O CLASSICISMO DE VITTORIO COTTAFAVI ![]()
O que me liberta da angústia em que me mergulha a liberdade sem restrições é o fato de conseguir sempre voltar-me imediatamente para as coisas concretas que aqui estão em causa. A liberdade teórica de nada me serve. Deem-me alguma coisa finita, definida – matéria que só pode prestar-se à minha operação na medida em que for comensurável com as minhas possibilidades. E essa matéria apresenta-se já com as suas limitações. Eu, pela minha parte, terei de lhe impor as minhas...
— Igor Stravinsky
I
Não seria fortuito estender a analogia entre música e cinema como demonstração concreta dos aspectos composicionais que atravessam a obra de Vittorio Cottafavi. Em seu caso, a utilização de tal figura de linguagem não surgiria na análise crítica apenas como efeito de recurso poético e não se bastaria somente como exploração de relações já muito evidenciadas, como a que opera entre timbre e cor quando transportada para o domínio das relações pictóricas e musicais, ou por vezes rarefeitas como a ingenuidade comparativa que procurava associar a cada nota musical uma espécie de cor ou tom visual. O que está em jogo no transporte de certo vocabulário transdisciplinar no texto em questão é o entendimento estrutural de uma noção própria de harmonia – em especial de uma harmonia predominantemente clássica – que atravessa a carreira do cineasta.
Essa comparação remonta não somente ao domínio musical como à primeira das tentativas frustradas do cineasta italiano em sua incursão no mundo das artes (em entrevista concedida a Michel Mourlet em 1961 para a revista Présence du cinéma, Cottafavi revela ainda o fracasso de suas iniciativas nas tarefas da literatura e da pintura antes de chegar ao cinema), mas perpassa a sua própria noção da mise en scène como a verdadeira transposição para o cinema de uma noção harmônica per se, com a subordinação da horizontalidade dos elementos (e portanto, das diversas “vozes”) que constituiriam uma obra fílmica – o som, o décor, a montagem, o roteiro, o cinematógrafo – na conjugação e conjuminação verticalizada das necessidades motívicas e de seu subsequente desenvolvimento.
II
Muss es sein? Es muss sein!
— Ludwig van Beethoven
Em Cottafavi, o motivo fílmico é introduzido de modo cristalino nos primeiros instantes da película. Há uma submissão ortodoxa ao gênero: seja ele o melodrama, o peplum ou a ficção científica, um certo padrão familiar reconfirma a expectativa de desenvolvimento do argumento inicial, ao mesmo tempo que essa clareza não desemboca eventualmente na previsibilidade de sua resolução atingida. Sendo Cottafavi dotado de uma capacidade de tensão e abrandamento, de suspense e resolução, é justamente através do perfeito domínio e da habilidade na administração das convenções clássicas que a única resposta para a tensão eventualmente apresentada pode surgir como a menos prevista.
Pensemos no começo de No abismo do pecado (Nel gorgo del peccato, 1954). “Eu tinha dois filhos. Eu tinha... eu tenho dois. Uma mãe nunca se separa de sua descendência, mesmo se ela parte por bem.” Essa é a oração proferida por Margherita Valli – a personagem vivida por Elisa Cegani – em uma voz off justaposta a uma sequência panorâmica de nuvens. Não sabemos ainda a razão de sua partida, por que ela fala no passado, nem o motivo pelo qual teria relutantemente se esquivado da sua vocação materna. Essa oração, contudo, sobrevive como ideia fixa durante toda a projeção da película. Isso porque, logo em seguida, somos introduzidos ao drama de Alberto, o filho pródigo, que após o seu período de desgarramento, tendo realizado por vezes até mesmo incursões no mundo do crime, retorna à casa de sua mãe, introduzindo no ambiente doméstico a sua mulher Germaine algumas sequências depois.
Em nossa projeção hermenêutica, acreditamos ter aí compreendido o significado das palavras de Margherita, e, durante o decorrer da obra, essa suspeita parece se confirmar a todo instante: com Alberto e sua mulher passando a viver sob o mesmo teto que sua mãe e seu irmão, a mesquinhez de sua cônjuge é sinalizada: há nela um desprezo pela vida pobre, um flerte com o dinheiro fácil e um embate constante com os valores passados pela herança maternal de Margherita em contraste ao seu desprendimento de mulher moderna da cidade. Nesses contrastes característicos que incidem sobre o melodrama, intuímos aqui o possível motivo da sentença proferida no início do filme, ainda que a adesão completa à proposição que mencionamos seja impossibilitada por um fator que escapa ao raciocínio: ela se refere no passado também ao irmão menor de Alberto, cuja função na trama é somente a de acentuar sua necessidade pela presença masculina do irmão mais velho no lar familiar.
Essa suspensão não impede o motivo inicial de se desdobrar de maneira lógica no desenvolvimento narrativo do filme. São variações do mesmo motivo e respostas problemáticas a ele que perpassam a trama: Alberto passa a trabalhar em uma oficina, sua mulher não se contenta com o pouco dinheiro conseguido e o conflito aumenta; um antigo amigo do crime aparece no local do trabalho e sugere a ele novamente uma via alternativa, mas, firme na sua decisão inicial de manter-se na vida honesta, ele recusa o “atalho”; Germaine, quando notificada da presença de Filippo, o antigo cúmplice, seduzida pela proposta e por não se adaptar ao novo modo de vida de Alberto, deixa a casa rumo ao dinheiro fácil. Culpando de maneira injusta a sua mãe pela partida de Germaine, que havia aceitado com resiliência e santidade o temperamento da nora, Alberto passa a viver com a mulher, retornando ao dinheiro facilmente obtido; os problemas aumentam quando esse antigo cúmplice tenta incriminá-lo para poder lhe roubar a namorada, em embate que culmina eventualmente nela sendo gravemente atingida.
Com Germaine em coma no hospital, a culpa naturalmente recai sobre Alberto e, para livrar a cara do filho, é Margherita quem vai atrás de Filippo a fim de exigir dele um esclarecimento à polícia. É ela quem morre para salvá-lo, ainda que saibamos, no exato instante em que a sequência se desenrola, que Germaine havia acordado do hospital e que o seu ato havia sido pretensamente inútil. Em uma sequência posterior, vemos a mesma narração em voz off, agora sobre uma cena que reúne Alberto, sua mulher, seu irmão e a amiga dele em uma reunião de família, agora com Germaine adotando o papel maternal. Em uma equação diametralmente oposta à de Teorema (Pier Paolo Pasolini, 1968), foi a renúncia santa de Margherita e a sua saída de cena que permitiu que a ordem dos elementos presentes nesse sistema se realinhasse.
A solução narrativamente encontrada é muito semelhante à de A sombra da forca (Time Without Pity, Joseph Losey, 1956-1957), também dotado de uma competência na internalização das convenções clássicas análoga à de Cottafavi: por mais que o desenvolvimento fosse lógico, ainda assim somos surpreendidos de que a nota conseguida é a única nota que era possível dentro do sistema do filme. E somos surpreendidos não pela capacidade narrativa do roteiro de Giuseppe Mangione baseado na novela de Oreste Biancoli (embora a escolha de tal matéria-prima pelo cineasta também diga respeito à cosmovisão que atravessa o seu cinema), mas por sua capacidade de encontrar justamente a única solução cinematográfica possível aos problemas colocados pelo desenrolar da obra enquanto unidade dramática, pelo domínio com que propicia que tudo aconteça da maneira que lhe é devido, através da depuração e da síntese de seus elementos mais essenciais. Há, portanto, um apagamento da presença do cineasta, uma transparência da montagem: em nada sentimos a sua mão ou o seu toque e aguardamos ansiosos pela sucessão natural dos eventos, o que não impede, e ao contrário acentua, a surpresa.
Também por isso é atribuído ao cinema de Cottafavi o termo de sinfonia cósmica. A sequência panorâmica do início da película reitera a tese. Se a apresentação da espacialidade nos minutos iniciais de certos filmes surge como recurso de delimitação geográfica de um campo de ação em que haverá o embate ou a reintegração entre o indivíduo e o ambiente que lhe cerca, não é à toa que o espaço escolhido por Cottafavi tenha sido justamente aquele atribuído simbolicamente na cultura ocidental ao Paraíso: o céu que se ergue sobre as nossas cabeças. Também é este o ponto de conclusão da obra: é verdade que na sequência final a voz de Margherita não surge inicialmente justaposta à dimensão etérea das nuvens, mas ao espaço doméstico concreto onde se desenrola a ação. No entanto, logo em seguida, após a câmera se mover pelas personagens inseridas dentro desse campo, como se o nosso olhar procurasse quem fala, ela se esquiva da dança de Alberto e Germaine em direção à janela e com um corte seco Cottafavi nos dirige agora, por meio de uma panorâmica, do exterior do mundo concreto, com suas ruas e quarteirões, em direção ao céu novamente.
O embate ou reintegração aqui presente não se desenrola portanto no campo das forças materiais ou mesmo ideais que operam dentro do mundo real, mas sim no campo da metafísica e da reintegração do homem a esse mundo espiritual: através do finito da obra de arte, Cottafavi insere o infinito. Contudo, de maneira ambivalente, ele não atinge esses meios através da sublimação romântica: é antes no campo da generalidade concreta que o drama metafísico de Cottafavi se conjuga. Ou, nos termos de Rohmer sobre a música, se sustenta sobre a harmonia que é “ela mesma produto das leis da natureza”. Ou, “para dizer de outro modo, essa pergunta tem um conteúdo, mas o conteúdo é a própria pergunta, o ato de perguntar, o puro perguntar”[1]. Tem que ser? Tem que ser!
III
A música como metáfora se revela frutífera justamente por esse seu caráter da verticalidade harmônica que também está presente no cinema. Entretanto, se na música essa verticalidade surge a partir de distintos instrumentos ou vozes combinadas ou justapostas, as ferramentas do cinema se entrecruzam antes no processo de produção do que no processo de execução. O resultado, em tese, é o mesmo, uma vez completa a obra, mas durante o momento de seu preparo um diretor de cinema deve combinar à sua tarefa de compositor aquela do regente: organizar e instruir como cada instrumento deve realizar a sua parte na estrutura geral, trazendo para si também o problema da performance.
Se o fator da verticalidade não estivesse envolvido, a analogia seria eficiente caso efetuada apenas entre os aspectos narrativos de uma obra e o seu desenvolvimento, ou seja, a sua inevitável afinidade dada por ambas as artes participarem de uma passagem pelo tempo, proximidade que compartilham de modo um pouco menos rígido, em termos de predefinição, com a literatura. Não restaria, portanto, muito mais a falar senão de sua linha melódica, ou seja, que em Cottafavi há uma linearidade plena e uma aversão a saltos muito bruscos, que o seu cinema caminha sempre em uma direção definida e que evita tanto a rarefação narrativa elíptica como também o prolongamento da tensão. Em suma, não há uma fragmentação da linha melódica, como em Resnais, nem um prolongar-se nas nuances como em Rossellini; e o seu oposto talvez fosse Antonioni, em que esses dois elementos – o da fragmentação narrativa e o do prolongamento do olhar sob determinada sequência – se encontram.
Evidentemente, tais comparações não têm caráter valorativo, e servem justamente para delimitar o espectro estético em que o seu cinema está inserido. Desse modo, é pela verticalidade da harmonia e pela textura que é possível tornar a comparação mais complexa, oferecendo mais dados para o entendimento mais abrangente do espectro. Se em seu cinema houvesse contraste combinado entre som, espaço e narratividade, ele se chamaria Orson Welles; se as dissonâncias fossem mais frequentes, ainda que mais ou menos calculadas, ele se chamaria Godard; se ele fosse predominantemente contrapontístico e menos homofônico, ele se chamaria Marguerite Duras. Não há no cinema de Cottafavi um contraste combinado entre som, espaço e narratividade, nem dissonâncias frequentes e mais ou menos calculadas ou sequer um caráter contrapontístico e menos homofônico. O seu cinema se insere não somente dentro de um pleno ajuste combinado entre todo componente cinematográfico manifesto, como também em uma completa adesão à unidade dramática.
Por estar inserido em uma estética que não requisita a atenção para seus expedientes formais mais aparentes, tais qualidades assinaladas acabam encobertas por um olhar menos treinado, atento, concentrado, desperto: foi preciso que Michel Mourlet advogasse por esses cortes invisíveis efetuados “na massa informe do real” ou por essa adesão à unidade dramática através da “seleção e justaposição de planos essenciais, como um olhar que iria sempre direto ao que importa na marcha de um evento” para que essa impalpabilidade se tornasse tangível, para que se percebesse enfim a elegância econômica e sintética da depuração. E, por esse manejo consciente das formas clássicas, o seu cinema não requisita o atestado de inventor ou criador, mas de mestre. Por ser dotado de segurança e abrangente repertório para encontrar soluções engenhosas dentro das necessidades mais estreitas que o fruto dessa consciente construção formal se revela como imanente, natural, dado. Tudo parece magia quando não se compreende os artifícios de um ilusionista; é somente ao se evidenciar seus expedientes que se reconhece a engenhosidade de sua operação.
Isso não significa que o corpo de sua obra seja dotado de uma implacável retidão ou ortodoxia nos aspectos que o compõe: há aqui uma volatilidade nas possibilidades de utilização de seus preceitos, dados pelo vasto repertório de possibilidades fílmicas de que são dotadas essas mãos de artesão. Já foi dito aqui, por exemplo, que o seu cinema não realiza saltos bruscos em sua linha melódica, mas isso não quer dizer que, embora dotado de tal qualidade necessária, inexista a elipse ou a passagem pelo tempo, mas que quando ela ocorre, ela é fugada e entrelaçada com alguns motivos que se repetem cronologicamente no desenvolvimento da obra, sem que se transponha esses instantes para fora de sua unidade dimensional.
Fiamma che non si spegne (1949) nos fornece o exemplo, onde a passagem do tempo impõe um avanço narrativo que deve dispor de agilidade para que possa abranger a trajetória do pai Giuseppe e do filho Luigi. Em certo momento, o foco narrativo do filme deve ser passado de um para outro, exigindo um poder de condensação e sintetização que poderia eventualmente tornar nebulosa a clareza desejada, mas que, pelo contrário, é acentuada pela unidade sinalizada pelas modulações apresentadas por Cottafavi na passagem da primeira para a segunda metade do filme, por determinados temas que se repetem e que são retomados, mas em momento algum o próprio tempo vivo chega a dirigir a narrativa.
É por conta disso que, embora Fiamma seja dotado de uma necessidade canônica muito mais forte do que nas suas outras obras – em um momento a trajetória do filho deve alcançar a do pai –, não se pode dizer dele que seja propriamente barroco. Sabemos que Cottafavi se inspirou em Bach para a tomada de algumas decisões no interior da sequência final, mas o cineasta entendeu a analogia de um sentido severamente contrapontístico como envolvido meramente dentro da alternância de planos, quando na verdade o classicismo no cinema aparece ligado a um aspecto estrutural amplo da obra (que pode estar envolvida tanto em sua relação com os diversos “instrumentos” cinematográficos como também com as várias vozes de somente um, como no órgão barroco).
Um outro paradigma dessa maleabilidade reside na desenvoltura com que Vittorio Cottafavi percorre, no decorrer de Vita di Dante (1965), três possibilidades distintas (a encenação clássica, a captura realista e a montagem) sem que a utilização de tais artifícios se converta em uma subtração naturalista da apuração ou em uma perseguição moderna de seus aspectos estruturais. É, pelo contrário, o emprego de tais procedimentos que parece conferir-lhe homogeneidade, sem com isso incidir nos vícios do ecletismo. A força de atração consegue até mesmo instaurar uma passagem de diferentes gêneros literários (da anatomia para o testemunho ou a confissão) sem a perda da unidade fílmica.
Como um investigador, Cottafavi realiza o exame histórico de uma Florença dos séculos XIII e XIV não apenas através da representação de suas inscrições gráficas, desenhos e gravuras, mapas, brasões, moedas ou documentos históricos (em um alcance muito maior do que a de mero escopo ilustrativo, graças a um uso rítmico da montagem, discreto e absorvido à narrativa, e a uma câmera que perscruta tais certidões), como também pela articulação de mais de uma camada narrativa, que engloba, além da vida pessoal de Dante, um abrangente panorama da urbe, com suas personalidades, intrigas, guerras e reverberações em Roma ou nas demais cidades italianas do período (o que o permite até mesmo utilizar Giotto como personagem com o fim de realizar essa transição entre os inúmeros níveis do filme).
Da anatomia Cottafavi passa frequentemente ao testemunho: o olhar que apreende epifanias, tão conhecido em Rossellini, é explicitado aqui pelos contre-plongées de monumentos, pela mirada ao Batistério de São João, pelos travellings na casa de Dante, pela sobreposição de camadas contrapondo o zoom in ao zoom out nos espaços interiores, pelos quatro ângulos de câmera distintos que se concentram em certo momento no rosto do poeta, pelo olhar de observador que evita o corte quando passa de um plano mais aberto para um primeiro plano, em um testemunho que não se basta ao naturalismo, sendo potencializado pelas raias de uma imaginação elegíaca que se manifesta nas aparições em que Cottafavi intervém diretamente no plano através da sobreposição de camadas dos corpos dos companheiros de Dante em zoom out contra os espaços arquitetônicos em zoom in.
O filme, contudo, não se resolve nessa terceira pessoa e por vezes lança mão da confissão para atingir seus fins: o comentário narrativo historiográfico e pedagógico cede lugar à narração do próprio Dante, com seus olhares de observação, num exemplo de uso certeiro do discurso indireto livre no cinema. Com tal habilidade, Cottafavi não apenas coordena esses três estratos narrativos de maneira satisfatória como também os entrelaça em estruturas temporais distintas, passando de um tempo em que sua amada e vários dos amigos de Dante já estão mortos para registros posteriores de sequências que antecedem esses tempos, sem qualquer salto elíptico brusco e sem qualquer necessidade de verbalizar de maneira redundante ou tautológica o enunciado dessa passagem.
Na sequência da morte de Beatriz, por exemplo, Cottafavi estabelece em dois minutos uma complicada manobra em que os planos externos dos campanários (sólidos se vistos com rapidez, mas na verdade providos de um certo tremor na câmera, natural aos que apanham epifanias e de tipo recorrente no decorrer do programa) passam a planos mais específicos e particulares: os frames congelados de uma Beatriz já morta, que são ampliados de maneira homofônica pela voz de Dante, em primeira pessoa, narrando o poema e perdurando até o registro do cortejo fúnebre, que conclui a sequência. Na procissão, a imagem estática de Beatriz viva cede à representação do corpo morto em um movimento longitudinal que acompanha as freiras à direita, passa ao ângulo obtuso do observador e culmina naquele que espreita (no olhar que se volta, portanto, a Dante). Com apenas três planos Cottafavi não só resolve de maneira econômica e sintética as necessidades centrípetas do eixo narrativo por meio de uma rigorosa encenação, como transita por outras alternativas composicionais de maneira exata e rigorosa (mas também doce, graciosa, amena), desafiando qualquer ontologia mais dogmática.
Curiosamente, Cottafavi absorve todo esse entrecruzamento de multíplices diretrizes por meio da clareza e da simplicidade: a sua destreza consiste não do fato de lançar mão de um hermetismo ou de um sincretismo labiríntico, mas em utilizar tais expedientes de maneira excessivamente simples, plenamente acordada com a necessidade mais básica de contar a vida de Dante: percorrer os espaços públicos por onde ele pisou, recriar os lugares privados nos quais ele sofreu, escreveu e se alegrou, recompor as roupas, as danças, as lutas, os ataques a cavalo de sua época, fornecer os dados factuais, posicioná-lo como resultado objetivo de uma equação do acontecimento histórico ao mesmo tempo em que condiciona tudo isso, por vezes, à voz prismática do próprio poeta, que declama a partir de si mesmo esse viver no tempo, que absorve e canaliza essa dimensão universal no particular.
IV
Profundidade e simplicidade estão ligadas, no domínio do ritmo como no da harmonia.
— Éric Rohmer
Do plano, pode-se dizer que ele funciona como a mínima unidade rítmica no cinema de Cottafavi. Ele surge inicialmente “de maneira dançada”, em um misto de tempestade e ímpeto, não temendo “bater a cadência de maneira aberta e quase infantil, primária, limitada”[2]. Pecadora marcada (Il boia di Lilla – La vita avventurosa di Milady, 1952) é o sturm und drang por excelência: há aqui uma emotividade impulsiva, ainda que controlada pela forma; há a preferência exclusiva por campos e contracampos ao invés de buscar a profundidade diagonal deles, e há a fragmentação da sequência em unidades mínimas que se repetem também na agilidade com que passa de um compasso para o outro. Com isso, Cottafavi não fecha a possibilidade de uma “janela para o mundo” clássica, mas intermedia essa relação com a natureza através das convenções, distanciando-se do testemunho e aproximando-se de um peso gravitacional inerente à necessidade da narrativa, esquivando-se da autoconsciência de aspectos formais ou do apagamento pelo registro.
É com a natureza das leis internas da narrativa que Cottafavi se aproxima da realidade que está por trás de cada gesto e que atinge, de maneira deduzível, uma “harmonia do universo”. Através do recorte de uma cidade, um pintor demonstraria, por analogia, a ordem universal. Para que ela exista, contudo, no interior de uma sequência, a força de sua unidade rítmica impõe a coesão necessária para que não se perca de vista em momento algum essa linha de raciocínio – desatenção que pode surgir através do ato de se chamar a atenção para o próprio discurso ou para o discursado. Aqui há, contudo, uma simbiose da realidade intermediada pela linguagem, mas não da realidade como linguagem, nem da realidade capturada, mas dela perpassada por uma necessidade natural da feeria.
Se o presto de Cottafavi é Pecadora marcada, os seus allegri são, em maioria, os seus pepla (Hércules na conquista da Atlântida [Ercole alla conquista di Atlantide, 1961], O filho de El Cid [I cento cavalieri, 1964], Messalina – Vênus imperial [Messalina Venere imperatrice, 1960]). Neles, há uma ligeireza narrativa dotada de menor fragmentação da sequência em planos ágeis e rápidos, e, por esta emotividade estar aqui mais controlada e cadenciada em torno do uso de diagonais e da distribuição mais repartida dos corpos no espaço, manifesta-se também uma maior rigidez rítmica. Aqui, o seu cinema não se torna mais pergunta, ou, remontando mais uma vez às palavras de Rohmer acerca de Mozart, ele é “afirmação enquanto tal, um ‘sim’ repetido com insistência”[3]. A revolta dos gladiadores (La rivolta dei gladiatori, 1958) seria o “sim” sobreposto às necessidades concretas, mas mesmo por isso, um “sim” dialético, que, por ser tão “sim”, carrega consigo toda a ambivalência de ser “não” ao mesmo tempo. Mas mesmo a negação não é ela uma pergunta.
Essa inquirição ou interpelação está presente especialmente no adagio: Il taglio del bosco (1963), Incontro con il padre (1974) ou Maria Zef (1981). Nesse momento temos um Cottafavi comovido, mas não comovente, em uma espécie de condição fenomenológica que atravessa o universo de seus protagonistas. Esse tipo de registro é exemplificado pelas reiteradas deambulações de suas personagens pelo espaço que as circunda, em relevo por uma decupagem que realça essa dimensão e gravidade, e também pela acentuação, na construção de sentido, da importância da ferramenta ou do utensílio como extensão da relação dessas personagens com a sua condição de estar no mundo. Há aqui a ênfase, através de sequências mais longas, na ação do talhador ou do carvoeiro e em seus hábitos como espécie de extensão orgânica de seus corpos, indissociável de suas individualidades, no caso de Il taglio del bosco, ou, da gradual integração de Mariute com os afazeres rurais e domésticos em Maria Zef.
Tudo isso ocorre por meio de um deslocamento da gravitação centrípeta baseada nas necessidades dramatúrgicas mais clássicas e mourletianas para uma rarefação ampliada pelo laconismo (os seus protagonistas são sujeitos de poucas palavras), pelo teor vernacular (os filmes se passam em regiões em que há presença proeminente do dialeto, o que amplifica a dificuldade na comunicação) e pela detida concentração na sensação (do instante, da passagem, do tempo decorrido). Menos clássico, ou talvez mais próximo de Ermanno Olmi ou de Valerio Zurlini, quiçá de Luchino Visconti, ainda assim a caracterização é, de modo geral, clássica, e Cottafavi não se distancia de um retrato psicológico mais ortodoxo no qual a personalidade de uma personagem “derivaria da coerência lógica de sua atitude”, preservando a máxima de “quanto mais coerente o comportamento, mais natural e plausível o impacto”[4]. A grande diferença aqui reside mais na corroboração por meio de acréscimo de um certo padrão de conduta, ao invés da confirmação através da simetria e do paralelismo. Há uma ênfase nessa passagem lenta e gradual do devir que ratifica os predicados de personalidade de suas protagonistas. Existe conflito, mas não contradição; distinta é somente a descoberta e a transferência para o primeiro plano do autoconhecimento e da jornada.
V
Evidentemente, existem alguns aspectos dentro do espectro cinematográfico em que não basta a utilização da metáfora musical. Acerca da narrativa, é natural que a diegese busque lhe tomar o papel devido, mas a predominância de análises dessa espécie na crítica de cinema impede que essa seja avaliada em relação direta com a forma cinematográfica: o resultado são comparações narrativas entre tipos de personagens ou situações recorrentes no cinema de um autor, que não dão conta de enxergar como a forma cinematográfica infundiu vida no esqueleto de um roteiro, o que gera, no caso de autores como Preminger, Fleischer ou Cottafavi, que abraçam exigências diversas (de encomendas ou de liberdade na escolha do tema, de gêneros ou de personagens distintas), a incapacidade de observar que subsiste um mesmo olhar se movendo sobre essas situações.
O olhar é também uma metáfora, que não diz respeito apenas ao modo como o diretor de cinema observa os aspectos visuais de seu filme, mas que concerne toda uma cosmologia e os preceitos estéticos advindos dela que incorrem sobre a obra de uma vida. Mas, se nos determos no olhar no seu sentido estrito, em seu significado como o do órgão relacionado a visão, poderemos chegar a uma noção diversa do cinema de um autor e, de maneira mais específica, ao de Cottafavi. Essa análise não deve desconsiderar como esse mecanismo ganha vida dentro das necessidades específicas da arte cinematográfica, ou seja, se formos falar do olhar não devemos subordinar o cinema às artes visuais, mas observar como a composição imagética toma forma dentro das exigências de cada filme.
Dizemos, portanto, não só que o seu cinema é linear e não pictórico no modo como Cottafavi organiza os corpos dentro do espaço fílmico, enxergando antes linhas do que massas; nem que há semelhança de paleta cromática, em especial nos seus filmes de CinemaScope, entre o autor e pintores tradicionalmente ditos clássicos na história da arte, onde temos notas de cores primárias – o vermelho, o amarelo e o azul – incidindo proporcionalmente sobre a espacialidade orgânica do verde ou do marrom; mas que ele está relacionado diretamente com os termos de Élie Faure sobre Poussin, que diz da unidade de sua arte que ela é “apenas o resultado de um trabalho intelectual de eliminação consciente e de construção idealista em que a forma e o gesto, a cor local, a tonalidade geral e a repartição do volume e do arabesco respondem ao chamado central da razão”[5].
Também há uma predileção pela planaridade em relação à profundidade, por mais que Cottafavi mencione sempre em entrevistas o seu uso de diagonais (e que o percebamos em especial nos filmes em CinemaScope que criam a necessidade de tais coordenadas, ou que o vejamos em momentos esparsos até mesmo em No abismo do pecado, em um plano que envolve Margherita, Alberto e Filippo, e que renderia os elogios devidos de André Bazin se esse o tivesse assistido por seu domínio da profundidade de campo). Mas, como certos mestres, que, antecedendo os períodos que lhes sucederiam, conhecem técnicas diversas mas preferem se abster delas por não corresponderem às suas necessidades estéticas, para Cottafavi o CinemaScope se torna um formato adequado somente para algumas fábulas e histórias próximas ao homem. Caso quiséssemos um filme que tomasse o homem como ponto focal, seria “preciso tomar as proporções pitagóricas do formato normal”[6].
Se quiséssemos, contudo, tomar o cinema de Cottafavi somente como metáfora dos aspectos visuais, poderíamos acreditar em um primeiro momento que algumas de suas características estariam mais próximas da arte barroca do que da arte clássica, não somente pela semelhança inescapável que existe entre o sempiterno e o ambiente doméstico dos quadros de Vermeer em Maria Zef, mas porque há uma predileção pela unidade convergente em detrimento da pluralidade do olhar sobre diversos corpos, ou melhor dizendo, uma unidade individual sobre uma unidade múltipla. Mas isso diz respeito apenas ao enquadramento de cada plano se tomado isoladamente de seu contexto, com o nosso olhar sempre focando para o seu ponto gravitacional e nunca se perdendo em nuances que o distraiam. Esses planos, se tomados no interior de uma sequência e no decorrer do filme, revelam uma independência das funções autônomas de suas partes – observada tanto em Pecadora marcada quanto em A revolta dos gladiadores – que, se não é tão estrita como em Lang, ao menos é sintética e sensualista como em Matarazzo – e se ambas convergem é antes por um aspecto de proporções calculadas de determinadas cores dentro de um Todo, do que por um movimento contrastante que se propagaria “ininterruptamente através de pontes e caminhos que interligam as formas”[7].
Em suma, pode haver uma necessidade de convergência individual sobre a tomada de decisões visuais ou mesmo uma diagonalidade em detrimento de uma planaridade em certos planos no decorrer de determinados filmes, mas dentro de sua função narrativa eles dizem mais respeito a uma articulação de formas no sentido geral do que a uma dissimulação barroca dessas partes na convergência de um único aspecto priorizado. Toma-se como ponto de partida aqui, portanto, a forma centrípeta em detrimento da forma centrífuga; anula-se a obscuridade em prol da clareza.
VI
Em todos os gêneros, o homem verdadeiramente bom é aquele que mais sente que nada é dado, que é preciso tudo construir, tudo comprar; e que treme quando não sente a existência de obstáculos; que os cria... Nele, a forma é uma decisão motivada.
— Paul Valéry
Há que se mencionar, contudo, que o corpo da obra de Cottafavi não é dotado de certa unidade presente na obra de alguns cineastas no que diz respeito à tomada de decisões formais e a certeza e reconfirmação destas no decorrer da carreira. É possível identificar não somente um classicismo ortodoxo operante na extensão de sua obra, mas quatro fases com necessidades distintas que carregam, cada uma, uma solução metodológica encontrada para os problemas particulares exigidos por elas.
Em um primeiro momento, pode-se falar dos filmes do início da carreira de Cottafavi como dotados de um classicismo orgânico, ainda não sistematizado, que surge em primeiro lugar por uma dedução de determinadas diretrizes gerais a partir da observação intuitiva de algumas leis da natureza, mas que não é intermediado pela reiteração de suas convenções de maneira já sedimentada. É o classicismo de artistas que, caso uma possível situação hipotética incidisse sobre a humanidade e apagasse todas as soluções encontradas e sintetizadas teoricamente através dos tempos pelos tratados e pelas mãos dos mestres, ainda assim seriam capazes de inferir essas mesmas leis de outros modos, reunindo em si métodos de demonstração capazes de criar novos classicismos. Essa organicidade está presente em Fiamme sul mare (1947, correalizado por Michal Waszynski), Fiamma che non si spegne, Uma mulher matou (Una donna ha ucciso, 1951-1952), Pecadora marcada, História de um pecado (Traviata ’53, 1953), No abismo do pecado, As sobras da prisão (Avanzi di galera, 1954) e Uma mulher livre (Una donna libera, 1954). É o período da volatilidade rítmica, da linearidade caligráfica e de uma espacialidade mais aberta para o acidente, embora já dotada de um forte senso capaz de absorver o inesperado dentro de uma lógica interna.
Na segunda parte de sua carreira, quando passa a trabalhar mais especificamente com os filmes de gênero, há uma sistematização mais ortodoxa das convenções cinematográficas e maior estreiteza na tomada de decisões que surgem no interior dos problemas concretos colocados. Por dominar o que é possível e o que é indispensável, termina por constatar que não há contradição entre os termos, o que resulta em formas mais universais e no menor número de particularidades irregulares de um tipo de arte mais orgânica, mas que, justamente por isso, proporcionam a chance de acompanharmos cada meandro dela sem que nunca se esgotem os motivos de encantamento. É o período em que se passa da pergunta (e da resposta à pergunta) para a afirmação direta. É a época de A revolta dos gladiadores, As legiões de César (Le legioni di Cleopatra, 1959), A vingança de Hércules (La vendetta di Ercole, 1960), Messalina – Vênus imperial e Hércules na conquista da Atlântida; o momento da fábula em CinemaScope, do cadenciamento da sequência, da maior organização e distribuição dos corpos no plano (bem como do ajuste cromático e da sua harmonização nos aspectos composicionais e plásticos dos enquadramentos), da caracterização estereotipada, do achatamento progressivo da ambiguidade narrativa em prol da transparência e da racionalidade, de uma pretensa vulgaridade obtida de maneira ambivalente por meio da sofisticação formal.
O terceiro período é marcado pela transição. É arriscado, portanto, tratá-lo como dotado da mesma coesão interna dos dois anteriores, já que alguns novos problemas colocados – a influência brechtiana, a mudança do cinema para a televisão – acarretam em uma nebulosidade surgida da necessidade de conciliação entre proposições cosmológicas, meios de produção e da sua própria herança estética. A procura por uma ordem interna não é deixada de lado, mas busca absorver esses outros elementos que podem desestabilizar o sistema em um primeiro momento. O filho de El Cid é o meridiano entre a segunda e a terceira fase, e nele o tom fabulesco começa a ganhar uma ligeira ambiguidade interna: mais próximo dos filmes da segunda sessão no que diz respeito à confirmação de alguns de seus componentes narrativos e formais, termina por acentuar, por outro lado, justamente essa dimensão da esqualidez e da impureza que domina de modo vigilante o próprio processo do artesanato fílmico. Embora ainda feérico e realista, o registro se torna autoconsciente e, nas proporções que lhe são devidas, estrutural, ao gerar um cinema conscientemente indigente. Nos seus filmes feitos para a televisão – Sette piccole croci (1957), La trincea (1961), Operazione Vega (1962), Ai poeti non si spara (1965), La fantarca (1966-1968), Il processo di Santa Teresa del bambino Gesù (1967) e Missione Wiesenthal (1967) – há uma ambivalência marcada por uma simplicidade narrativa televisiva cada vez maior dotada de uma forte e escancarada evidência alegórica.
A fase tardia de sua carreira é neoclássica. Le troiane (1967), Antigone (1970-1971) e I Persiani (1975) podem parecer ter, em um primeiro momento, uma maior adesão a essa perspectiva brechtiana, especialmente se fizermos a associação involuntária do segundo filme com a obra de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Mas, se observarmos atentamente, e justamente por isso, percebemos que aqui Cottafavi se rende antes à tragédia grega do que ao teatro épico. Se há um despojar-se de certa simplicidade e clareza típicas, há aqui igualmente uma tendência cada vez mais dominante de apagar também resquícios de emotividade e expressividade em prol de maior objetividade e frieza, de forma semelhante à predileção de Stravinsky por algumas texturas instrumentais, evitando a utilização de cordas como se procurasse escapar da sentimentalidade, mas conservando no interior de suas sequências e planos o mesmo interesse rítmico inortodoxo de que a música do russo é dotada.
Notas:
[1] Éric Rohmer, Ensaio sobre a noção de profundidade na música: Mozart em Beethoven. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 98.
[2] Ibid., p. 127.
[3] Ibid., p. 104.
[4] Arnold Hauser, Maneirismo: a crise da Renascença e o surgimento da arte moderna. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 95.
[5] Élie Faure, Arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
[6] Entrevista com Vittorio Cottafavi, por Michel Mourlet e Paul Agde, Présence du cinéma nº 9, dezembro de 1961, pp. 5-28.
[7] Heinrich Wölfflin, Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 219. |
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