WEEKEND À FRANCESA, Jean-Luc Godard, 1967
E. M. Forster publicou seu último e maior romance, Uma passagem para a Índia, em 1924. Em termos de forma e de método trata-se de um trabalho firmemente tradicional, construído sobre a base tradicional de caracterização e de enredo do romancista; em termos de tema e de perspectiva ele ainda salta à vista como sendo extremamente contemporâneo, repleto das ansiedades e incertezas que nos afligem hoje. Forster tem sido frequentemente indagado quanto ao porquê de ter parado de escrever romances, e a resposta que lhe atribuíram foi a de que o mundo se tornou muito complexo para ele se sentir capaz de lidar com a realidade em uma forma ficcional.
No século XIX o centro de interesse criativo deslocou-se da poesia para o romance; no nosso século ele se deslocou do romance para o cinema. Da era vitoriana à primeira metade do presente século nós nos voltamos para romancistas como Dickens, George Eliot, Conrad, Lawrence e Forster para uma interpretação e ordenação da realidade. Agora nos voltamos não para o cinema britânico, obviamente, mas para Bergman, Antonioni e Godard...
A decisão de Forster não foi covardia. Ela também não pode ser atribuída exclusivamente ao fato de que, por mais moderno que seja em alguns aspectos, seu trabalho está profundamente enraizado em formas e métodos tradicionais que deixaram de ser adequados para expressar a realidade, que se tornou tão complexa e tão terrível que o artista se expõe totalmente a ela por sua conta e risco. A enorme confusão de um mundo mudando em uma velocidade sem precedentes torna a preservação do senso de continuidade com o passado cada vez mais difícil. Já não há mais concordância quanto ao que constitui certo e errado, bom e mau, ou até mesmo se tais termos ainda têm validade. Um horror fundamental na existência apresentou-se mais e mais inegavelmente como um fato. Os campos nazistas, Hiroshima, Vietnã se imprimiram profundamente na consciência moderna. Os campos nos afrontam com a bestialidade inerente à natureza humana, aparentemente inextinguível; a bomba faz com que nos deparemos com a possibilidade da aniquilação universal iminente. Falo apenas de coisas óbvias em termos óbvios, mas elas irão indicar suficientemente o que quero dizer sobre a posição do artista nos dias de hoje caso ele seja um grande artista que deseja (porque ele não pode deixar de desejar isso) incluir em sua obra a realidade completa à qual ele está exposto. Quando nos voltamos ao cinema para a nossa interpretação, o que encontramos?
Em primeiro lugar, os grandes feitos dos grandes diretores de Hollywood, como Hitchcock e Hawks, dependem do fato de que eles trabalharam dentro de uma tradição que os protege da necessidade de plena exposição ao mundo moderno. Filmes como Psicose (Psycho, 1960) e Onde começa o Inferno (Rio Bravo, 1959) têm uma importante e contínua relevância contemporânea, mas ela é oblíqua: pela sua própria natureza, eles evitam o confronto direto com a realidade contemporânea. Provavelmente não será mais possível fazer bons filmes deste tipo, embora isso não afete de forma alguma a validade e a importância do trabalho destes artistas. Então nos voltamos para a Europa. Fellini em seus filmes busca expressar um mundo, mas é essencialmente o seu próprio mundo, e os filmes permanecem limitadamente egocêntricos. Antonioni tentou lidar diretamente com problemas contemporâneos centrais, mas ele os aborda através de personagens completamente incapazes de lidar com eles, de modo que seus filmes são limitados pelo seu próprio derrotismo embutido. Um momento como aquele de O deserto vermelho (Il deserto rosso, 1964) em que Giuliana, à beira de um colapso, diz que há algo terrível sobre a realidade, mas ninguém diz a ela o que é, pode servir como um exemplo das ambições de Antonioni e as limitações dentro das quais ele as realiza. Bergman até aqui se inclinou a fazer filmes a partir das suas próprias neuroses, e, nos seus trabalhos mais pretensiosos (como Prisão [Fängelse, 1949] ou O sétimo selo [Det sjunde inseglet, 1957]), a transmiti-las como comentários generalizados sobre a existência. Nos seus filmes mais recentes, através de um ato de grande coragem e determinação, ele em certa medida transcendeu a si mesmo: Quando duas mulheres pecam (Persona, 1965-1966) é essencialmente sobre os efeitos daquela exposição ao horror da existência que Giuliana vislumbra e da qual se afasta em O deserto vermelho.
No entanto, de todos os grandes cineastas consagrados, apenas Godard tem consistentemente, e de fato progressivamente, procurado afrontar diretamente a realidade contemporânea. Quando um artista alcança a posição-chave na cultura contemporânea que Godard ocupa agora, torna-se de particular importância examinar seu trabalho lúcida e criticamente, e se não for possível sanar os problemas que os filmes levantam, ao menos devemos mantê-los abertos e tentar esclarecê-los.
Uma total exposição à realidade moderna envolve dois perigos, dos quais Godard não conseguiu escapar inteiramente. O primeiro diz respeito à grande crise formal da arte moderna: a tendência de trabalhos que honestamente refletem uma cultura fragmentária e desintegrada a se tornarem eles mesmos fragmentários e desintegrados. A aceitação condescendente e generalizada disto entre intelectuais acabou se transformando em um esforço de integração, mas o problema existe, quaisquer que sejam os artifícios pelos quais os defensores do “acidental” e do “indeterminado” tentam evadi-lo. O conceito de uma obra de arte à qual se pode adicionar ou subtrair à vontade não é novo: ele remonta pelo menos a The Waste Land, um trabalho que há 40 anos tem consistentemente repelido todas as tentativas de dar sentido à sua estrutura. Mas apenas nos anos 1960 a questão se tornou realmente crítica. Hans Keller uma vez transmitiu um programa de rádio em que ele e um colega improvisaram ruídos aleatórios no estúdio, dando ao “trabalho” decorrente um nome e atribuindo a ele um (não existente) compositor. Muitos da vanguarda aceitaram sem hesitação; ninguém percebeu o embuste. Mesmo depois que o segredo foi revelado, um jovem “músico” uma vez sugeriu em minha presença, de forma bastante melancólica, que o “trabalho” poderia muito bem ter sido uma obra-prima acidental. E como alguém poderia provar que não era (exceto, é claro, por um apelo direto ao bom e velho bom senso)? Essa história é relevante, acredito, em relação ao caso de Made in U.S.A. (1966) e da sua aceitação crítica bastante difundida: os defensores não se intimidam com o fato de que ninguém parece capaz de sugerir qualquer razão sólida para se admirar o filme, ou até mesmo de elucidá-lo para além das mais genéricas declarações sobre violência.
Sob um ponto de vista, a lassitude da organização em alguns filmes de Godard é mais aparente do que real. Muito se discutiu, e com razão, sobre a unidade do seu trabalho. De todos os diretores ele provavelmente é o mais fácil de identificar: é possível encontrar uma sequência de cinco planos de qualquer filme de Godard que não denuncia instantaneamente o seu autor? Em nenhuma outra obra de qualquer cineasta as referências cruzadas de filme para filme são tão frutíferas (embora o tipo de abordagem crítica que elas incentivam tem grandes perigos). A ideia de que os filmes de Godard podem ser vistos mais propriamente como um único organismo que se desenvolve continuamente é agora tão amplamente aceita que parece necessário insistir numa verdade (à primeira vista contraditória) complementar. Se os filmes de Godard fossem apenas um diário privado ininterrupto, então o espectador estaria em perpétua confusão sobre o que vem em qual filme. Na minha experiência esse nunca é o caso. Dentro do mundo da obra de Godard, cada parte componente é um mundo próprio, inconfundivelmente individualizado, além de formalmente e estilisticamente autossuficiente.
Isso é obviamente verdadeiro para, digamos, Alphaville (Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution, 1965) e A chinesa (La chinoise, 1967), mas é também verdadeiro para os filmes aparentemente “lassos” como O demônio das onze horas (Pierrot le fou, 1965), Masculino-feminino (Masculin féminin, 1966), Duas ou três coisas que eu sei dela (Deux ou trois choses que je sais d’elle, 1967). Aqui, o que é incluído e o que é subtraído claramente não é determinado por considerações do tipo personagem-e-enredo; no entanto, é de fato muito difícil imaginar incidentes ou detalhes (por mais que sejam aleatórios) transpostos de um filme para outro. Cada filme de Godard tem um tom consistente determinado por um núcleo temático/situacional e suficientemente dominante para salientar até mesmo os mais heterogêneos e arbitrários detalhes. Mas essa unidade de tom não chega necessariamente a tornar cada filme um bem-sucedido trabalho artístico.
Na época do seu lançamento Made in U.S.A. parecia marcar uma mudança perturbadora e perigosa no desenvolvimento de Godard, uma rendição à tentação de responder às confusões da vida moderna com uma incoerência deliberada. Seu trabalho posterior felizmente o privou de qualquer significância, situando-o como um mero rabisco em uma margem que afeta os trabalhos importantes de Godard tanto quanto os rabiscos de Picasso afetam suas obras-primas consumadas; muito embora a comparação sugira como é mais perigoso rabiscar com uma câmera de cinema em um longa-metragem do que com um lápis. Ao mesmo tempo, Made in U.S.A. – como os rabiscos de Picasso – certamente não é atípico; ele prolonga uma tendência comum nos filmes de Godard. Sendo ao mesmo tempo o mais ralo e o mais obscuro dos filmes de Godard, ele confirma que a obscuridade em Godard existe sempre em proporção direta à carência de substância (com isso não quero dizer, é claro, substância do tipo narrativa-e-personagem). É impossível estabelecer uma linha firme entre rabisco e criação artística totalmente empenhada: como com Picasso, todas as gradações intermediárias entre um rabisco trivial e uma realização plenamente cumprida são possíveis, e em um filme de Godard uma coisa pode se matizar imperceptivelmente na outra na medida em que a intensidade de envolvimento criativo aumenta ou declina. A tendência de rabiscar é mais perigosa nos últimos filmes do que nos primeiros, porque a liberdade que Godard conquistou para si desestruturando a narrativa convencional facilita enormemente a indulgência dessa liberdade, essencial para a peculiar grandeza de Godard como artista. O perigo é elevado pelo clima de permissividade crítica prevalecente que, tendo decidido com razão que não é possível aplicar regras fixas a obras de arte, e sem conseguir desenvolver qualquer critério flexível aceitável, porém significativo, para aplicar a trabalhos que descartam a narrativa tradicional, está dividido entre rejeitar Godard completamente ou aceitar tudo o que ele faz. Quando os filmes desenvolvem uma estrutura de forma-e-conteúdo suficientemente forte para implicar Godard ao máximo (por exemplo, Uma mulher casada [Une femme mariée: Suite de fragments d’un film tourné en 1964, 1964] e Weekend à francesa [Week End]), os rabiscos são facilmente assimilados ao todo e não importam muito, embora eles possam oferecer tentações distrativas para a interpretação especulativa, visto que rabiscos por natureza são soltos na sua relacionalidade orgânica. Quando Paul Mayersberg afirma (New Society, 07/04/68) que a menção de “O encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin, Sergei M. Eisenstein, 1925) chamando Rastros de ódio (The Searchers, John Ford, 1956)” em Weekend à francesa é uma referência aos “dois polos do estilo cinematográfico... Poderão eles se aliar para salvar o cinema (o mundo)?”, ele oferece uma dedução plausível sobre as possíveis intenções de Godard. Cabe perguntar se o efeito não é muito superficial para sustentar qualquer peso de uma interpretação séria (e quanto a Johnny Guitar e Gösta Berling?). Poder-se-ia tecer intermináveis fantasias de interpretação a partir das referências telescopadas a Renoir/Truffaut na legenda “Arizona Jules” que pontuam o tiroteio na fazenda, mas para que isso ocorresse seria necessário ignorar o desleixo, a sua óbvia natureza de rabisco. O máximo que se pode dizer com alguma convicção é que, no contexto definido pelo final do filme e da sua legenda “Fin de cinéma”, as referências cinematográficas adquirem uma pungência retrospectiva.
O segundo perigo de uma total exposição: o artista, sensivelmente muito mais ciente do que os outros por causa do próprio funcionamento da sua criatividade, pode endurecer, talvez até chegando a destruir suas sensibilidades mais finas – as próprias qualidades das quais o apuro de sua arte depende – para desenvolver uma armadura protetora da sua insensibilidade parcial. O próprio Godard está claramente ciente disso: Paula Nelson, em um dos momentos mais comunicativos de Made in U.S.A., pergunta-se por que ela não quis vomitar desde o seu envolvimento com o mundo da ação (“Toujours le sang, la peur, la politique, l’argent”). Em Acossado (À bout de souffle, 1959-1960) Michel Poiccard, assumindo a persona de Bogart/gângster, protege e finalmente destrói a si mesmo. À época a própria atitude de Godard era ambígua, e permaneceu ambígua desde então, através da assimilação da brutalidade positiva nos seus filmes – Lemmy Caution, Paula Nelson, os revolucionários de A chinesa, os guerrilheiros hippies de Weekend à francesa –, e essa ambiguidade pode ser um meio de consentir sutilmente com tendências perante as quais o artista permanece racionalmente dúbio. Embora a ideia de que no mundo em que vivemos uma ação eficaz deva necessariamente ser brutal (e que para se atuar de forma eficaz é necessário que se amorteça deliberadamente a sensibilidade) seja perfeitamente defensável, não é possível descartar como mera afetação escrúpulos em relação a isso: a questão é se alguém pode sacrificar, em prol de um futuro hipotético, precisamente as qualidades que nos garantem vida útil, ainda que venham a parecer cada vez mais irrelevantes. Talvez a escolha seja entre Godard e desespero. Apesar de tudo, devemos nos perguntar se a tendência de Godard de tratar a violência e o horror como algo cômico (os assassinatos em O demônio das onze horas e Alphaville, o canibalismo em Weekend à francesa) não é uma forma de trapaça, ou pelo menos um aspecto da armadura protetora que é inaceitável.
O problema é extremamente complexo e delicado. Dois fatores devem particularmente ser levados em conta, ambos fundamentais para o gênio de Godard: sua política e prática habitual de distanciamento, e sua determinação em mostrar apenas o que é real. Paradoxalmente, essa determinação explica em parte por que certas coisas tendem a não serem mostradas (copulação) ou a serem intrusivamente estilizadas (morte) nos filmes de Godard. Tanto quanto possível Godard nos mostra as coisas realmente acontecendo, e acontecendo em lugares reais. Mas ainda não se pode mostrar pessoas realmente copulando na tela nem ter atores realmente mortos. Então ou você não os mostra, ou mantém o seu princípio de mostrar apenas o que é real: não um cadáver, mas um ator coberto com líquido vermelho (somos inclusive autorizados a assistir um dos cadáveres no filme respirando). Os métodos que Godard usa para comunicar dor física e a morte sem mostrar as personagens sofrendo-as são engenhosos e interessantes em Tempo de guerra (Les carabiniers, 1963, onde a morte real é introduzida através de noticiários de atualidades), mas ainda mais em Weekend à francesa. O que se pode mostrar é a verdadeira matança de um porco ou de um ganso: a realidade do sangue do animal e da sua agonia é usada para substituir as mortes humanas, ainda mais estilizadas do que o habitual. Em outra parte do filme, o esquartejamento da mãe da heroína é mostrado pelo despejo muito irreal de torrentes exageradas de líquido vermelho (ele surge indiscriminadamente de qualquer lado da tela) sobre um coelho esfolado: a carcaça horrorosa e ensanguentada que pode ser mostrada substitui aquela que não pode ser. Podemos, no entanto, questionarmos a adequação de tais substituições, e até mesmo nos perguntar se não pode haver alguma falta de sensibilidade humana em Godard que torna possível para ele vê-las como adequadas. Afinal de contas Arthur Penn, nas cenas em que Buck Barrow é ferido e assassinado em Uma rajada de balas (Bonnie and Clyde, 1967), tornou o sofrimento físico humano real de uma maneira que as contrações nervosas de um ganso decapitado parecem uma compensação minguada em comparação. Tais exemplos de horror indireto à parte, a estilização é um fator contributivo essencial para o efeito semicômico frequente da violência nos filmes de Godard.
Esta determinação de mostrar apenas aquilo que é real é claramente um aspecto da determinação mais abrangente de Godard de se expor completamente à era em que vivemos, de fazer dos seus filmes uma reflexão essencializada dessa era e de trazer seu público a uma consciência mais ampla e aguda através dos seus filmes. A função do princípio do distanciamento em relação a essa ambição é suficientemente clara. Sua prática, entretanto, pode parecer curiosamente contraditória, com a sua mais óbvia manifestação sendo a insistência de que assistimos não à realidade, mas a um filme. A contradição é mais aparente do que real: estamos, afinal de contas, assistindo atores diante de uma câmera, e ao manter-nos cientes disso Godard está sendo apenas verdadeiro consigo mesmo. Mas seus filmes são caracterizados acima de tudo pela tensão contínua entre o desejo de mostrar o que é real e o desejo de manter-nos cientes do filme enquanto filme. Este último é o caminho de Godard à completa liberdade, com os seus perigos imanentes, e também abre a possibilidade de manipular as percepções do público de uma forma mais sutil e insidiosa, a respeito da qual Godard pode muito bem não se dar conta. Nosso entendimento do filme-como-filme serve de escudo para não levarmos as coisas muito literalmente; pode também se transformar em um escudo – tanto para o diretor quanto para a audiência – quanto a levar as coisas muito a sério. Consequentemente, quando vemos Lemmy Caution passando com o pneu de um carro sobre a cabeça de um homem, ou assistimos uma garota tendo um peixe enfiado em sua vagina antes de ser esquartejada, cozinhada e comida, é a nossa consciência cuidadosamente incentivada de que se trata de atores-em-um-filme que possibilita Godard nos apresentar essas coisas como semicômicas.
O humor desempenha um papel crucial no distanciamento de Godard, e é impossível estabelecer qualquer distinção clara entre a legitimidade disto e a tendência brutalizante do humor. Não há, creio, uma única sequência nos dois filmes mais chocantes e desesperadores de Godard (Tempo de guerra e Weekend à francesa) em que um elemento de comédia de alguma forma esteja totalmente ausente. É aqui que as piadas internas, as legendas e os rabiscos desempenham o seu papel. Volto a achar o efeito extremamente ambíguo. A comédia certamente produz a distância necessária entre o espectador e o material (e também entre o diretor e o material, permitindo que Godard confronte o insuportável com algo próximo a uma imparcialidade). Ao mesmo tempo ela não pode deixar de sugerir uma adoção deliberada de indiferença (os poemas da série Sweeney, de Eliot, são bastante análogos nesta ambiguidade de efeito). Mas ela também sugere uma extraordinária resiliência da parte de Godard aos horrores (não estou pensando apenas nos horrores físicos) que seus filmes confrontam de forma tão firme. Ambos os filmes são caracterizados por uma tensão extrema entre a escuridão total e o desespero implícito dos seus conteúdos e uma forma vigilante, imparcial, irônica, cômica e exploratória. O efeito geral de Weekend à francesa não é totalmente negativo ou mesmo deprimente, embora qualquer descrição do seu conteúdo sugeriria que deve sê-lo. E isto não ocorre por causa de qualquer esquiva ou abafamento das questões: a desintegração final da civilização como a conhecemos é contemplada com absoluta clareza e ao mesmo tempo com quase nenhuma complacência. É como se Godard tivesse rejeitado incondicionalmente o desespero como uma emoção inútil: por mais que seja desesperador, é necessário seguir indagando. Se Godard morresse e fosse para o inferno, ele imediatamente olharia ao redor e começaria a tomar notas. Esse humor penetrante (do qual somos apenas ocasionalmente tentados a rir) é no geral bastante diferente do humor verdadeiramente “doentio”, o qual é essencialmente niilista e derrotista, incitando cumplicidade perante atitudes perniciosas. Porém, mesmo aqui somos imediatamente conduzidos a fazer senões: para julgar a complexidade do assunto implicado o leitor pode considerar, como um caso experimental, a questão de saber por qual razão Godard transforma o açougueiro de Weekend à francesa em uma figura cômica.
O distanciamento em Godard exige um exame mais aprofundado. Costumamos tratar como um princípio puramente artístico, como uma questão de escolha deliberada e impessoal, aquilo que na realidade está organicamente relacionado às atitudes fundamentais de Godard e pode muito bem ser uma necessidade psicológica pessoal. E há o perigo subsequente – com um diretor cujo método é tão objetivo, e cujos filmes permanecem tão pessoais – de que uma visão da existência moderna completamente individual e idiossincrática, enraizada em uma psicologia pessoal, possa se impor ao público como verdade objetiva. Há em Godard uma coerência perfeita e reveladora no tratamento de áreas da vida que podem em um primeiro momento parecer desconectadas. No seu tratamento de relações pessoais, especialmente aquelas entre homens e mulheres, impressiona o fato de que no decorrer dos filmes de Godard as personagens nunca estabelecem um contato real e nunca ajudam umas às outras. Mesmo nos filmes narrativos dos primórdios, conversas entre amantes costumam assumir a forma de entrevistas mútuas, e a entrevista ou monólogo se tornou cada vez mais a forma de comunicação padrão nos filmes de Godard. De Acossado – que termina com Patricia Franchini traindo Michel para a polícia, porque ela não ousou se comprometer com ele – a Weekend à francesa – que termina com a heroína comendo pedaços do seu falecido marido –, relações entre homens e mulheres são invariavelmente destrutivas (a única exceção, Alphaville, é estilizada e distanciada como um conto de fadas). Ao mesmo tempo há um senso igualmente consistente da necessidade de um compromisso pessoal completo entre as pessoas.
Esta ambivalência é refletida com muita precisão no tratamento de Godard do compromisso político ou social. Ainda que um interesse positivo nisto seja relativamente recente na obra de Godard, podemos traçar um desenvolvimento lógico desde os primeiros filmes. O pequeno soldado (Le petit soldat, 1960-1963) era sobre um homem tentando se ausentar do envolvimento político. Em O demônio das onze horas a história que Pierrot conta na praia sobre o homem na lua escapando tanto da doutrinação do russo como da do americano, com o intuito de fugir com Anna Karina, surgiu como uma rejeição explícita do comprometimento. Os últimos instantes de Made in U.S.A. de certo modo repetem isso, mas dando uma súbita orientação positiva: as velhas alternativas de direita e esquerda já não são mais uma oposição válida e a questão deve ser colocada em novos termos, “Como, então?” – o filme termina com um ponto de interrogação. Entre O demônio das onze horas e Made in U.S.A. foi lançado Masculino-feminino, que agora se destaca como a chave para todos os trabalhos posteriores de Godard. Foi o filme em que a entrevista-e-monólogo (já usada de maneira razoavelmente “direta” em Viver a vida [Vivre sa vie: Film en douze tableaux, 1962] e Uma mulher casada) decididamente se estabeleceu como um dispositivo formal de importância crucial para Godard. Foi também o filme em que Godard começou o questionamento direto da realidade ambiente imediata, que é desenvolvido no decorrer de Duas ou três coisas que eu sei dela e A chinesa até certos trechos de Weekend à francesa (os monólogos dos catadores de lixo argelino e africano). E é também em Masculino-feminino que o interesse positivo de Godard pelas possibilidades de ação política aparece pela primeira vez, para se tornar de importância central nos filmes posteriores. Quando Godard fez A chinesa, um rumor circulou amplamente de que ele havia repentinamente se comprometido com os princípios do comunismo maoista. Como este filme (e seus dois imediatos predecessores) ainda não teve uma exibição pública neste país fora do N. F. T.[1], talvez valha a pena insistir que não há evidência cinematográfica disto. O que A chinesa revela é um imenso interesse, no espírito de uma investigação positiva, no envolvimento com o comunismo maoista de jovens intelectuais franceses. Os filmes de Masculino-feminino em diante são cada vez mais repletos de declarações diretas para o público, mas nenhuma delas pode ser demonstrada como vinda do próprio Godard: elas são simplesmente peças de evidência, testemunhos, frequentemente contraditos ou contrabalançados por outros dentro do mesmo filme. O que é claro é que o desejo de Godard por comprometimento positivo aumentou consideravelmente nos seus filmes recentes, e os filmes são caracterizados pela tensão perpétua entre esse imenso desejo e uma análoga desconfiança intensa. Estilisticamente essa característica básica de Godard é expressa na tensão entre o impulso de confrontar a atualidade de cabeça erguida e o onipresente distanciamento, que expressa perfeitamente essa resistência ao comprometimento. Tanto o gênio peculiar de Godard, que o torna o mais importante cineasta contemporâneo, quanto as limitações que lhe são intrínsecas são determinados por essa característica. Na minha experiência nenhum outro diretor faz com que o espectador fique tão agudamente consciente do que a vida hoje impõe; ao mesmo tempo, a maioria de nós já experimentou uma exasperação considerável diante da tendência dos filmes de Godard – especialmente os mais livres – de dizer um pouco sobre tudo e muito pouco sobre alguma coisa. A exasperação é uma reação superficial a um dos aspectos mais superficiais da obra de Godard – um filme de Godard sempre é mais do que a soma de suas referências –, mas ela não é totalmente sem justificativa.
A obra de Godard revela, numa relação um tanto desconfortável de umas com as outras, tanto tendências revolucionárias como tradicionalistas. As primeiras têm sido sempre as mais óbvias, expressando-se no estilo e no método. Tradicional no seu caráter, porém, é a importância atribuída à necessidade (ainda que sempre frustrada) de compromisso pessoal definitivo entre homem e mulher. Há também a enxurrada obsessiva de referências culturais nos filmes, como se, tendo rejeitado as tradições em que a sociedade moderna é construída, Godard estivesse tentando construir a sua própria tradição, ao selecionar da tradição cultural europeia (e americana) como um todo (um processo paralelizado no trabalho de Eliot, Stravinsky e Picasso). Godard sempre, acredito, suspeitou da validade disto: ele tem permanecido perfeitamente ciente do abismo entre as artes e a maior parte da existência humana ativa. A tentativa de fundir essa tradição pessoal com uma ação dinâmica, munindo Lemmy Caution com Éluard, agora parece uma trapaça desesperada. O lado revolucionário de Godard tem sido sempre o mais forte e a sua predominância tem aumentado de forma decisiva nos filmes de Masculino-feminino em diante. Como é de se esperar, as referências culturais tenderam a diminuir em relação direta ao desenvolvimento do interesse de Godard por ação política. A sequência (ou antes plano – ela consiste de uma única longa tomada) de action musicale em Weekend à francesa é de especial importância aqui. Em um nível a cena é uma piada sobre a política adotada por Malraux de levar cultura ao povo (a própria legenda contém uma brincadeira com a palavra “ação”, nos sentidos cinematográfico e político): a sonata para piano de Mozart interpretada em um piano de cauda em um curral para uma audiência que consiste principalmente de tratores, trabalhadores indiferentes e mulheres camponesas impassíveis. Mas é também a despedida pessoal de Godard à tradição cultural europeia. É dada à cena uma elegância e simetria formal irônica correspondente à forma na música clássica. A tomada consiste na câmera circulando o curral três vezes, duas vezes em uma direção, a terceira vez ao contrário. Os primeiros dois círculos são sincronizados para corresponder exatamente às duas interpretações do pianista da exposição do primeiro movimento; durante o terceiro círculo a simetria clássica é confirmada pela passagem de um lavrador, cuja ida em direção a um celeiro foi seguida na primeira trajetória circular da câmera, em direção exatamente oposta ao primeiro movimento, paralelizando o travelling invertido. Desta forma, Godard isola a cena formalmente do resto do filme. O círculo repetido por três vezes no curral transmite uma sensação de clausura, ao insistir sobre a total irrelevância da performance de Mozart – e da sensibilidade mozartiana – para o mundo de sucatas e de desintegração geral lá fora. As dissertações entusiásticas do pianista sobre a música lembram de forma impressionante a lição sobre Shakespeare em Bande à part (1964): aqui, o senso de incongruência e deslocamento é ainda mais extremo. (É interessante que tanto Godard como Bergman, quase ao mesmo tempo, tenham utilizado Mozart para sublinhar, nas palavras de Max von Sydow, a “absoluta falta de importância da arte no mundo dos homens”).
Em Viridiana (Luis Buñuel, 1961), também, Mozart e Händel deram lugar à música pop ruidosa (“Shake your cares away”); em Weekend à francesa Mozart dá lugar às improvisações de bateria dos guerrilheiros hippies. O espírito dificilmente poderia ser mais diferente. Buñuel nos dá muito simplesmente o fim: não há nenhum senso de qualquer prolongamento ou recomeço possível. O que torna Weekend à francesa tão mais insuportável é a recusa de Godard em ver o fim da civilização como final. É insidiosamente lisonjeador para o ego liberal-humanista conseguir igualar o fim da civilização ocidental com o fim do mundo. Mas Weekend à francesa não é sobre o fim do mundo – é simplesmente sobre o fim do nosso mundo. Simplesmente ousar imaginar Weekend à francesa é um ato de heroísmo de um tipo somente possível a um artista que atingiu um nível excepcional de liberdade pessoal. O filme postula, bastante convincentemente, a irrelevância, a inutilidade e a desintegração definitiva de tudo aquilo em que eu sempre acreditei e considerei digno de trabalhar a favor, e nisto não acho que posso ser único ou mesmo singular. Daí a minha dificuldade em tolerar o deleite bastante complacente, apenas meio chocado, com que muitas pessoas o receberam. (Mas Godard é parcialmente responsável por isto: piadas do tipo “Arizona Jules” podem ser necessárias para o filme ser de alguma forma suportável, mas ao mesmo tempo elas encorajam uma resposta de esperteza complacente do tipo “identifique-as-alusões”). Weekend à francesa deve de fato ser tomado muito a sério, suas implicações e atitudes submetidas ao exame mais rigoroso.
Weekend à francesa leva a extremos lógicos praticamente tudo o que se fez presente em trabalhos anteriores de Godard. Todos os seus sentimentos sobre a sociedade capitalista (cujos representantes nos filmes anteriores vão desde os convidados da festa em O demônio das onze horas aos habitantes do descampado em Tempo de guerra) alcançam a expressão definitiva na sua representação das relações e dos valores das personagens de Weekend à francesa. Brindados com a concretização dos seus desejos, o casal burguês “educado”, como os semialfabetizados de Tempo de guerra, só consegue pensar no que há de mais ordinariamente material – hotéis em Miami Beach e fins-de-semana com James Bond. A experiência sexual, impulsionada por diversão às perversões mais estranhas, tornou-se uma questão de inanidade e desconforto farsescos. As relações se assemelham a uma paródia grotesca dos filmes anteriores de Godard: cada cônjuge vem tentando assassinar o outro por algum tempo; enquanto a mulher é estuprada em uma vala por um vagabundo andarilho, não apenas o marido (que se recusou a acender o cigarro do vagabundo) não demonstra a menor indignação ou interesse, como nem mesmo ocorre à mulher repreendê-lo posteriormente. Ao fim do filme ela se regozija em comê-lo, não sob qualquer espírito de possessividade simbólica, mas simplesmente por se tratar de um saboroso pedaço de carne. Godard nos mostra um mundo que está se desintegrando primordialmente a partir da sua pervertida depravação e degradação. Isso é aceitável como uma representação selvagemente caricatural da natureza essencial da sociedade materialista; ainda assim vale a pena recordar – mesmo que isto soe ingênuo – que essa sociedade consiste de milhões de seres humanos, corrompidos sem dúvida pelo materialismo em maior ou menor grau, mas esse “maior ou menor” permite uma ampla gama de possibilidades humanas. A simplificação torna muito mais fácil para Godard aceitar a necessidade de (bem como a inevitabilidade de) total impiedade.
Godard usa os monólogos “terceiro-mundistas” do argelino e do africano como um ponto focal para o filme, pontuando-os com flashbacks de cenas precedentes (mas geralmente usando ou tomadas alternativas ou prolongamentos não mostrados anteriormente) e um flashforward dos guerrilheiros. Os monólogos enfatizam a necessidade de violência e brutalidade entre os povos emergentes, e o dispositivo formal relaciona isto a todas as outras partes do filme, conferindo-lhes uma significação mais generalizada, situando-os no contexto da civilização ocidental e a sua desintegração. Os canibais-guerrilheiros-hippies emergem ao mesmo tempo como a consequência lógica do que se passou antes e a possibilidade de um novo princípio. Este último está presente no filme apenas provisoriamente: é difícil sentir que os guerrilheiros são outra coisa além de completamente negativos, mas não é totalmente impossível. Eles representam o tipo de reação que a sociedade que nos foi mostrada deve produzir: desumanizados (do ponto de vista de qualquer conceito civilizado de humanidade), brutalizados, quase que totalmente destituídos de quaisquer sentimentos generosos e extrovertidos para com outros seres humanos (uma característica que compartilham com virtualmente todas as personagens de Godard). Na cena em que são introduzidos eles massacram um grupo de burgueses que fazem um piquenique, incluindo presumivelmente uma criança (apenas vemos os disparos de metralhadora, com as vítimas fora do quadro, o que pode ser visto como distanciamento ou simples trapaça, dependendo de quão favorável seja o sentimento para com Godard). A imagem recorrente de um ou outro dos guerrilheiros improvisando em uma bateria de percussão com uma autoabsorção solitária parece central para a apresentação: a percussão (de tão grande importância no desenvolvimento da música contemporânea) tem em si uma qualidade desumanizada, representando um despojamento de toda sensibilidade emocional a um nível de experiência puramente nervosa-física. Os “ritos” canibalísticos (se é disso que se trata) com ovos e peixe vivo são a concretização da fantasia da heroína (se é disso que se tratava) no começo do filme; mas privados inclusive do erotismo degradante que era o seu raison d’être. E isto nem sequer é substituído – como sugeriram alguns – por um senso de ritual tribal: a ação é apresentada como inteiramente arbitrária e insignificante, sem a menor significância comunitária. (É difícil saber em que grau o repúdio que a cena causa é provocado pelo seu conteúdo real e em que grau pelo nosso sentimento de que Godard se diverte com ela.) Não há absolutamente nenhum senso de qualquer objetivo ou programa construtivo.
Mas se os guerrilheiros parecem, de maneira mais evidente, um fim ao invés de um início, existe entretanto um forte sentimento de que algo novo poderá crescer a partir deles; mas seria algo que não leva em consideração virtualmente tudo o que a maioria de nós valoriza na tradição civilizada, tanto em termos de sensibilidade como de concretizações. Os guerrilheiros fornecem ao filme seu único momento de ternura transitória, no momento em que após um tiroteio a garota morre cantando nos braços de um jovem rapaz. Ele vai embora imediatamente com outra garota. Mas mesmo o ínfimo fato dele segurá-la até ela morrer vale algo no contexto do comportamento humano retratado no resto do filme; e o espírito por trás da aparente indiferença é bastante diferente – dada a precariedade de suas existências, os guerrilheiros estão vivendo sob o código pelo qual eles precisam viver. A posição deles é fundada sobre uma honestidade terrível, totalmente sem ilusões ou ideais, uma aceitação da bestialidade inata do homem. Há um claro contraste entre a declamação com o som da bateria no lago e a diatribe de Saint-Just na campanha: o discurso veemente do primeiro discurso dá lugar à aceitação do horror do homem, e é precisamente nesta nota que o filme acaba: o guerrilheiro falando sobre o horror insondável da natureza humana enquanto ele e a heroína comem uma mistura de carne de porco, turista inglês e pedaços do marido dela. Daí a legenda final, “Fin de cinéma” (no lugar de “cinéma” ler “as artes”): se o futuro postulado por Weekend à francesa, com o seu equilíbrio perturbador entre o horror e a esperança, eventualmente acontecer, ele implicará na destruição final de todos esses sentimentos humanos mais finos que a tradição cultural europeia (Mozart em Weekend à francesa) encarna.
Penso que se pode estabelecer uma comparação reveladora entre Weekend à francesa e outro grande filme sobre desintegração social, Caçada humana (The Chase, Arthur Penn, 1966). O filme de Penn, é algo que se percebe imediatamente, tem todas as qualidades humanas que faltam ao de Godard: um sentimento da possibilidade de relações maduras e adultas (Brando e Angie Dickinson), da possibilidade de ternura e de calor humano nas reações de solidariedade entre as pessoas (Jane Fonda-Robert Redford-James Fox), e uma capacidade de ver seres humanos, até aqueles em grande parte desprezíveis, com todos os seus matizes e uma certa generosidade. Mas é a posse dessas qualidades que torna impossível para Penn apresentar outra coisa que não uma visão trágica e desesperadora da vida, ao passo que é precisamente a ausência delas que permite Godard ir além disso. Isso torna Weekend à francesa o filme mais assustador, excitante e desafiador a que eu já assisti: o desafio reside no seu otimismo horripilante.
Nota:
[1] “National Film and Television School”. [N.T.]
(Movie n.º 16, inverno de 1968-1969, pp. 29-33. Traduzido por Bruno Andrade) |
2016/2021 – Foco |