BUSTER KEATON: IN MEMORIAM
Ele deixou o mundo sem nunca ter estado de fato nele. Apenas santos e alguns loucos clássicos tiveram um poder comparável de sugerir que este lugar onde todos pegamos trens tão astutamente não é de todo o lugar para o qual fomos feitos. Ele não se consternou, não proferiu nenhum protesto (de que servem os protestos?): ele dedicou todas as suas energias a não ser destruído por um universo tão implacável quanto um bloco de gelo, tão onipresente quanto as três leis de Newton, tão escrupuloso quanto um relógio de corda. Habitantes desse universo (e bilhões o habitam com aptidão) apontariam uns aos outros que Keaton nunca sorriu: como se não fosse um assunto sério, tentar não ser destruído, e realmente triunfar, nunca sabendo que se triunfou.
Pois foi com a natureza das coisas que ele foi confrontado, e nunca se pode superar esse adversário; pode-se apenas continuar o movimento, apenas ter sucesso em não ser privado de sua mobilidade; esse é o seu triunfo, a mobilidade. Os adversários de Chaplin, por contraste, eram grandes malevolências estáticas e carnudas, com olhos de porco e geralmente com bigodes, bloqueando o caminho entre Chaplin e seu simples desejo: uma refeição, uma garota. Golpeados na cabeça inúmeras vezes, eles não sucumbiam, mas quando caíam, como sempre acabavam caindo, era pelo seu próprio peso. A lei da gravidade era a principal aliada de Chaplin. Era a nêmese de Keaton.
Assim, algo poderia ter sido feito sobre o mundo que tanto incomodava Chaplin, ainda que ele não fosse o homem para fazê-lo. Uma renda anual garantida ajudaria imensamente, assim como o extermínio de vilões gananciosos. (Ele conseguiu, de um filme a outro, derrubar alguns.) Enquanto isso, ele tinha seu pathos, e sua dignidade. O universo de Keaton era irremediável, e ele rejeitava o pathos.
Keaton era o acrobata, instigando a natureza das coisas num diálogo cinético. Chaplin era o dançarino, realizando, de acordo com a natureza das coisas, e com seus pequenos passos, um comentário ironicamente lírico. Superado (à espera de tempos melhores), ele podia retirar-se: rumo ao pôr-do-sol, rumo a uma noite solitária, até mesmo rumo à guilhotina em um filme. O ritmo desse andar, em Monsieur Verdoux (1947), expressa a opinião de Chaplin sobre uma cidade que dá aos homens sentimentais apenas o crepúsculo da consolação. Mas Keaton não tinha opiniões a expressar. De que valem as opiniões durante a precessão dos equinócios? De que vale o fato de que não se tem olhos na nuca?
Pois se os seus olhos estavam na frente da sua cabeça, ele não tinha como saber que a motocicleta em cujos guidões ele estava sentado tinha perdido seu motorista; depois disso – deixemos James Agee descrever: “Keaton atravessa o tráfego urbano, desarma um cabo-de-guerra, recebe um punhado de terra na cara de cada um de uma longa fila de cavadores, aproxima-se de um tronco em alta velocidade que é partido por dinamite no momento preciso para que ele passe, e, colidindo com um obstáculo, abandona os guidões como uma flecha deixando o arco, bate na janela de uma cabana na qual a heroína está prestes a ser violentada, e atinge o vilão com os pés, arremessando-o contra a parede oposta. Toda a sequência é tão clara em seu movimento como a trajetória de uma bala”.
Ele havia começado a cena fazendo as vezes de dublê para o motorista caído, que foi interpretado por um homem que não sabia cair. Ele prosseguiu sem cabos e efeitos especiais: “Eu simplesmente me treinei para conduzir uma motocicleta sentado sobre os guidões. Era difícil manter o equilíbrio, e tive umas boas quedas.” Nesse desdém por dublês, detectamos o continuum de sua arte: ele erigiu a habilidade acrobática a algo maior que um recurso profissional e mais elevado que uma filosofia de vida: a uma metafísica. O homem, supõe aquele rosto apagado, não é deste mundo, mas de alguma maneira sobrevive. Seu centro de gravidade – que você pode situar de instante a instante traçando aos seus pontos de intersecção os braços abanados e a espinha dorsal – era uma metáfora para algo – uma chama cristalina, talvez, como uma chama piloto – que era impensável como algo que alguém perderia.
E a bruta sobrevivência intacta, em dueto acrobático com forças que de forma alguma podiam ser superadas, foi o tema secreto da arte dos anos 1920, uma arte tão marcante, tão anônima, e quase tão perdida em reconstruções quanto o teatro dos jacobinos. A comédia, então, era uma arte realista, que ia até as ruas; os filmes sérios da época são hoje loucamente irreais, enquanto Keaton, Langdon, Lloyd e Chaplin interagiam com um mundo real.
Esse mundo começou a se organizar, após o Renascimento, a partir de seu consentimento em ser organizado, baseado na compreensão de que todos finalmente receberiam de volta muito mais do que ele havia abdicado. Em meados de 1850, finalmente tornou-se claro que o Renascimento não iria triunfar de maneira alguma, ainda que nos tenha entregue em parcelas tardias algumas revoluções. Populações inteiras, havia ficado claro, foram absorvidas em sistemas inalcançáveis, de modo que a sociologia precisou ser inventada para estudá-las, e as implacabilidades de Newton tornaram-se a metáfora propícia aos seus comportamentos. O amor de Keaton por sua vaca, em um filme, ou por sua locomotiva, em outro, era um amor transferido de garotas diminuídas a abstrações por inexplicáveis rituais de cortejo, por meio dos quais (e apenas por meio dos quais) eram acessíveis. Os rituais da locomotiva podiam ser dominados. Tudo o que era humano havia recuado a uma natureza inviolável, girando pela força diurna da Terra, uma natureza mais apta a liberar a si mesma, como um terremoto, em batalhões de soldados, pandemônios de tráfego, cidades repletas de policiais.
Não era nunca um policial, mas centenas; o policial como força da natureza. Nem tampouco botões estourados e gavetas emperradas, o troco dos comediantes menores, atrapalhavam-no; em vez disso, búfalos em debandada, avalanches, naufrágios, sistemas inteiros desabando à sua volta. Ele nunca desabava porque não era deste mundo: apenas um visitante, não um nativo. (A própria data de seu nascimento é contestada.) Mais de um crítico francês o comparou a Poe, e um deles citou em sua honra o verso que Mallarmé fixou como se no túmulo de Poe, “Calmo bloco caído aqui de um desastre obscuro”, observando que poderia ter sido escrito para ele.
Como se largado neste planeta por um obscuro cataclismo, ele acabou lidando com os sistemas desta terra como pôde. As ferozes exigências de seus roteiros não podiam machucá-lo; mesmo desvios delas não o faziam. Correndo por sobre um trem de carga, ele descobriu uma preferência pelo trem movendo-se na direção oposta, e agarrou uma corda pendurada na qual poderia se balançar. Mas a corda operava uma caixa d’água, e não apenas a água o encharcou enquanto ele balançava, como a pressão da água o jogou nos trilhos, o que não estava de acordo com o roteiro. Sendo um acrobata talentoso, ele sobreviveu à queda, e anos depois se lembrou dela durante alguns raios-X; provavelmente foi, ele refletiu, a vez em que quebrou o pescoço.
(National Review, 22 de fevereiro de 1966. Republicado em Mazes: Essays. São Francisco: North Point Press, 1989, pp. 300-303. Traduzido por Lucas Baptista) |
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