DEFESA E ILUSTRAÇÃO DA DECUPAGEM CLÁSSICA
Sabemos a força com a qual Jean-Paul Sartre certa vez atacou François Mauriac: ele disse que o autor de Les anges noirs não soube dar aos seus heróis essa liberdade com a qual nossas vidas estão envoltas, esses repentinos impulsos de modificar a ação prevista, e que por uma paródia infame os fez hesitar apenas para simular melhor a magnificência de Deus. Mas também, que vaidade querer, a todo custo, atribuir à linguagem a parte de metafísica que ela só poderia, em ocasiões extremas, conduzir ao sublime. Considere, antes, com Diderot, que a moral e a perspectiva são as duas qualidades essenciais para o artista, e que Baudelaire diz tão-somente isso quando escreve que o belo é feito tanto de um elemento eterno e invariável, cuja quantidade é extremamente difícil de determinar, como de um elemento relativo que será – se assim se quiser, alternadamente ou em conjunto – a época, a moda, a moral, a paixão. Ou seja, sobre uma arte toda feita de desrespeito, de um pudor que não sabe esconder seus segredos; sobre a mais religiosa das artes, pois coloca o homem diante da essência das coisas, mostrando a alma pelo corpo; sobre o cinema, enfim, sentimos as chances de que o julgamento se extravie. Ainda hoje nossos críticos se exaurem em trabalhos incríveis, eles conseguem a façanha de obscurecer os conhecimentos mais simples e mais claros; eles se cercam de filosofia, quando desejo apenas que um autor me faça pensar nele, no seu belo espírito, e não nas pessoas que ele faz falar; quero, para citar Fénelon, “um sublime tão familiar, tão doce e tão simples, que qualquer um ficaria persuadido a crer que o encontraria sem dificuldade, embora poucos homens sejam capazes de encontrá-lo”. Muito brilho me incomoda e me cega; prefiro o agradável e o verdadeiro ao surpreendente e maravilhoso. Por outro lado, parece que a crise da literatura contemporânea faz com que, depois de vinte e cinco anos, o cinema responda a erros que pertencem apenas à literatura. Na nossa época, portanto, escreve-se muito mal, visto que ela se encanta com discursos tão primorosos, os do cinema americano (a elegância sóbria, a execução descomplicada desencoraja frequentemente os elogios); ela confunde sua imaginação com o seu coração e acaba se enraivecendo a ponto de eliminar as qualidades morais, através das quais, entretanto, imaginação e coração podem ser supridos. Esquece-se que essa facilidade não data de hoje, que a aptidão dos cineastas do outro lado do Atlântico encontrou outrora o seu eco no nosso adorável e infeliz século XVIII. Todo mundo escrevia muito bem (basta ver em quais circunstâncias foi escrito La religieuse) enquanto eventos muito graves transcorriam.
Minha proposição não é de forma alguma um paradoxo. Eu gostaria de relacionar alguns pontos comuns entre a arte do século XVIII e a mise en scène desses últimos anos. Estes se encontram primeiramente na atitude do artista diante da natureza; ele a admite como o modelo primeiro da arte. Vemos então que não foi o cinema que herdou do romance uma técnica de narrativa, mas o romance que herdou essa técnica de uma arte do diálogo, perdida, digamos, desde Corneille? Ó, quantos imaginam a Bérénice, a Phèdre dos seus sonhos, que deixa no ecrã o traço dos seus olhos lacrimejantes! Mas temo que a harmonia, fosse ela do mais belo canto, não basta à mais virtuosa das artes, que é necessário que ela se deixe enredar pela verdade; que, segundo a bela palavra de Delacroix, ela corrija a realidade desta perspectiva que nosso olho se contenta em não falsear. Quero dizer com isso que ela sabe não se contentar de forma alguma com a imitação de uma realidade completamente “fisgada ao acaso” (Jean Renoir). Se o cinema de fato fosse apenas essa arte da narrativa que alguns querem glorificar teríamos muito prazer, ao invés de tédio, durante essas longas passagens que desejam, antes de tudo, expor corretamente os motivos menos confessáveis do assassino ou da coquete. Mas ele é um olhar a cada instante tão novo sobre as coisas que ele as penetra mais do que as solicita, captando aquilo que nelas engendra a abstração. Recorrerei a um exemplo apenas, emprestado do autor de A regra do jogo (La règle du jeu, Jean Renoir, 1939). Menos herdeira dos mestres do impressionismo que de Henri David e de Poussin, a mise en scène de Jean Renoir possui efetivamente esse estilo da coisa que consiste em mostrar o detalhe sem separá-lo do conjunto. Se o cineasta utilizou, no decorrer de Madame Bovary (1933-1934), a mise en scène “em profundidade”, ele o fez para imitar a maneira sutil da natureza esconder a conexão de seus efeitos; se ele elabora os eventos não é para melhor encadeá-los, pois ele se preocupa mais com a brutalidade das emoções do que com o contágio que elas causam.
Essa é a condição da dialética cinematográfica: é preciso viver ao invés de durar. De nada adianta matar seus sentimentos para viver de velhice. Se o surgimento da comédia americana é tão importante quanto o do cinema falado é porque ela restaurou a rapidez da ação e permitiu se entregar ao pleno gozo do momento. É verdade que nós desaprendemos a ver; do sobressalto de um ombro imaginamos apenas o pavor, do franzimento das narinas a cólera, menos ansiosos de decifrar a intriga nas suas reviravoltas do que na sua exposição. Eu direi, portanto, que a comédia americana deve menos às farsas de Mack Sennett que a D. W. Griffith, e, talvez, menos ao cineasta de Uma noite de terror (One Exciting Night, 1922) que ao de Minha rainha (Queen Kelly, 1928-1932), ou, em outras palavras, para além de Stroheim, ao expressionismo alemão. Essa escola acabou – por uma justa lógica, aliás – no filme de music hall, nas charmosas algazarras de Lilian Harvey (O congresso dança [Der Kongreß tanzt, Erik Charell, 1931], Flagrante delito [Einbrecher, Hanns Schwarz, 1930]); o expressionismo fizera do olho a residência moral do sentimento, Lubitsch fez do olhar aquilo que Stendhal escreveu que ele era: a grande arma do coquetismo virtuoso.
O olhar, por permitir dizer tudo e depois negar tudo por ser apenas acidental, é a peça central do jogo do ator de cinema. Nós apenas olhamos aquilo que sentimos e que não queremos confessar como nosso segredo. Observe a decupagem de Otto Preminger, a hábil e precisa paráfrase que esse vienense faz da realidade: percebe-se de imediato que o emprego do campo-contracampo, que a preferência pelo plano médio em detrimento do plano geral marca o desejo de reduzir o drama à imobilidade do rosto, pois o rosto não pertence somente ao corpo, ele continua uma ideia que deve ser apreendida e restituída. Um belo rosto, escreve justamente La Bruyère, é o mais belo dos espetáculos. Conhecemos a bela lenda de que Griffith, comovido pela beleza de sua atriz, inventou o close-up porque desejava fixar melhor os detalhes. Paradoxalmente, o close mais simples é também o mais comovente. Nossa arte sabe aqui marcar sua transcendência o mais fortemente, e faz fulgurar a beleza do objeto significado no signo. Desses olhos imensos que se semicerram, cheios de prudência e luxúria, desses lábios que empalidecem e do seu transtorno vemos apenas aquilo que presumimos como maus desígnios, de suas confissões aquilo que escondem de ilusões. Lá onde Preminger emprega a grua, Hawks emprega de bom grado o “raccord” no eixo: os modos de expressão mudam apenas na medida em que os assuntos mudam, não é de si mesmo que o signo deriva a sua significação, mas daquilo que ele representa, da cena representada. Nada é mais falso do que falar da decupagem clássica como de uma linguagem que teria encontrado seu mais alto grau de perfeição antes da Segunda Guerra Mundial, com Lubitsch na América e Marcel Carné na França, a tal ponto que equivaleria a um modo de pensar autônomo, aplicável a qualquer assunto com igual sucesso. O que admiro em Gance, Murnau, Dreyer, Eisenstein é o dom que esses artistas possuem de capturar da realidade aquilo que o cinema mais se presta a glorificar. Clássica, a decupagem o é já há muito tempo, e seria um insulto a Lubitsch imaginá-lo ansioso para romper com as teorias de seus antecessores. Mas ainda vejo Ida Lupino reatar com o estilo da Triangle[1] como Gide recentemente reatou com o de Madame de La Fayette; as aventuras de suas heroínas (Mãe solteira [Not Wanted, 1949], com Sally Forrest; O mundo é o culpado [Outrage, 1950], com Mala Powers) me tocam tanto quanto as travessuras de Bebe Daniels, a graça maliciosa de Carol Dempster, as quais se atrapalham com leviandades cruéis e então, bruscamente, entediadas com a prudência, abandonam toda a cautela e se entregam à felicidade de amar.
Gostaria de lutar contra aqueles que só pensam em legislar no absoluto. Ainda recentemente um célebre sociólogo analisava o mito da morte no cinema americano[2], mas buscava, nos poucos filmes citados, apenas embasar melhor suas teses. Eu apenas quero afirmar que, ao contrário da mise en scène de Os melhores anos de nossas vidas (The Best Years of Our Lives, William Wyler, 1946), a de Uma aventura na Martinica (To Have and Have Not, Howard Hawks, 1944) é mais apta a restituir as divagações do coração e do espírito, que o seu fim é esse, ao passo que a relação exterior dos seres é o objeto daquela. Compare O morro dos ventos uivantes (Wuthering Heights, William Wyler, 1939) a Os melhores anos de nossas vidas, veja como Eisenstein retorna às raízes de sua arte, e diga-me se o destino do cinema moderno não se coloca nos mesmos termos que se colocou aos seguidores tardios do romantismo. Sim, a partir de pensamentos novos, façamos versos antigos[3].
Atrevo-me a desafiar um plano geral a representar esse transtorno extremo, essa agitação interior que o muito inexpressivo “plano americano”, pela sua própria inexpressividade, consegue representar tão bem. Se encontramos, no cinema americano, um gosto bastante excessivo pela morte, é sobretudo no temor do repouso que eu o procuraria, nesses instantes onde, no pânico do coração, o menor gesto figura a certeza, e surgem ao mesmo tempo o ódio, o remorso, a zombaria e a virtude. É que as nuances mais sutis da alma devem, talvez, ser tratadas com mais ênfase, assim como uma gesticulação que força a atenção evita que o pudor deva se atenuar.
Vejo mesmo nessa descontinuidade espacial resultante da mudança de plano, diante da qual alguns entusiastas do “10-minute shot” se veem na obrigação de corar, o motivo da maior parte de verdade que contém essa figura de estilo. Que outro tipo de construção poderia nos dar, em uma conversa romântica, uma imagem tão fiel quanto aquela, em Pavor nos bastidores (Stage Fright, Alfred Hitchcock, 1950), da corrida de táxi de Jane Wyman e Michael Wilding, comovendo-nos com tamanha convenção? Não é o famoso plano da cozinha, em Soberba (The Magnificent Ambersons, 1942), que me arrebata, mas, nessa atmosfera de crepúsculo dos deuses, o pequeno rosto estremecido de felicidade que Welles fez Anne Baxter expressar. Sim, vejo antes na modéstia desses filmes de Mankiewicz (A malvada [All About Eve, 1950], Sangue do meu sangue [House of Strangers, 1949]), de Mark Robson (Viagem sangrenta [Roughshod, 1947-1949], Meu maior amor [My Foolish Heart, 1949]), de Otto Preminger (A ladra [Whirlpool, 1949-1950], Anjo ou Demônio? [Fallen Angel, 1945], Passos na noite [Where the Sidewalk Ends, 1950]) uma reação, talvez inconsciente, contra a tendência religiosa que toma o cinema moderno; se esses cineastas se vangloriam de encenar apenas esses momentos em que os laços mais fortes do mundo se relaxam e se rompem, vivendo de ciúme irônico, onde a ambição assume as feições do amor, é porque eles têm pavor de uma arte que encontraria, segundo Maurice Schérer[4], o melhor da sua inspiração na crença na alma. Renunciando a mostrar um dos interlocutores em primeiro plano (notei que isso só acontece quando descobrimos mais tarde no filme que ele mentiu), a decupagem clássica examina de mais perto a realidade psicológica, quero dizer aquela dos sentimentos; não existe, com efeito, tempestade no espírito, incômodo no coração, que não são marcadas por causas físicas, um influxo de sangue para o cérebro, uma fragilidade nos nervos, cujas idas e vindas só podem diminuir a intensidade. Se essa técnica é a mais clássica, é também porque raramente foi manifesto tanto desprezo pela fotografia de um mundo captado por acidente, do qual a linguagem é apenas o reflexo das paixões, e que elas podem, portanto, se dominar. É certo que basta examinar a evolução do maior artista americano, chamado Howard Hawks, para ver o quão relativa é essa noção de classicismo. O que vemos da arte de Paraíso infernal (Only Angels Have Wings, 1939) à de Jejum de amor (His Girl Friday, 1940), de À beira do abismo (The Big Sleep, 1944-1946), e mesmo de Uma aventura na Martinica? O gosto pela análise se pormenorizando, o amor dessa grandeza artificial ligada aos movimentos dos olhos, a um ar de deslocamento, em suma, um conhecimento inigualável daquilo de que o cinema pode se orgulhar, sem tirar proveito disso para fazer anticinema (eu acusaria de bom grado Orson Welles por Macbeth – Reinado de sangue [Macbeth, 1947-1948] e Robert Bresson por Diário de um pároco de aldeia [Journal d’un curé de campagne, 1951]), mas, ao contrário, para fixar suas leis essenciais por um conhecimento mais severo de seus limites.
Creio ter insistido o suficiente sobre os erros que nossos críticos cometem ao cair sob a influência da filosofia contemporânea, transformando certas figuras de estilo em uma visão de mundo, revestindo tal ou tal procedimento com pretensões astrológicas que ele não poderia possuir e, por conseguinte, retirando da psicologia clássica aquilo que dela o cinema poderia acomodar, explicitar, não reduzindo o homem à “sequência de aparições que o manifestam” (Jean-Paul Sartre), e, por paradoxo, do monismo do fenômeno, restaurando a pluralidade de interpretação que lhe falta. No cinema a beleza é apenas a admissão do caráter, a qual nos dá sobre determinada atriz indicações sobre aquilo que nela não é atuação. O cinema não se interroga sobre a beleza de uma mulher, ele apenas duvida do seu coração, registra a sua perfídia (é uma arte, escreve La Bruyère, a pessoa se colocar toda numa palavra ou numa ação que dá o troco), vê apenas seus movimentos. Não devemos sorrir de tanta paixão a ponto de febrilizar a lógica, sentimos que o que garante o seu valor é que se trata a cada instante de amar ou de morrer.
Hans Lucas
Notas:
[1] Fundada em 1915 na Califórnia por três produtores e três cineastas (Griffith, Sennett e Ince), a Triangle Film Corporation (ou Triangle Pictures ou Triangle Motion Picture Company) foi até 1919 uma companhia americana muito importante e prolífica de produção e distribuição de filmes. [N.T.]
[2] Roger Caillois, “Quatre essais de sociologie contemporaine” (1951).
[3] André Chénier, “L’invention”, Oeuvres poétiques, textos compilados por Louis Moland, Garnier, 1889, volume 2, pp. 57-70. [N.T.]
[4] Éric Rohmer, “Renoir Américain”, Cahiers du cinéma n.º 8, janeiro de 1952, pp. 33-40.
(Cahiers du cinéma n.º 15, setembro de 1952, pp. 28-32. Traduzido por Bruno Andrade)
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