ERA UMA VEZ NO OESTE, Sergio Leone, 1968
Era uma vez no Oeste (C’era una volta il West/Once Upon a Time in the West) marca o apogeu (e talvez a fadiga) de uma série de filmes assinados por Sergio Leone cujo interesse é a priori imenso: eles constituem a primeira tentativa, ainda que pouco consequente, de cinema crítico, ou seja, não mais em contato direto com a “realidade” (mesmo se às vezes o recurso à verdade histórica – que Leone conhece bem – possua um valor estratégico), mas com um gênero, uma tradição cinematográfica, um texto global, o único que conheceu uma difusão mundial: o western. Não é pouco.
Como um cinema crítico é possível? Depois de muitos anos os americanos renunciaram ao western racista e beato (DeMille); por isso, a partir dos anos 50, um surto de filmes humanistas (Daves) ou crepusculares (Ford, Peckinpah). Senso crítico, mas não cinema crítico. Este só poderia ser elaborado do exterior. Mas de onde? De um dos raros países que também possuía um cinema de série, paralelo, tradicional e popular: a Itália. Ou, mais exatamente, Cinecittà no momento preciso em que o peplum desaba, minado por paródias (Sergio Leone já está aí). Ora, o essencial está aí: não que um demiurgo qualquer tenha decidido um dia fazer um cinema crítico, subversivo e vagamente político, mas que esse cinema seja antes de tudo (ou em última análise) o único produto de uma evolução econômica. Para a Cinecittà trata-se somente de reinvestir homens, cenários, figurantes e capital em um novo gênero de filmes. É um caso de amortização. Essas origens vis e baixamente comerciais fazem (farão/fariam/poderiam ter feito: o futuro nos dirá) a grandeza do western italiano. Por duas razões (pelo menos). 1) Porque tem havido até hoje razões ruins para se amar os filmes B e porque convém modificá-las. Admitamos que nos poucos países em que o cinema constitui uma grande indústria, o cinema B forma uma espécie de lúmpen-cinema, bom no máximo para lubrificar a máquina, amado de maneira esnobe e contrabandista (em uma espécie de obreirismo cinéfilo), não podendo aspirar à qualidade, nem mesmo à consciência clara dos elementos (temas, situações) que ele confecciona porque esta (a consciência) é reservada aos filmes de qualidade: digamos, mais para Zinnemann que para Dwan. 2) Admitamos hoje que na Itália é possível alguma coisa que Hollywood não podia concretizar: a tomada de consciência desse lúmpen-cinema, efetuando, sob a máscara de formas ancestrais (portanto, sem renegar seu caráter popular), um eufórico trabalho de desconstrução. “Uma força não sobreviveria se, inicialmente, não tomasse emprestada a aparência das forças precedentes contra as quais luta” (Nietzsche).
Esse trabalho pode ser bem conduzido sob uma condição: que o western italiano conserve seu caráter de massa. Não se trata mais, sucumbindo à obsessão pela unidade, de desmistificar em um único filme toda uma tradição, todo um conjunto de convenções e de reflexos, os resultados práticos desta operação sendo nulos mesmo se os filmes são belos (cf. Tourneur). Isso quer dizer que o western italiano deve ser produzido em massa e para as massas. E isto apesar do grande obstáculo: a recuperação pelo cinema de qualidade (o filme de arte, a burguesia) de individualidades demasiadamente conspícuas, o que é o caso, hoje, de Sergio Leone.
Quanto aos meios desse trabalho, eles começam a ser conhecidos (mas admitamos que só foram seriamente utilizados nos filmes de Leone e nos do misterioso Sollima). Eles consistem ora em mostrar o que o western clássico ocultava, ora a exagerar o que ele mostrava. A força dos filmes de Leone está em exaurir a retórica habitual do western, em fazer da inflação o equivalente de uma negação. Em relação a isso seria interessante mostrar como ao western habitual, construído sobre trechos excepcionais (Matar ou morrer [High Noon, Fred Zinnemann, 1952], O homem dos olhos frios [The Tin Star, Anthony Mann, 1957]), Leone opõe uma sucessão ininterrupta de tempos fortes que se anulam reciprocamente: ao máximo de intensidade corresponde um mínimo de significado. Interessante também ver como esse cinema se dá a escolha dos meios (também chamada de gratuidade por todo um rebanho bem-pensante que deve ser submetido com urgência à leitura dos textos decisivos de J.-J. Goux), como da beleza (atores e paisagens), da justeza, de tal ou tal estilo de narração (elipses ou longas durações) se faz um uso estratégico a tal ou tal momento. (E isto no caso de Sollima e do magnífico O dia da desforra [La resa dei conti/The Big Gundown, 1966].) Etc. Quanto a Sergio Leone, de quem pouco foi questão aqui, é igualmente possível empreender desde hoje a decriptação de uma “obra” que já é pletórica em tiques e em tropos.
(Cahiers du cinéma n.º 216, outubro de 1969, p. 64. Traduzido por Bruno Andrade) |
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