O VASTO OESTE[1] (A GRANDE JORNADA, Raoul Walsh, 1930)
por Fred Camper



Uma experimentação constante caracterizou as três primeiras décadas do cinema narrativo americano. O curta-metragem evoluiu para o longa-metragem; tinturas com cores e os primeiros experimentos com cores naturais foram usados; diferentes tipos de acompanhamento sonoro foram testados durante o período mudo. Tanto o tamanho quanto a forma da tela eram variados; em alguns filmes a imagem tornava-se quadrada, em outros aumentava de tamanho. O CinemaScope dos anos 1950 não foi a primeira experiência de Hollywood com a tela larga.

No início da era sonora, em 1930, vários estúdios, vendo que os donos de cinema estavam dispostos a reequipar seus cinemas com som, raciocinaram que eles também poderiam comprar projetores, montados pelos estúdios, em tela larga. Fox introduziu o sistema Grandeur, no qual a imagem era fotografada em 70 mm., ao invés do 35 mm. habitual. A grande jornada (The Big Trail), um dos poucos filmes realizados em Grandeur, foi filmado em duas versões, 35 mm. e 70 mm., porque a Fox sabia que nem todos os cinemas estariam equipados para o novo sistema. Como se viu, poucos proprietários de cinemas compraram a ideia, e A grande jornada foi exibido em Grandeur apenas em Nova York e Los Angeles. Mas a versão em tela larga foi restaurada recentemente, e embora a trilha sonora não seja sempre inteligível, a resposta única do filme para a tela larga faz com que valha a pena conferir sua estreia em Chicago nos dias 18 e 19 de junho no Film Center.

Para o espectador acostumado aos produtos hollywoodianos dos últimos quarenta anos, o filme deverá parecer muito estranho mesmo para 1930. Um dos primeiros faroestes sonoros hollywoodianos, o filme foca na história familiar de uma caravana em jornada ao Oeste. O jovem John Wayne (neste filme o diretor Raoul Walsh lhe deu seu primeiro papel principal) ainda não tinha desenvolvido a personalidade vibrante e autoconfiante pela qual ele seria famoso mais tarde; aqui ele demonstra uma juventude quase destrambelhada que é de certo modo carismática. Outra parte da singularidade do filme resulta do enredo esparso. Wayne interpreta um guia, e há três bandidos, alguns índios e uma mocinha que serve de interesse amoroso; mas nós vamos abruptamente de uma personagem a outra, e nenhuma delas é realmente desenvolvida.

Outra parte da singularidade do filme provém sem dúvida do uso que Walsh faz da tela larga e do som. Poucos diretores souberam como usar o som, no início. Isso introduziu um elemento cinematográfico totalmente novo, e grandes mudanças tecnológicas; as primeiras câmeras sonoras eram menos móveis, por exemplo. Alguns dos mais estranhos – e piores – dos primeiros filmes sonoros foram feitos por diretores teatrais nova-iorquinos cuja câmera permanecia negligentemente imóvel na frente de atores atuando como se estivessem em uma peça. Embora às vezes o filme de Walsh tenha ecos desse estilo, a presença e significação que ele dá ao espaço vazio em A grande jornada tornam esse filme o mais próximo que Hollywood já chegou de criar um filme genuinamente abstrato.

Em meados da década de 1930 a indústria já havia aperfeiçoado e codificado um estilo que, apesar de mudanças significativas de década a década, iria dominar o cinema (e mais tarde a televisão) até os dias atuais. A câmera se identifica com a presença física, os movimentos e a própria existência das personagens. O espaço do filme é congruente com o espaço do drama, e todos os cenários, paisagens e interiores atuam em grande medida como atores adicionais naquele drama. Por exemplo, a imensa mansão de Cidadão Kane (Citizen Kane, Orson Welles, 1941) é primordialmente uma metáfora para a grandiosidade vazia do próprio Kane. Movimentos de câmera, montagem e (mais recentemente) zooms seguem o movimento do corpo da personagem mais central para a ação. Um resultado é que a presença dos atores se torna dominante; os astros “maiores que a vida” pairam como imagens recorrentes de fantasia ante os olhos do espectador. Outro é que o mundo externo aos conflitos dramáticos entre as personagens – paisagem, espaço urbano, história – é visto como não tendo existência independente deles. Os épicos históricos de Hollywood, por exemplo, sempre foram construídos como se os grandes movimentos de nações e civilizações dependessem de uma relação particular, em geral melodramática, entre dois indivíduos. Em A grande jornada Walsh oferece uma exceção espetacular a essa tradição reinante. Talvez porque ele estivesse trabalhando no território ainda não mapeado do som e da tela larga, Walsh se sentiu mais livre para experimentar estilisticamente do que nos anos seguintes. A montagem em A grande jornada é usada principalmente para mudanças necessárias de locação; a imagem panorâmica tornou o campo-contracampo basicamente desnecessário. No campo-contracampo, a imagem muda bruscamente para um ângulo diferente dentro da mesma cena. Com efeito, somos informados de que nenhum tempo passou, porque as posições dos atores “correspondem” com aquelas do plano anterior. Esse tipo de montagem naturalmente favorece os corpos dos atores e seus movimentos corporais. Quase não há cortes desse tipo em A grande jornada. Ao invés disso, Walsh teve a mesma reação ao 70 mm. que diretores tiveram anos mais tarde ao CinemaScope, introduzido 23 anos depois. Na tela larga, um corte pode parecer mais abrupto e até mesmo brusco; a imagem panorâmica foi considerada mais adequada para o plano geral, para a ação se desenvolvendo dentro de um único plano. A grande jornada leva isso a um extremo que pode parecer quase bizarro hoje: vemos tableaux de paisagens intermináveis, uma após a outra, com personagens atuando defronte à câmera frequentemente imóvel como atores num palco.

Além disso, o senso visual estranhamente estático do filme quebra qualquer tensão dramática no enredo. É verdade que a narrativa geral segue um arco, que ela eventualmente resolve o conflito entre a personagem de Wayne e os bandidos, se Wayne ficará com a garota ou não, e a grande questão se a caravana irá chegar ao seu destino ou não. Mas de cena a cena há uma notável falta de continuidade. Eventos narrativos não levam a novas situações com o sentimento de inevitabilidade que é comum ao filme moderno. Ao invés disso, um incidente ocorre, e a situação abordada pode retroceder, apenas para abruptamente retornar cinco ou seis cenas depois. A câmera de Walsh tende a observar tudo defronte a ela com igual ênfase. Ele coloca ações e diálogos importantes no primeiro plano, é claro, mas a poderosa presença da paisagem é sentida a cada momento. Dada a rarefação do enredo e a neutralidade onívora da câmera, este filme é dificilmente sobre a psicologia das personagens. No filme de Howard Hawks, Rio Vermelho (Red River, 1946-1948), um John Wayne mais velho, fazendo o papel de um líder quase insano de vaqueiros, cria uma persona muito mais complexa. No filme de Hawks, cada canto da paisagem, cada vaca, é ao fim e ao cabo uma metáfora para a megalomania da personagem de Wayne, do seu desejo de capturar e conquistar tudo à sua frente. Em A grande jornada a performance animada, mas consideravelmente mais superficial, de Wayne, e a sua personalidade relativamente pouco formada parecem mais apropriadas para a história episódica, na qual a câmera nunca entra em nenhuma das personagens.

Neste filme, a construção quase anti-dramática e a falta de profundidade das personagens fazem com que o espectador se concentre nas imagens. Uma grande variedade de terrenos aparece (o filme foi rodado em locação, em diversos estados do Oeste). Em alguns planos gerais, linhas quase infinitas de carroças, cercadas por nuvens de poeira, estendem-se até o plano de fundo da imagem. Panoramas imensos se estendem atrás de personagens em primeiro plano, de modo que o espectador sempre sente a extrema vulnerabilidade da caravana. Na cena mais espetacular do filme, que não constava originalmente no roteiro e foi adicionada por Walsh em locação, carroças e animais descem por cordas em um penhasco íngreme.

O resultado é que o filme cria um senso do Oeste como um espaço vasto, inconquistável, inumano, uma terra que pode ser atravessada por humanos com os equipamentos e as habilidades necessárias, mas nunca verdadeiramente ocupada por eles. Significativamente, embora a comitiva chegue ao seu destino no final do filme, não vemos as personagens começando a civilizar a terra pela construção de um assentamento, cena comum a muitos faroestes. Em certo ponto da jornada, uma tribo indígena permite aos viajantes a travessia segura pelas terras tribais apenas sob a condição que nenhum deles tente se assentar lá.

A singular qualidade meditativa dos planos gerais de Walsh, a curiosa falta de uma tensão narrativa dominante controlando o espaço do filme, a estranha e desconexa montagem tableau-à-tableau se combinam para afirmar algo bastante diferente do habitual filme hollywoodiano. Walsh nos dá uma rara visão da natureza, não centrada no homem; seu filme é permeado por uma sensação poderosa e misteriosa de um espaço vazio sempre imponente, pesado e abstrato. Suas imagens, que enfatizam a paisagem como textura ao invés da paisagem como geografia ou personagem humana, produz em suma um tipo de imagem mental de uma massa pesada, semelhante à superfície de uma pedra, ou do solo, ou mesmo do ar repleto de poeira. Essa massa também é vazia, no sentido de ser desprovida de detalhes, uma verdadeira metáfora para a natureza selvagem. É esse vazio que nossa civilização tem se devotado a preencher, tanto materialmente quanto mentalmente. Talvez apenas um pioneiro de Hollywood – Walsh começou sua carreira de diretor em 1914 – poderia nos dar uma visão da América antes que ela estivesse coberta com rodovias, e mais significativamente, do próprio espaço antes que um estilo prestes a se tornar dominante em Hollywood o tornasse subserviente às personalidades dos atores.


Nota:


[1] O título original do texto é “Wide west”, que pode ser lido como um trocadilho com as palavras wide (“grande”, mas também se referindo à tela larga do formato 70 mm.) e wild (selvagem). [N.T.]


(Chicago Reader, 17 de junho de 1988. Traduzido por Gustavo Salvalagio)

 

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