REVER VERDOUX
por Jacques Rivette



Existe um “em si” do cinema do qual decorreriam regras e exceções? Quanto mais isso segue, menos consigo crer; o cinema é, no fim das contas, aquilo que fazem os cineastas, e a exceção, se ela tem por nome Eisenstein, ou Buñuel, ou Chaplin, pois bem, é talvez uma exceção, mas a da conquista, aquela que pouco tem a se preocupar com especificidade, porque ela a funda, da mesma forma que Bach ou Schönberg se preocupam menos em instituir uma escrita universal que em explorar suas próprias linguagens, ou Michelangelo em servir à pintura (ou ao cinema) que em se servir dela; a arte prefere antes ser tomada do que cortejada. E temos muito tempo livre para admirar de que cromo ou de que pátina um Walsh, um Dwan, um Tourneur, um Minnelli lustram suas engrenagens, quais berloques idiossincráticos elas carregam, a elegância ou a desenvoltura com que as trajam; para mim é cada vez mais difícil não pensar, antes de tudo, nos seus pesos.

Quem é Chaplin? Um homem livre. Monsieur Verdoux (1947), 15 anos depois, é primeiramente isso: o filme de um homem livre (para retomar a fórmula de Rossellini, falando sobre Um rei em Nova York [A King in New York, 1956-1957]). Exceção este tipo de homem; regra, pois o Chaplin do Pastor de almas (The Pilgrim, 1922-1923) e de Verdoux, o Buñuel de Nazarin (Nazarín, 1959) e d’O anjo exterminador (El ángel exterminador, 1962), o Renoir de A regra do jogo (La règle du jeu, 1939) e d’As estranhas coisas de Paris (Elena et les hommes, 1956), mesmo o Brooks de Entre Deus e o pecado (Elmer Gantry, 1960), o Rossellini de Vanina Vanini (1961), o Mizoguchi de As irmãs de Gion (Gion no shimai, 1936), eis alguns cineastas que já possuem em comum, deixando de lado suas malícias, não serem somente “metteurs en scène”, sem falar em uma velocidade de escrita que pode passar, e frequentemente passa, por secura ou pobreza, um perfeito pudor das intenções que toma o esquematismo por máscara, e dissimula sob a rapidez do traço a riqueza das contradições profundas; todo um jogo, ao infinito, de trocas entre as significações e as causas. Ou seja: Verdoux é Carlitos, mas é também Verdoux.

Mais adiante: qual o objetivo do cinema? Que o mundo real, tal como é exibido na tela, seja também uma ideia do mundo. É preciso ver o mundo como uma ideia, é preciso pensá-lo como concreto; dois caminhos, os dois com os seus riscos. Quem parte do mundo e se instala nele arrisca-se fortemente a não atingir a ideia: tais são os perigos da atitude do “puro olhar”, que leva a se submeter ao presente, a aceitá-lo tal qual, a contemplá-lo, como se diz – mas temo que da mesma forma que as vacas contemplam aos trens passando, fascinadas pelo movimento ou a cor, e com poucas chances de compreender um dia o que anima esses objetos de fascinação e as faz olhar à direita ao invés da esquerda. Partir da ideia, risco inverso: é o que ocorre nove a cada dez vezes, e o campo da História (do cinema) é coberto pelos cadáveres desses filmes que todos os exercícios de respiração artificial animaram somente no espaço de uma estreia.

Mas esses cineastas (para retomá-los), partindo também, ao que parece, da ideia, ou do esquema (e a arrancada, cinco-dez minutos, é frequentemente ingrata, árida, sem brilho), recuperam pouco a pouco o real; é que esse esquema não é um esqueleto, mas figura dinâmica, e a justeza do seu movimento, de sua dialética interna, recria pouco a pouco, sob nossos olhos, um mundo concreto: outro e explicado, mas mais ambíguo por ser ao mesmo tempo ideia encarnada e em seguida real trespassado de sentido. É também porque a ideia já é ideia do mundo, visão conceitual (espetáculo ou metáfora): uma imagem-ideia – seja o grupo de convidados trancados em um salão, ou o caçador se debatendo como um coelho, ou o cadafalso diante do convento –, seja ainda um “personagem”, que assim o é pelas suas contradições, das quais o filme é apenas o desvelamento metódico.

Verdoux confia uma multiplicidade de significações não tanto à atuação da cena quanto à agilidade do ator em inventar, dir-se-ia, diante de nós: mise en scène em torno da atuação do ator principal, e que se confunde com essa atuação. Pois a ação do ator é criação contínua, centro motor e olhar ao mesmo tempo: Chaplin age e faz agir, mas se observa agir e observa seu ato através dos outros; ele organiza no espaço da tela uma deflagração do sentido, ele experimenta um agir julgado por suas consequências, das quais ele pesa diante de nós, progressivamente, as fases e os resultados: processo de homem de ciência.

Chaplin, Buñuel, Renoir: “filhos deste século científico”, suas abordagens são as mesmas do físico ou do entomologista. O homem é para eles objeto de estudo e de experiência; mas este homem é primeiramente eles mesmos. Dialética implícita em Renoir e Buñuel que o gênio de Chaplin manifesta em plena luz, ao integrar seu mito à sua pessoa, sua “lenda” ao seu mito, a História a esta lenda, obtendo um corpo novo por um sistema de reações em cadeia, um corpo irradiado pela sua atividade, de forma que a História, capturada pela armadilha do mito, confessa suas mitologias.

Reconstituição de um objeto “de forma a manifestar nesta reconstituição as funções deste objeto”: definição, segundo Barthes, da atividade estruturalista, que comanda toda a arte moderna. Assim Verdoux, ou Landru desmontado e reconstruído por Chaplin-Carlitos; simulacro, rigorosamente não-simbólico e sem profundidade, mas formal: “nem o real, nem o racional, mas o funcional”.

A vontade de dar significação, afirmada pelo próprio recuo que Chaplin assume bruscamente em relação ao papel que interpreta; esse recuo é ato de homem, como o de Brecht diante da sua Mutter Courage, de Fautrier diante dos seus Otages, de Boulez diante das suas Structures: o sentido passou por ali, ele foi inscrito; a obra conserva o movimento dessa passagem. Essa passagem é o seu movimento – a constatar e retomar.


(Cahiers du cinéma n.º 146, agosto de 1963, pp. 42-43. Traduzido por Bruno Andrade)

 

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