O CINEMA É A MÚSICA DA LUZ[1]
por Abel Gance



O cinema é a música da luz e eu não sei de nada comparável a ele. Ésquilo, Shakespeare, Dante ou Wagner se serviriam dele, obedecendo assim ao preceito de Horácio: “O que se expõe à vista toca bem mais do que o que se aprende por uma narrativa”, ou àquele de Oscar Wilde: “A Arte é a conversão de uma ideia em uma imagem”.

O cinema nasceu, mas os artistas de valor hesitam e os ecrãs esperam, os ecrãs, esses grandes espelhos brancos sempre dispostos a devolver, para as multidões atentas, o Grande Rosto Silencioso da arte do sorriso mediterrâneo.

Mas alguns Cristóvão Colombo da luz já se delineiam... e o bom combate de pretos e brancos vai começar sobre todos os ecrãs do mundo, as portas da nova arte estão abertas, as imagens inumeráveis se atropelam e se oferecem, múltiplas, às nossas possibilidades. Tudo é ou se torna possível: Uma gota d'água, uma gota de estrelas. O Evangelho de amanhã, a arquitetura social, a Epopeia científica, a vertiginosa visão da quarta dimensão da existência com a aceleração e a retardação. As coisas mais inanimadas correm para nós como mulheres ansiosas por voltar[2] e nós as olhamos na luz mágica como se jamais as houvéssemos visto.

O cinema se torna uma arte de alquimista, da qual podemos esperar a transmutação de todas as outras se soubermos tocar o coração: O coração, esse metrônomo do cinema!

Cinema: telepatia do silêncio, luminoso evangelho de amanhã.

Cervantes diz a Sancho, através de Dom Quixote, esta frase admirável:

“Eis a vida, meu amigo, infelizmente! com a diferença de que esta não vale aquela que nós vemos no teatro!”.

Que defesa mais sublime da arte em geral, da nossa em particular. Como o reflexo do fogo no cobre é mais belo do que o fogo, mais bela, no gelo, a imagem de uma montanha, também a imagem da vida é mais bela na tela do que a vida ela mesma. De uma só vez, os valores se afirmam e se refinam pelo quadro que os isola, selecionando-os.

O cinema, esta arte prestigiosa onde se dirige uma orquestra de luz, contém uma força oculta ignorada, que depende bem mais daquilo que ele sugere do que daquilo que ele mostra. Posso mesmo dizer, para dar uma definição lapidar, que ele é a tradução do mundo invisível para o mundo visível, e que esta possibilidade lhe confere o primeiro lugar na linguagem internacional de amanhã.

Há aí uma sorte de milagre, e eu agradeço de joelhos à ciência moderna por nos haver dotado de uma arte tão sóbria, enriquecida por uma tal mobilidade, um tal dinamismo e uma tal onipotência.

O cinema como meio de difusão das mais belas ideias dos homens, eis o propósito que eu lho designo. Ele deve nos dar espécies de Evangelhos visuais, Epopeias para os olhos, com heróis antecipadores traçando caminhos do porvir.

Se pobres pessoas entram nos cinemas, cansadas de tristeza, a figura abatida pela vida, e após nossos filmes saem com um pouco de luz nos olhos, com reconforto e coragem para os dias seguintes, então consideremo-nos bem pagos por nossos esforços.

Na dianteira do navio da Vida, precisa-se de cantores, para conservar a esperança dos remadores e lhes assegurar que a tempestade vai passar.

É nossa tarefa, mágicos para os olhos, cantar com a música das imagens, abrir as rotas desconhecidas da Sétima Arte e elevar os corações mais alto, sempre mais alto.

Minha opinião geral sobre o cinema é de que ele carrega uma tal potência de evocação, que deve ser utilizado para trazer, aos homens cansados, fatigados, às vezes fartos de seu trabalho cotidiano, um reconforto e satisfações íntimas de descanso e de alegria; e há também outras coisas misteriosas que eu não quero dizer ainda.

A luz e a música se encontram bruscamente, após séculos caminhando sem perceber que o faziam lado a lado. Elas se maravilham uma com a outra.

“Tu me emprestarás tua voz”, diz a luz.

“Tu me emprestarás teus olhos”, diz a música.

E a Sétima Arte nasceu.

Sobre as películas virgens a arte é abundante, como jamais se encontrou nas pedreiras de Paros ou sobre as telas dos pintores. Perceba: Beethoven já não está sozinho; ele está aí, mais forte que Rembrandt e mais forte ainda que Shakespeare. Sua ardente trindade trabalha ao mesmo tempo para que os cegos e os surdos sejam confundidos. Eu poderia escrever dez páginas sobre a tragédia de um sorriso de mulher na tela, segundo a profundidade dos planos, a harmonia da iluminação, as significações da imagem que a precede e daquela que a segue, a deformação óptica voluntariamente buscada e mantida em uma dominante, a qualidade da imprecisão da boca ou dos cabelos, a soma do valor oculto “psíquico” que de algum modo se transmuta, que fixa a Beleza sem paralisá-la e estilizá-la, tão-somente tomando da natureza mesma sua matéria a mais autêntica, e mil outras coisas que Aladim bem sabia, mas me desviaria da minha linha de conduta. O cinema deve produzir sua prova por si mesmo.

Eis porque eu me esforço em perder o sentido da escritura e da palavra; para ser um dos primeiros a timidamente ensaiar me servir do Silêncio.


Notas:


[1] Até onde sei, este texto foi publicado primeiramente em Comœdia, a 16 de março de 1923, e com o título Le cinématographe c’est la musique de la lumière. A presente tradução deriva de publicação posterior em Cinéa-Ciné Pour Tous, nova série, n.º 3, 15 de dezembro de 1923, e com o título Le cinéma, c’est la musique de la lumière. Ambos os volumes se encontram em https://gallica.bnf.fr/. [N.T.]

[2] ... “comme des femmes désireuses de tourner”... Sentido ambíguo: tourner é tanto “voltar” quanto “filmar”, no sentido de “tourner un film” – “rodar um filme”. A frase poderia então ser traduzida assim: “As coisas mais inanimadas correm para nós como mulheres ansiosas por filmar”. [N.T.]


(Traduzido por André Barcellos)

 

VOLTAR AO ÍNDICE

 

 

2016/2021 – Foco