AS FÉRIAS VERMELHAS (ANTES DA REVOLUÇÃO, Bernardo Bertolucci, 1963-1964)
A – Fragmento do plano de uma tese de literatura (e cinema) comparada, intitulada “Stendhal e Bertolucci” e defendida na Sorbonne em 10 de maio de 1987[1]:
Deve-se amar as artes; deve-se amar e ser infeliz.
— Stendhal, Roma, Nápoles e Florença
... Esse filme é stendhaliano por numerosos aspectos. Sublinharemos os principais traços tanto na letra quanto no espírito, e mais ainda na via mediana de um clima refinado, de um misto cultural e sentimental, de uma sensibilidade artística. Mais do que na anedota e nos personagens, e nas circunstâncias de criação, é no duplo aspecto “amador de arte” e “amador de viagens”, e por fim no conteúdo político, que devem ser examinados alternadamente os pontos de contato entre os dois autores.
I. A anedota, é claro, vem diretamente d’A cartuxa, da qual reencontramos Parma, o nome dos três protagonistas, a relação parental (tia-sobrinho) e sentimental entre dois deles (Fabrizio e Gina), a revolta breve e a renúncia final do herói. Ainda assim, algumas precisões:
1.º Os laços entre Gina e Puck, o fidalgo arruinado, evocam aqueles do conde Mosca e da Sanseverina, cujo retiro campestre, em Sacca (“casa encantadora, no meio de uma floresta, dominando o curso do [rio] Pó”), parece singularmente próximo dessas margens saudadas nostalgicamente pelo burguês do filme;
2.º Cesare, o mestre formador de Fabrizio, é uma réplica mais política do abade Blanès, cuja educação conduziu Fabrice a Waterloo. O marxismo do professor constitui uma versão um pouco mais concreta do ensino astrológico-astronômico e outras ciências de presságios ministradas pelo bom pároco;
3.º Encontramos, transferida na neurose claustrofóbica da Gina do filme, a obsessão do cárcere em Fabrice, antes mesmo que ele seja aprisionado na torre de Farnese (evocação do [forte de] Spielberg, de Fenestrelles, empréstimos frequentes do romancista de Pellico, Casanova, Andryane, Benvenuto Cellini).
Um paralelismo tão minucioso possivelmente incomodará Bertolucci, que declarou que seu filme continha mais coincidências do que elementos stendhalianos conscientes. Recordemos, contudo, que esse tipo de adaptação modernizada pareceu suficientemente cara ao realizador para estar igualmente na origem de um projeto atual seu que ainda não tomou forma (um filme para Adriana Asti baseado no Wilhelm Meister de Goethe, em que o nome dos protagonistas foi igualmente conservado) e do filme que rodou em 1968 (Partner., com Pierre Clémenti) baseado em uma novela de Dostoiévski.
II. As circunstâncias da criação parecem nos antípodas entre o romancista de 50 anos que chegou ao fim de sua obra e o cineasta de 23 que inicia a sua. Mas, a um jornal da época (Le Monde de 4 de janeiro de 1968), Bertolucci falava de seu filme “como se fosse o último de sua vida”, declaração que em relação ao seu romance-testamento Stendhal teria sido capaz de fazer.
O filme de 1963 utiliza o romance de 1839, mas não mais do que este se inspirava em uma crônica popular de eventos do século XVI. Concluído em um mês e meio, em média de 20 a 25 páginas por dia, a façanha literária conhece uma contraparte cinematográfica quase semelhante, ao passo que basta substituir “páginas” por “planos”. Romancista e cineasta improvisam semelhantemente: um não possui plano preestabelecido, o outro filma algo completamente diferente do seu roteiro, Stendhal dispensa a sinopse, Bertolucci utiliza escassamente um roteiro de 300 páginas, um verdadeiro romance. Tanto em um como no outro é a velocidade, a febre, um pouco de confusão, a experiência íntima vertida na própria obra, o entusiasmo, a liberdade e as ousadias técnicas que desnorteiam as regras e suscitam o franzimento purista de sobrancelhas. O escritor dá o exemplo ao cineasta, deixando-o dragar aqui e ali incontestáveis “falsos raccord”, ditando, por exemplo, uma carta a um soldado que não sabe escrever, ou permitindo Fabrice se debater bressonianamente contra a veneziana de sua claraboia com uma impraticável mola de relógio ao mostrar que foram deixadas suas armas na prisão.
III. O amante da arte. Aqui parentesco estreito entre polígrafos e prosélito-amadores, entre o historiador da pintura, o musicólogo-biógrafo, e aquele que deseja que o cinema permaneça aberto a todas as outras formas de artes, entre o autor que se debruçou sobre Racine e Shakespeare e aquele que trabalhou com o Living Theater. Essa multidisponibilidade comum, esse gosto pela citação e pela conversação letrada, encontramo-las em toda parte.
1.º A pintura. Para Stendhal, Parma é a cidade do “divino Correggio”, primeiro pintor local antes de Parmigianino. É esse último que Bertolucci prefere citar: “Ela parece um retrato de Parmigianino”, diz Gina sobre Clelia. Mas Stendhal comparou esta “às belas figuras de Guido[2]” e a mãe de Fabrice a um quadro de Da Vinci. Bertolucci entrecorta a grande cena às bordas do rio com a imagem de um pintor, Padova, indiferente ao drama ambiente, centrado em sua criação (“Que luz!”), e cuja tela, um close em cores, deveria ter fechado a sequência. Mas, mesmo ausentes sob a pena do escritor, as referências pictóricas se impõem ao leitor: o capítulo de Waterloo evocava Bergognone e Salvator Rosa a Balzac. Mesmo ausentes da boca dos personagens do filme, elas poderiam, ao espectador das imagens de Aldo Scavarda, abrir outros museus às lembranças. É também uma frase de Stendhal, “a pintura não é mais que a moral construída!”, que podemos ver na origem da fórmula de sucesso dos anos 1960, “o travelling é uma questão de moral”, citada com variações por Bertolucci em seu filme e suas entrevistas.
2.º A escultura parece a antítese pálida e imóvel da irmã colorida e dinâmica que acabamos de ver. “Escultura, arte enfadonha”, concluía o stendhaliano Baudelaire. Esse é o sentimento bertolucciano, que assimila a burguesia a uma gárgula de igreja, símbolo ambivalente de sua perenidade, Clelia a uma estátua de mármore (“este ar de não deixar-se afetar por nada, de estar como que acima de todas as coisas”, escreve Stendhal e Bertolucci corrobora em uma escultura lustrosa) e Fabrizio a uma “pedra” que, cansada de rolar, regressa ao seu destino de jacente, à atitude estática que possuía, apoiado na abóbada, na ocasião de seu primeiro encontro com Clelia.
3.º A música é, ao contrário, cara ao coração romântico. “As pessoas felizes são incapazes de sentir a música; falta-lhes a melancolia”, lê-se em Roma, Nápoles e Florença. E em Do amor: “A música, quando perfeita, põe o coração exatamente na mesma situação onde o encontramos quando regozija a presença do ser amado.” Bertolucci presta duas homenagens ao romancista: a escolha do cravo, instrumento datado, para abrir e fechar o filme, encerrando-o em um estojo de fim de século (o XVIII); a preferência (confessada por Gina em pleno teatro) por Mozart, objeto de estudos beylianos, sobre o onipresente Verdi. Mas é em duas canções de amor, modernas, iê-iê-iê mesmo, como se diria no “franglês” da época, e de um sentimentalismo tão persistente quanto gracioso (Ricordati, etc...), que Bertolucci é ainda mais stendhaliano, ritmando assim os encontros, os passeios e as danças provocantes de seus enamorados. Música ainda desta ópera, música burguesa, correspondente musical da escultura da igreja vista mais acima e, como ela, idolatrada em espaço fechado e revestido de ouro. Música, a virtuosidade de Ennio Morricone que conduz, em tambores e trompetes, estranhas corridas de bicicleta, que acompanha com um violão e uma flauta incomparavelmente ternos a partida de Gina sob a chuva, e faz nascer ao redor dela, imersa na infância de fotografias antigas ou em correntes espalhadas pela estrada, bruscas tempestades e pungentes calmarias. Música, enfim, que nos acalenta os diálogos dos filmes que amamos lá de baixo, música (é Stendhal que fala) “desta bela língua italiana concebida para o amor”.
4.º A literatura é a atividade comum dos autores de A cartuxa e de In cerca del mistero, prêmio Viareggio de poesia de 1962. Porém bem cedo o poeta cessará de escrever, transpondo a poesia aos seus próprios filmes; do mesmo modo que certos escritores (Mauriac o confessou um dia) que cessam de possuir um diário porque este é devorado pelas suas obras. Mais do que as outras artes, certamente, a literatura impõe a citação, a pose, a filigrana cultural, a segunda natureza. Fabrice em Waterloo sente-se na pele das criaturas heroicas de Tasso e de Ariosto. Escapando da prisão, ele ensaia mais alguns borrões literários. Stendhal, de sua parte, furta e parafraseia Saint-Simon, cita inúmeros poetas do local, sendo muitos seus amigos. Bertolucci, após sua epígrafe de Talleyrand, inicia com Pascal e finaliza com Melville (na tradução clássica de Cesare Pavese), e além do mais evoca o próprio Pavese (o Ripeness is all, epígrafe de A Lua e as fogueiras, que Dominique Fernandez, em sua tese sobre P., diz ser de Shakespeare[3]), Oscar Wilde e Karl Marx. De todos, Melville é certamente o mais importante: o trecho de Moby Dick, incluído em um senso eminentemente positivo (ver o n° 20 desta revista), sendo retomado em La via del petrolio (1965-1967), filme seguinte do autor.
5.º O cinema não faz mais do que continuar (Stendhal ausente) o parágrafo precedente. Aqui as homenagens se multiplicam, difusas ou diretas: é “o filme que vimos” da canção[4], Rio Vermelho (Red River, Howard Hawks, 1946-1948) e Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme, Jean-Luc Godard, 1961) que passam nos cinemas vizinhos, e uma dúzia de nomes jogados em rajada por um cinéfilo eloquente, o de Rossellini sobretudo, “sem o qual é impossível viver”. O outro mestre, Pasolini, entretanto está ausente: citado, enquanto poeta, no enorme roteiro, ele desapareceu na filmagem.
IV. O amador de viagens é evidentemente o cônsul de Civitavecchia, o errante de Roma, o turista com recordações, mas não é o cineasta parmesão enfurnado em sua cidade natal, e pelo qual somos nós, espectadores, envolvidos na rede sedutora do exotismo, que viajamos em seu filme. Que Bertolucci tenha tomado conhecimento do proletariado romano em seu filme precedente, que ele tenha realizado o grande périplo do petróleo no seguinte, até interpretar, descobrindo a Europa, um papel inverso aos desses grandes viajantes-exploradores dos séculos passados, é no momento menos importante, menos stendhaliano que o retrato caseiro e preciso de Parma que nos deixa esse filme; e ele o faz
1.º Pelas paisagens, sobre as quais Henri Brulard dizia: “Eu procurei com uma sensibilidade requintada a vista das belas paisagens; foi por isso unicamente que eu viajei (aqui, H. B. esquece um pouco apressadamente as artes). As paisagens foram como um arco de violino que tocou a minha alma.” Não apenas qualquer paisagem, mas esses “lugares amenos que me foram doces convites para encher folhas de papel” da epígrafe emprestada de Ariosto para A cartuxa, que são os da Lombardia, de lagos ainda montanhosos às margens do Pó. Através do rio e no coração das árvores, “tudo é nobre e terno, tudo versa sobre amor, nada se assemelha às feiuras da civilização”. É a Itália com cidades sitiadas por campos e que os caminhos gramíneos ameaçam de invasões, Ravena antes do deserto vermelho, lagoa lombarda antes de dragas e tratores, paraíso de caçadores e patos-selvagens. O olhar de Bertolucci vasculha a cidade e os ambientes, ele toma emprestado brevemente o ponto de vista da águia sobre uns e outros, ele conduz ao longo dos caminhos o espelho rápido da câmera-carro que perscruta as ricas vilas com belas alamedas, com orgulhosos arcos do triunfo, percorre as ruas no passo exaltado dos amantes, em seguida lentamente quando na tristeza e na solidão. A paisagem de fato inspira o sentimento, a menos que este não inspire (não expire) a paisagem. Já escreveram teses sobre este efeito de refração em Stendhal, fiel aqui à fórmula de Amiel: “uma paisagem é um estado de alma”, portanto eminentemente cinematográfico em um sentido bertolucciano-antonioniano. Pois,
2.º O clima se infiltra, aquele pluvioso da Itália do Norte, “o ar de Parma”, diz A cartuxa, “um pouco úmido, de fato, como aquele de toda a Lombardia”. À umidade Bertolucci não é parcimonioso, e seu Fabrizio nas compras faz bem em provar uma capa de chuva: quando ele acorda ao lado de sua primeira amante, é uma manhã de Páscoa sob chuva; mais tarde, a lagoa lombarda é coberta por brumas, e então Gina retorna a Milão entre o aguaceiro e a garoa, último percurso molhado no qual ela não olha para trás. (Esta particularidade climática é um novo vínculo de parentesco com o cineasta de As amigas [Le amiche, Michelangelo Antonioni, 1955], com quem nós já vimos Bertolucci compartilhar Pavese, heróis que se chamam Clelia e Cesare, um diretor de fotografia – o de A aventura [L’avventura, 1960] –, o esmero em relação à música e à alma da paisagem.)
3.º Por alguns lugares privilegiados, que podemos assim enumerar:
a) Os salões, literários e outros, sem os quais a conversação cai, tão rica se assim o deseja de citações, subversão, inquietude de reformar o mundo. É, aqui, a habitação enfumaçada de Cesare, onde o forno e o rádio mal funcionam, mas onde Fabrizio se sente como no seu nicho. Oscar Wilde, um “conversacionalista” se alguma vez o houve, fez pouco caso do mito do porvir radiante.
b) As igrejas, frequentadas para surpreender o olhar das mulheres. Este uso do lugar oferece uma longa digressão de A cartuxa (Fabrice apaixonado pela Fausta). Fabrizio, no filme, também irá observar Clelia, acompanhada de sua governanta como boa heroína stendhaliana.
c) O teatro, e os camarotes em particular. É lá que Mosca cai de amores pela futura Sanseverina, que Fabrice tem êxito em obter de Clelia seus últimos encontros. Em Bertolucci, é o mais alto lugar da apoteose burguesa: Gina é reduzida à plateia, enquanto Fabrizio reina no balcão, perto de sua bela carcereira.
4.º Pela “sociologia”, pois como chamar de outra forma essas avaliações sobre a geografia e os costumes aos quais se devotam espontaneamente os viajantes, ainda mais especificamente na Itália onde a personalidade ciumenta das incontáveis capitais impõe os jogos de mosaico de toda uma sociologia comparada. Stendhal dedicou-se a elas durante toda a sua vida, inútil relembrar sua bibliografia. Bertolucci parmesão, por vinte detalhes nativos, convida-nos a catalogar. Parma, de antemão nos é dito, é dividida pelo rio Parma em duas cidades, a rica e a pobre. A praça principal, a Piazza Garibaldi, é uma arena cercada, lugar propício aos encontros e aos pombos. É uma cidade onde as tardes são intermináveis, onde se come muito, onde se bebe vinhos de Centusco ou branco de Malvasina, um dos cinemas não tem medo de se chamar Supercinema Orfeo. Os parmesãos, reconhecemo-los também pelos sapatos, e por uma surda animosidade contra Milão, a metrópole vizinha, culpada de relativa indiferença para com os deuses do bel canto (“aqui”, diz Gina, “as pessoas acreditam mais em Verdi”). Dois dos grandes eventos locais são a festa do l’Unità, em setembro, e a noite de abertura da Grande Ópera no fim do ano. Perder a grande missa de Páscoa também não é muito recomendado.
V. A política. “A política, numa obra literária, é um tiro de pistola no meio de um concerto, algo grosseiro e ao qual, no entanto, não é possível recusar sua atenção”, lê-se n’A cartuxa, e quatro vezes ainda por cima. Esse mau gosto não impede “o maior dos romancistas” (Bertolucci dixit[5]) de conceber uma obra majoritariamente política, nem o cineasta de o imitar.
1.º A fidelidade aos eventos é estritamente contemporânea tanto para um como para o outro, dos 35 anos cobertos pelo romance (até uma data próxima de quando foi escrito) ao ano de 1962 do filme (rodado logo no verão seguinte), e do fim do Império ao fim do processo de Salan ou à morte de Marilyn Monroe tal como é comentada na Itália. A paixão por Napoleão, propagador das ideias da República, de Fabrice faz eco ao marxismo de Fabrizio, e a escolha do primeiro pela carreira eclesiástica após suas loucas campanhas, seu retorno à ordem e às ordens, prefiguram o retorno do segundo ao berço de ouro após sua temporada comunista.
2.º O ideal revolucionário é, no romance, carregado pelo personagem bem secundário de Ferrante Palla, poeta, pobre, louco, ladrão, condenado à morte (enquanto que Fabrice, a partir do momento em que escolheu fazer carreira, não é mais que um fantoche servil e arrivista, lamentável, hipócrita, desprezível pela canalhice; quanto a Mosca e a Sanseverina, eles representam o partido dos ultramonárquicos contra os “perversos” do livro, os liberais); no filme, é Fabrizio que formula a exigência deste ideal. Em Stendhal, e é um princípio essencial de sua moral, o ideal é assim definido: “O que os liberais entendem por virtude: procurar a felicidade do maior número.” Mas é essa felicidade, copiada pelos comunistas em seus modelos burgueses (econômicos, indumentários, literários, artísticos...), que indigna Fabrizio, cuja pureza aguerrida, diante da ortodoxia “moscovita”, faz figura de militância “chinesa” (essas palavras já estavam em uso no meio dos anos 1960). A ideia de felicidade (felicidade = bem-estar) freou a combatividade revolucionária, impediu a transformação do homem (“Não podemos mudar as pessoas”, diz Gina na casa de Cesare) e a eclosão de uma consciência internacional solidária. “As greves não me satisfazem mais”, diz o herói de Bertolucci, “Quem se inquieta pela Angola ou pelo Alabama? Quem parte para lutar pela Argélia?” Essas provocações foram feitas para desagradar, na Itália desagradaram a todos: aos “moscovitas”, incomodados de ver fustigar dessa forma um realismo eficaz e prudente; aos “chineses”, extasiados pela crítica, mas furiosos ao vê-la enunciada por um desertor da esquerda, um revolucionário suicidado, um puro espírito irresponsável, como se tais revoltas não pudessem ser resolvidas senão pela vaidade e o desespero. “Com essas propostas de república”, escreve jocosamente Stendhal na epígrafe do segundo volume d’A cartuxa, “os loucos nos impediriam de gozar da melhor das monarquias.” Substitua “monarquias” por “comunismos ortodoxos”, e você terá compreendido.
3.º A atitude ambígua dos autores. “Você está fora, e você acredita ser mais forte que aqueles que estão no Partido”, replica Cesare ao seu jovem censor. Após suas férias vermelhas, este retorna à sua fatalidade de burguês condenado pelas dragas da História, a esta imobilidade que ele tinha acreditado renegar com os operários, a uma maturidade mal integrada e que é sinônimo de morte. Não é sem volúpia que após ter depreciado a felicidade dos humildes o herói se compraz neste funeral de primeiríssima classe que, entre vapores de incenso e sob os olhos galhofeiros das crianças do coral, assume a forma – simples erro de estado civil – de um casamento religioso, mas onde se chora copiosamente, justo como em um cemitério. Bertolucci falou de exorcismo, de terrores, em manter uma distância, mas ao mesmo tempo de ambiguidade, de personagens iguais em seu coração. É aqui que se deve falar de Visconti, outro sensualista da câmera, artista até o limite dos ângulos, entomologista da decadência, mas que não sucumbe assim tão rápido. Quanto a Stendhal, do qual vimos de que modo e graça a quais personagens ele veiculava suas ideias, é seu amigo Mérimée que dizia sobre ele: “Beyle se gabava de liberalismo, e era no fundo da alma um aristocrata consumado”.
B – Post-scriptum em forma de mea culpa:
Notamos o quanto o trabalho que precede (e pelo qual não sei como agradecer o suficiente meu bom mestre Henri Martineau) arrisca decepcionar os admiradores do objeto fílmico por si mesmo. Ao fim das palavras cruzadas, e na medida em que o jogador não se encontra enfermo na sua ideia fixa, obtém-se na melhor das hipóteses um segredo obsoleto, um charme dissecado, reduzido a ossaturas esbranquiçadas para análise. Um pouco da carne e do sangue da intensa efusão lírica desse filme não seriam demais no momento para fortalecer o esqueleto. Pois, mesmo se sua fibra stendhaliana constitui bem a unidade, a permanência de Antes da revolução (Prima della rivoluzione), não se deve negligenciar tudo o que nele se põe a esquartejá-lo, dispersá-lo, precipitá-lo de modo contraditório. E depois, literatura por literatura, o filme de Bertolucci assemelha-se estranhamente, também, aos romances de jovens homens (dos hussardos[6], ter-se-ia dito aqui por volta de 1950), qualificados de qualquer modo como “stendhalianos”, romances onde amizades de longa data prevalecem sobre o amor, onde este conhece seus primeiros passos, não sem misoginia, a iniciadora ainda surgindo como uma mulher de baixa moral completamente dominada pelos seus sentidos.
O heteróclito sistemático, os ímpetos ensandecidos de um jovem cão que rosna para a técnica, que reinventa por sua conta própria todo um patrimônio coletivo, preenchendo uma miscelânea das mais abundantes. Os pastiches e mesclas de Bertolucci incluem lado a lado as imagens apressadas, capturadas à canadense[7], e os quadros caligráficos e compostos. Um plano próximo e rápido com teleobjetiva precede uma vista aérea, em seguida travellings desgrenhados, planos ultrafixos de objetos imóveis, intertítulos de cinema mudo, um fechamento da íris igualmente anacrônico, outros travellings calmos, enternecidos, e outros ao contrário soltos a toda velocidade na margem dos caminhos (os travellings são uma questão de humor, ou de artérias), os closes enquadrados-encalçados a Rossellini, três repetições sucessivas, a Resnais, do mesmo travelling para frente, uma sequência em cores adornada de fantasia, um plano-sequência em boa e devida forma que fixa closes de rosto em rosto... Essa mudança de pato para ganso gramatical, longe de destruir acreditando avançar como em alguns de seus “mestres”, não cessa, em Bertolucci, de servir uma atmosfera ardente, tenra e cruel de sentimentos dilacerantes, não cessa de alimentar a chama da juventude.
As pérolas poéticas são carregadas por esse fluxo abundante. Choque mudo à beira da água onde se contrapõem lentos travellings laterais e rápidas fusões, um pilar maciço e gritos de crianças, o drama e a indiferença. Monólogo da tristeza e do remorso mais tarde à mesa, a imobilidade do ator dilatada aqui ainda pelas fusões da imagem. Ronda-suicida do ciclista embriagado, acrobata lastimoso e trágico. Esses momentos indescritíveis, literalmente, assim o são porque conjugam todos os elementos humanos e mecânicos, visuais e sonoros, estáticos e animados, consonantes e dissonantes, espaciais e rítmicos, da mise en scène. O escriba incapaz só pode esbaforir suas fórmulas e seus epítetos ao tentar restituir a realidade e a beleza, antes de consentir se ater a uma só palavra impenetrável de três sílabas: ci-ne-ma.
Desvencilhados do tremor mais ou menos extasiado e em todo caso paralisante, deveríamos saudar ainda a luz leitosa da fotografia, luz pálida do sol de Páscoa ainda tímida ao fim do inverno. E, também, a dimensão heroica e cotidiana dos comunistas, como de costume nos filmes italianos: grandes massas, sombras de bandeiras, Maciste na bandeirola, cantos, força tranquila, esperança obstinada. E, ainda, uma figura de estilo talvez original na cesta transbordante deste experimentador ingênuo, e que poderíamos chamar a não-profundidade de campo dramática: surpreendida por Fabrizio quando em companhia de um amante de ocasião, Gina os observa se afastando cada um para um lado, ou antes nem os vê, seu rosto em close ornado de óculos escuro se voltando a um e depois ao outro de seus parceiros já desfocados, apagados de sua presença e talvez de sua lembrança. E enfim (visto que se deve em algum ponto fechar o inventário, melhor que o seja pelo essencial) a presença intensa de Adriana Asti, com olhos de inteligência e de paixão e com lábios feitos para os meios sorrisos, que são como sempre bem mais férteis que os sorrisos abertos.
Notas:
[1] Permanece em aberto se o ano de 1987 é intencional, possível jogo com o futuro, ou um erro que passou despercebido, referindo-se mesmo então a 1967. Acreditamos, pela continuidade apresentada no texto, na segunda hipótese. [N.T.]
[2] Guido Reni (1575-1642), pintor do Barroco italiano ligado à Escola de Bolonha, notável por cenas religiosas e mitológicas. Stendhal considerava sua obra Febo e Horas, precedidos pela Aurora como “o mais intelligible dos afrescos” em Promenades dans Rome. [N.T.]
[3] “A maturidade é tudo.” Rei Lear, ato V, cena II. [N.T.]
[4] Na música Ricordati de Gino Paoli: “Ricordati quel film che abbiamo veduto/ e poi tutto quello che abbiamo vissuto/ quel giorno, quel giorno”. [N.T.]
[5] Tal “dixit” provém da entrevista concedida a Jacques Bontemps e Louis Marcorelles nos Cahiers du cinéma n.º 164, março de 1965, onde Bertolucci também se refere a A cartuxa de Parma como “o maior romance já escrito” e comenta sobre as coincidências inconscientes em relação ao livro, citadas por Tailleur mais cedo no texto. [N.T.]
[6] “Les hussards” integraram, nos anos 1950, uma espécie de movimento de jovens amigos escritores, rejeitando o existencialismo sartreano e o humanismo do pós-guerra, cultivando um insolente “amor ao estilo; um estilo breve, mordaz e maleável”, pois acreditavam que “em cada frase há a morte de um homem” (Bernard Frank dixit). Tidos como “anarquistas de direita”, foram considerados “stendhalianos” também pelo gosto do “romantismo romanesco”, hedonismo individualista, desprezo aristocrático às convenções e o heroísmo pelo heroísmo. Roger Nimier era considerado a cabeça-líder de tal grupo. [N.T.]
[7] Este “à canadense” é referência ao novo cinema do Canadá nos anos 1960, aos filmes de Pierre Perrault e Michel Brault, espécie de intersecção, mediada por Jean Rouch, do cinema direto com a nouvelle vague, tão estimada pelo italiano. Bastam alguns minutos de Para que o mundo prossiga (Pour la suite du monde, Pierre Perrault/Michel Brault/Marcel Carrière, 1962-1963) para lembrarmos das cenas terrestres e aéreas, à margem e ao redor do rio Pó, durante o monólogo do Puck no filme de Bertolucci. [N.T.]
(Positif n.º 95, maio de 1968, pp. 31-39. Traduzido por Matheus Kerniski e Waleska Antunes) |
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