CLIO VELA[1] (ERA UMA VEZ NO OESTE, Sergio Leone, 1968)
É a propósito do western americano que talvez apareçam agora mais claramente – porque no âmbito de um gênero do qual se tornará possível doravante se desenhar uma história ao mesmo tempo complexa e fechada – as relações “realistas” que o cinema mantém com a História e a Ideologia. O western, com efeito, nada mais é do que o traço de um trabalho da ideologia sobre a história, a primeira inventando para a segunda, pelo viés da mitologia, uma espécie de justificativa moral. Nessas condições, tratava-se de nada menos que justificar a história imperialista dos Estados Unidos, e das suas instituições democráticas, por meio de uma epopeia da liberdade contida na lei (ver as análises de André Glucksmann[2] no volume 10/18 sobre o western). Ora, por razões atualmente semiclareadas (a crise do imperialismo americano ou, ao contrário, sua posição muito bem assegurada), o western hollywoodiano começou a perder fôlego, a se repetir, no momento exato em que se impunha como o gênero mais popular do Ocidente, sem que com isso a demanda do público por westerns se enfraquecesse.
Em seguida (precisamente sobre essa demanda, e com outros fatores da produção italiana contribuindo, cf. a nota decisiva de Serge Daney, Cahiers nº 216) chega o western italiano, e os sucessos inesperados (e inicialmente despercebidos na França) de Por um punhado de dólares (Per un pugno di dollari/Fistful of Dollars, 1964) e os outros três westerns consecutivos de Sergio Leone. Percebemos que estamos diante de um caso típico de furto e enxerto cultural bem-sucedido, e que consequentemente o problema da “autenticidade” desses westerns não tem sentido algum.
Não foram importadas, evidentemente, nem uma ideologia nem uma história, mas o produto acabado dessas duas em conjunto: uma retórica. Isto é, uma rede complexa de personagens, temas, situações, possibilidades, acessórios, cenários, figurinos, contanto que ela esteja sujeita somente a variações e combinações pautadas por um código cuja necessidade permanece não dita.
E de fato, sem dúvida, esse empréstimo só pode ser feito do exterior[3]; pois é fora de questão que se tenha, por assim dizer – numa determinada ideologia, ainda que moribunda –, o recuo necessário para se fazer um empréstimo cínico de si próprio, daquilo que se autorizava a si mesmo justamente pela própria necessidade da ideologia.
Leone (e com ele todo o western italiano), portanto, toma emprestado do western americano ao desenraizá-lo a comodidade de um sistema inteiramente constituído de figuras que, não tendo mais que justificar suas posições sobre um real, pode de agora em diante funcionar livremente, ou seja, como um código gratuito. O empréstimo não é pequeno: nada menos que uma concessão, um quinhão fora da História.
Ora, o que há de especificamente admirável em Era uma vez no Oeste (C’era una volta il West/Once Upon a Time in the West) é que encontramos a prova de que não nos livramos da História tão facilmente assim.
Em primeiro lugar, trata-se de um filme cuja preocupação com a precisão histórica é muito grande (cf. as diferentes reconstituições: a cidade, a estação, o estábulo, o saloon etc.). Isso é facilmente compreensível. Pois se o Oeste mítico de Cecil B. DeMille, Ford ou Mann não precisava se preocupar em ser documental, sendo ele próprio documento – documento ideológico americano, imagem de um povo contemplando a si mesmo –, o de Leone, ainda que seja mais fantasioso (e com recuo veremos sem dúvida aquilo que ele revela, e que nos diz respeito, de mitologias de vestuário, decorativas e outras), deve paradoxalmente tender à exatidão. Como ele não se inventa de uma ciência infusa, é preciso que ele nasça de um certo saber. O qual só será arqueológico na medida em que for monumental.
Em contrapartida, a História está presente – sob uma forma muito mais sutil aqui do que em Três homens em conflito (Il buono, il brutto, il cattivo/The Good, the Bad and the Ugly, 1966; o episódio da Guerra de Secessão, ver a crítica nos Cahiers nº 200-201) – como uma espécie de repoussoir[4] da ficção que, ao fim do filme, é literalmente reabsorvida diante dela. As personagens foram ou eliminadas fisicamente (Ferzetti, Fonda, Robards) ou esvaziadas de seu papel tão logo este tenha sido desempenhado, como Bronson[5]. A História em Leone não é senão um espaço totalmente distinto da ficção, diante do qual a ficção morre, se redobra como uma cauda de pavão, após ter ostentado seus esplendores e suas vaidades[6].
Com a História devidamente posicionada, portanto, a retórica pode se exercer como seu exterior, mas ela deve, para compensar essa liberdade, aplicar-se a esse exercício com o mais extremo rigor, e por assim dizer com o máximo de suas forças. Era uma vez... é, acima de tudo, uma obra-prima da retórica.
Os pontos de aplicação em detalhe das deliberações e pesquisas são múltiplos. Para citar, de maneira incompleta, apenas as manobras de articulação dos planos entre si, notamos, entre outros “tiques e tropos”:
– articulações espaciais em função de uma dinâmica a mais ressaltada possível dos ângulos, relevos das figuras desenhadas na profundidade de campo, uma espécie de política de ostentação do espaço (a “recepção” de Bronson na estação);
– articulações sonoras, por exemplo, entre sons de alturas similares (o tiro de Fonda na criança em raccord com o apito do trem que traz Cardinale);
– jogos rítmicos, rimas de movimentos entre os closes (o duelo Fonda/Bronson) etc.
O conjunto do edifício é constituído de maneira totalmente acrobática[7], desafio de um elemento sobre o desafio de outro. Acumula-se os tempos fortes; em todos os sentidos – lentidões, repetições, nervosismos, curtos-circuitos – vai-se até o excesso do dispêndio. O intervalo entre os efeitos propriamente ditos funciona também como efeito, e não apenas como acumulador de energia em relação aos momentos de descarga. A audácia, evidentemente, é que se chega a uma escritura totalmente serena porque completamente enfática, não apenas pontuada, mas integralmente tônica entre vários tipos de acentos: sem falar dos efeitos de mise en scène preparados e atingidos infalivelmente (às vezes um pouco infalíveis demais – cf. o revólver na bota –, mas a fatuidade faz parte do sistema), os belos planos abertamente esmerados, os closes lancinantes, os temas morriconianos reiterados, as estrelas introduzidas com tambores e trombetas – enfim, tudo é atirado aos olhos, às orelhas, aos reflexos pavlovianos do espectador, tudo é permitido, contanto que a cada instante o cinema aja e se veja agir.
O resultado, claro, é um narcisismo cinematográfico atrevido, um cinema que remete apenas a si mesmo e às suas próprias mitologias, e desesperançado, de maneira aparentemente definitiva, de poder sair desse círculo. O que não se dá sem má consciência: a tal ponto que o jogo duplo, que no início poderia parecer tão duvidoso, entre a eficácia e a contemplação (de um lado o cinismo da habilidade, a política comercial que garante o grande público... do outro a piscadela aos intelectuais, gongorismos comprobatórios e todos os êxtases estéticos permitidos) – esse jogo duplo, inteira e exclusivamente retórico, nunca é demais enfatizar, reinscreve o filme na História, na nossa história. A saber, aquela de uma má consciência burguesa apartada do real e refugiada na Arte: não inteiramente refugiada, contudo, pois tendo denunciado esse refúgio em sua vaidade (a retórica foi gerida – sem dúvida com todas as complacências poético-suicidárias, cf. a magnífica morte de Robards – como o exterior presunçoso e condenado da História), Leone não se instala nele.
Todo o cinema europeu digno de consideração se debate atualmente nesta contemplação masoquista de sua própria morte. É em Leone, então, que aqueles que nunca se viram morrer com prazer (e mesmo aqueles que querem acelerar um pouco o processo) atiram a primeira pedra.
Notas:
[1] Entre as nove musas gregas, Clio foi a inspiradora da história e da criatividade. Sylvie Pierre parece sugerir, através do título do texto e da imagem que o acompanha (captura de um plano da cena em que Jill presencia o sepultamento da família McBain), que o trabalho da personagem interpretada por Claudia Cardinale no filme é o de velar os cadáveres acometidos pelo próprio movimento do filme, tão bem descrito por Pierre, no qual a História é aglutinada pela retórica. [N.T.]
[2] “Le western ou les aventures de la tragédie” em Le western, Raymond Bellour (dir.). Paris: U.G.C. 10/18 (1966). [N.T.]
[3] A menos que caia no reaproveitamento industrial, no qual, justamente, o processo de auto-alimentação da retórica é inconsciente – corolário unicamente da pobreza de invenção real. E com exceção ao caso de Monte Hellman, o único até hoje que realizou westerns “culturais” com êxito na América, fundados deliberadamente numa utilização puramente formal da retórica do western. Ele próprio, aliás, também parece na mais perfeita inconsciência, mas uma inconsciência poeticamente produtiva, sem dúvida à custa de muito rigor, convicção e intuição cinéfila.
[4] Repoussoir: técnica de pintura em que um elemento é inscrito numa das bordas do quadro, em primeiro plano, “empurrando” o olhar do espectador para dentro do quadro, conduzindo-o para o fundo, à profundidade de campo. [N.T.]
[5] Para Cardinale é ainda mais fácil: ela não tem nenhum papel a desempenhar nesta ficção. Ela (herdeira), sobre quem todo o edifício deveria se sustentar, simplesmente se deixa violar por Fonda (sem sequer manter o juízo), esbofetear-se por Bronson e ser apalpada no traseiro por Robards (afetuosamente, é verdade). Acima de tudo, ela renunciou sem combater, e neste universo em que todas as personagens se precipitam à ideia genial para pôr o mundo no bolso em um instante, ela não teve nenhuma ideia a tempo. E haveria sem dúvida ainda muito a se dizer sobre o apaixonante encontro Bertolucci/Leone no terreno de uma misoginia extravagante. Contudo, esta mulher manipulada e passiva é a única que permanece intacta e mantém um papel a desempenhar após o aniquilamento da ficção. Pequeno papel, é verdade (o direito de observar, mas dos outros para ela), mas um papel que faz dela (uma vez que a conecta, e ela apenas, ao trabalho da linha da estrada de ferro) a única personagem histórica – não-retórica – do filme.
[6] E talvez seja precisamente pelo fato de que os domínios da ficção e da história se encontram tão claramente distintos que assistimos aqui ao nascimento de um western, senão histórico, ao menos que se agarra rigorosamente à exigência de não ocultar a História pela Ideologia. As personagens, em particular, obedecem tão-somente às manobras da máquina ficcional, nunca a instâncias ideológicas. Assim, eles estão isentos de toda exemplaridade moral (ver a magistral ironia com que o maniqueísmo já havia sido resolvido em Três homens em conflito, do qual este era o próprio assunto), diferentemente dos heróis dos westerns americanos, que não podem disparar um único tiro sem questionar a idéia que a América faz de si própria. Suas motivações e seus sonhos veiculam apenas seus valores poéticos, e mesmo os patifes têm belas motivações: Morton e o mar. Em todo caso, é certamente aí que reside o essencial do valor crítico de tal cinema.
[7] Cf. A ideia genial, demasiado genial, quase mesquinha tamanha a pertinência que ela comporta justamente em relação à proposta retórica do filme, desta inacreditável recordação traumática de Bronson: ou como a lembrança pungente de uma acrobacia malsucedida por emoção pode, e por meio de quais desvios, suscitar uma (o filme) bem-sucedida por meio do cálculo.
(Cahiers du cinéma n.º 218, março de 1970, pp 53-55. Traduzido por Calac Nogueira) |
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