VIAGEM DE IDA PARA SANTUÁRIO (O REVÓLVER É MINHA LEI, Edward Ludwig, 1963)
O último filme do muito retraído Edward Ludwig, russo de nascimento como Lewis Milestone, O revólver é minha lei (The Gun Hawk) em 1963 é um western pequeno e quadrado (bom paradoxo: o cinema mais acessível e “de preenchimento” de sessões duplas em sua época é hoje muito mais complicado de se ver do que o de muitos diretores de cinematografias exóticas), nada espetacular, filmado entre capítulos de séries para a pequena tela, um destino um tanto inesperado para um dos mais imprevisíveis e estimulantes (a antecâmara do apaixonante) realizadores do cinema americano.
Conheço apenas 14 filmes de Ludwig (mais ou menos 40% da sua obra sonora; os mudos, cerca de sessenta, que assinou como Edward I. Luddy, a maioria deles suponho filmes de dois rolos, não consigo encontrá-los nem sei quais foram preservados) e ainda não intuo seus limites. Cada novo trabalho que pude encontrar ou cada revisão acrescentam coisas novas.
À época de seu lançamento O revólver é minha lei chamou a atenção de Godard e a ele provavelmente devemos que não se tenha esquecido completamente este filme indescritível e estranho, manifestamente de estúdio, mas tão intenso e elíptico, tão milimétrico na sua irrealidade, que acaba se aproximando da excelência e, sem problemas de consciência de qualquer espécie, pode ser incluído entre as grandes obras não “crepusculares” da etapa final do gênero – qualificativo do western a essas alturas –, e tão da sua época (desde os créditos, com a viciante canção A Searcher For Love, que lembra Frankie Avalon) quanto categoricamente atemporal.
Ludwig não aproveitou a sua grande oportunidade de ser famoso. Em 1944 Romance dos sete mares (The Fighting Seabees), com John Wayne e Susan Hayward, colheu um grande sucesso de bilheteria, ainda que não seja um de seus melhores filmes para o meu gosto. Sua carreira não se recuperou e é quase melhor assim, porque é a partir de então que está boa parte dos filmes que mais me entusiasmam (No rastro da bruxa vermelha [Wake of the Red Witch, 1948], Sangari [Sangaree, 1953], Labaredas no céu [The Blazing Forest, 1952], O tesouro perdido do Amazonas [Jivaro, 1953-1954] – muito apreciado por Mourlet, pouco suspeito de ter mau gosto e também fã de Dwan e Walsh, à primeira vista os diretores mais aparentados ao estilo de Ludwig –, Pantera negra [Caribbean, 1952]...), mas também o altamente questionável Uma aventura perigosa (Big Jim McLain, 1952), anticomunista ou algo semelhante, já não vale a pena denegri-lo, e ao qual seria bom contrapor Não desonres o teu sangue (My Son John) de Leo McCarey, do mesmo ano de 1952, para ver as, digamos, diferenças de enfoque.
Como os melhores que fez (também vários dos anos 1930 e entre eles o primeiro que pude ver, o delirante Aventura em Nova York [Adventure in Manhattan, 1936]), O revólver é minha lei necessita de pelo menos duas visões para se detectar o que tem de extraordinário.
A verdade é que a história que conta O revólver é minha lei é realmente boa e profusa, nada anedótica, mas a depuração – o conhecimento do ofício, em suma – é tal que parece que não há um só recurso melodramático usado “apropriadamente”.
Ressalvadas as distâncias, O revólver é minha lei é para o western o que Faixa vermelha 7000 (Red Line 7000, Howard Hawks, 1965) é para o seu respectivo gênero, uma revitalização que parece pura rotina e uma obra romântica, sobretudo sobre a amizade, tão antiquada que quase nem o parece (a última meia hora é um incrível tour de force cheio de sentimento, uma “extravagância” digna de Matarazzo e que qualquer diretor evitaria para não cair no ridículo). A inevitabilidade dos eventos e o olhar do diretor, atento e penetrante ao mesmo tempo que compreensivo e eficaz, conduzem o ritmo do filme por caminhos inimagináveis e apenas deixam espaço para a reflexão. É uma surpresa contínua.
Rory Calhoun, que na minha memória será sempre o gaúcho daquela inesquecível obra-prima de Tourneur (O gaúcho [Way of a Gaucho, 1952]), demonstra alguns recursos expressivos pouco elogiados, nunca tão bem interpretados com o gesto corporal, e suporta o peso trágico do passado e do presente do filme, que parece, como em todo grande western, que já está em pleno andamento desde antes do começo da projeção.
Em uma época de recapitulações, últimos lampejos – alguns ofuscantes –, grandes espetáculos e obras que buscavam caminhos, ainda que colaterais, pouco percorridos (Terra bruta [Two Rode Together, John Ford, 1961], O homem que matou o facínora [The Man Who Shot Liberty Valance, John Ford, 1962], Crepúsculo de uma raça [Cheyenne Autumn, John Ford, 1964], Os comancheros [The Comancheros, Michael Curtiz, 1961], A conquista do Oeste [How the West Was Won, Henry Hathaway/John Ford/George Marshall/Richard Thorpe, 1961-1962], Um clarim ao longe [A Distant Trumpet, Raoul Walsh, 1964], O último pôr-do-sol [The Last Sunset, Robert Aldrich, 1960-1961], Cavalgada trágica [Comanche Station, Budd Boetticher, 1960], Rio Conchos [Gordon Douglas, 1964], Sua última façanha [Lonely Are the Brave, David Miller, 1961-1962], Os desajustados [The Misfits, John Huston, 1961], Os nove irmãos [Spencer’s Mountain, Delmer Daves, 1963], Cimarron – Jornada da vida [Cimarron, Anthony Mann, 1960]...), mas também de recém-chegados que parecem em isolamento desde suas estreias ou dispostos a negar as formas tradicionais a qualquer preço (O homem que eu devia odiar [The Deadly Companions, Sam Peckinpah, 1961], Pistoleiros do entardecer [Ride the High Country, Sam Peckinpah, 1962], A vingança de um pistoleiro [Ride in the Whirlwind, Monte Hellman, 1965-1966], Por um punhado de dólares [Per un pugno di dollari/Fistful of Dollars, Sergio Leone, 1964], O dia da desforra [La resa dei conti/The Big Gundown, Sergio Sollima, 1966]), O revólver é minha lei é uma raridade que recupera a ingenuidade fundadora do western mudo e tem uma pulsação vital sem parecer casual ou pop. Não se fecha em espaços fechados por limitação, mas por escolha, e quando deve ser secretamente épico e desaforadamente lírico o é, sem rodeios.
Nada morre no vasto território do western coberto por O revólver é minha lei, tudo está condenado a se repetir ou, pior ainda, a não se resolver para a satisfação de ninguém: é um filme inconcluso. O nome de Nicholas Ray surge quando tentamos dar alguns passos para trás para ver melhor e deixar vir à memória aquela tentativa falha, mas bela, de musical, Quem foi Jesse James? (The True Story of Jesse James, 1957). Existe o mesmo perigo e falta essa rede que dá suporte aos projetos bem elaborados. Ludwig não se distinguia exatamente pela engenhosidade (daí o relativo fracasso de Romance dos sete mares; é uma brincadeira), era um cineasta intuitivo, disponível, de quem não se notava a maquinaria em função do impulso pelo irreprimível e sim pela planificação, mas quando acertava em cheio era concreto e tinha uma economia narrativa louvável.
Preferia, penso eu, ser ambíguo e singular ao invés de descansar sobre os louros conquistados, e isso não garante bons dividendos quando se trata de ter uma “boa” carreira.
(originalmente publicado em Un blog comme les autres. Traduzido por Valeska G. Silva) |
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