuelo aceita assumir o crime (trata-se de um infanticídio) que ela cometeu. Ela se vê logo condenada aos trabalhos forçados e chega às colônias entre uma trupe de deportados. A inspiração barroca do filme, desenfreada e delirante, sempre estimulada em Matarazzo pelo emprego da cor, explode tanto melhor por ter sido longamente sufocada nos dois primeiros terços da narrativa. Matarazzo retomará esta estética do barroco reprimido e explosivo no único episódio filmado em cores, Caluniada (Torna!, 1954), da série Nazzari-Sanson. Na virada de 1960, a mudança de era (ou de ares, se se quiser) leva Matarazzo a tomar distância face a si mesmo, seus temas e o cinema. Ele faz notavelmente uma comédia semipsicológica, Adultero lui, adultera lei (1963), em oposição à commedia all’italiana do momento, em que ele chega mesmo a introduzir uma crítica da lei italiana que faz do adultério um delito para as mulheres, mas não para os homens. Em I terribili sette (1963) ele descreve e faz interpretar com talento um bando de crianças que descobriu um bebê abandonado. Sua obra final, Amore mio (1964), é autoproduzida, como um Brisseau ou um Vecchiali de hoje em dia, e na Itália será lançada apenas na província. É o melhor dos seus últimos quatro filmes. Uma nova forma de emoção vem à luz, nascida de uma causa paradoxal: a incompreensão. As personagens dificilmente se compreendem entre si e Matarazzo tem dificuldade, ele também, de compreendê-las.

Matarazzo disse a Simon Mizrahi: “Eu jamais fui descoberto e não quero jamais sê-lo.” De fato, ele conheceu de tudo: as vaias durante seu primeiro filme, uma série de triunfos, depois um certo abandono. Ele sabia do caráter postiço, ocasional, aleatório dessas reversões de opinião, dessas manifestações de interesse ou de desinteresse. Ele estava consciente também do contato extraordinário que seus filmes tiveram, em profundidade, com o público de seu país: em relação aos dois heróis da série O amor que não morreu, uma grande parte da Itália se viu neles e se reconheceu neles. O que mais ele poderia pedir? Após isso, ele queria simplesmente ser deixado em paz...


Nota:


[1] “Journal de 1966”, Présence du cinéma n.° 24-25, outono de 1967, pp. 90-91. [N.T.]


(“Retrospectiva Raffaello Matarazzo”, Cinemateca Francesa, de 3 de julho a 4 de agosto de 2013. Traduzido por André Barcellos)

 

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