AS POMPAS DE UM FALSO LOUCO CHAMADO CARMELO BENE
Não escolhi nascer em 1937: recuso minha data de nascimento. Recuso a data da minha morte.
Recuso porque, quando isso acontecer, não poderei fazer nada para me opor.
— Carmelo Bene
Entre os estonteantes meteoros que instigaram o cinema para além dos limites em que os jogos narrativos tradicionais e as provocações repetitivas da vanguarda o mantiveram por muito tempo, Carmelo Bene ocupa um lugar essencial ao lado de Philippe Garrel, Jean-Luc Godard, Jean-Daniel Pollet, Glauber Rocha, Werner Schroeter, Jerzy Skolimowski ou os Straub. Embora sua abordagem tenha sido muito diferente daquela desses outros precursores que estilhaçaram os espelhos das consciências estabelecidas à mesma época, ela todavia se aparentava às deles pelo desejo de retomar o cinema como uma arte específica com imagens e sons liberados da escravidão do sentido na qual comerciantes, crápulas e ideólogos o mantiveram como refém. Mas essa repentina liberação não deixou nada ir pelo ralo. Os signos se articulavam com um rigor a montante e uma imensa exigência a jusante. Bene afirmava à época: “Fazer arte e fazer crítica a partir de agora é a mesma coisa.” A linguagem cinematográfica encontrava assim o meio de (re)começar do zero. Essa foi a razão da loucura de Carmelo. Reorganizar panóplias em uma alquimia particular para lhes remover os ouropéis do pensamento pesaroso das experiências mumificadas.
Escritor, homem de teatro, ator e realizador, Bene investiu-se brevemente no cinematógrafo (de 1968 a 1973) e essa trajetória efêmera foi uma sequência de polêmicas inflamatórias onde o fogo e a lava tanto criaram arte autêntica como destruíram maus hábitos culturais e rejeitaram os sacerdócios altivos e adereçados de regras estéticas sem fôlego ou os invasivos filtros ideológicos em nome de revoluções passadas ou vindouras, aquilo que Bene chamava sem rir de “o stalinismo da beleza”... Com ele, tudo teve sua origem em outra margem. A representação era planejada sem álibi ou precaução lúdica. Bene se expunha na superfície das imagens e fazia pensar sobretudo nos loucos literários do século XIX, exceto que nele a deliciosa decadência se integrava à modernidade. Nem tão barroco assim, menos histrião que demiurgo, ele procedia por discrepância e obliteração com um senso magistral da ruptura ou da implosão, subvertendo o acessório para não lhe conferir contornos restritivos. A figura despontava como tal e se recusava a toda identificação conclusiva.
Ávido por não ser reconhecido para melhor poder dar a conhecer, estudioso imbatível e leitor vigilante dos grandes textos anteriores ao surrealismo, ele impôs combinações impensáveis para libertar uma beleza convulsiva do menor eco das culturas de outrora. Os pontos de referência desmoronavam então na corrente de imagens. Tudo isso vinha da palavra de Oscar Wilde: “A imaginação imita; é o espírito crítico que cria”.
Quando Carmelo Bene aceitava revelar os nomes daqueles que o moldaram, ele citava Borges, Jarry, Huysmans e Joyce, falava um pouco de pintura e muito de música, evocava O demônio das onze horas (Pierrot le fou, 1965) de Godard (de quem detestava Weekend à francesa [Week End, 1967]), alguns trabalhos de Orson Welles e, sobretudo, Ivan, o terrível (Ivan Groznyy, 1942-1944, e Ivan Groznyy. Skaz vtoroy: Boyarskiy zagovor, Sergei M. Eisenstein, 1946-1958). Mas nenhuma real influência nem referência direta a esses três cineastas percorreu suas obras. Do primeiro ele entendeu o choque das cores. Do segundo ele reteve a colisão dos quadros. E do último era a arquitetura das escolhas de montagem que o interessava.
Na realidade, como ele o fazia com a música, a pintura e a literatura, essa abundância de imagens servia-lhe de modelo para compor um outro objeto artístico. Ele não imitava jamais o que quer que fosse (ou quem quer que fosse), mas criticava esses encontros com a sua prática. A maior parte de seus filmes partia de um modelo, de uma obra ou de um mito: Arden of Feversham e Manon para Capricci (1969), Le plus bel amour de Don Juan de Barbey d’Aurevilly para Don Giovanni (1970), Salomé de Oscar Wilde (Salomè, 1972) e o Hamlet de Jules Laforgue para Un Amleto di meno (1973). Sem jamais trair esses textos de base, ele testava sua matéria por meio de confrontações com árias de ópera, trechos de música clássica ou de variedades, ações paralelas (a performance dos carros em Capricci), outros textos (Barthes, ainda em Capricci) e de reduções em signos colados uns aos outros em uma montagem vigorosa.
Sempre com o humor como subversão e contraponto ao todo. Como acontece cada vez que se deparam com os trabalhos de um artista que implica sua própria crítica na sua arte, os pedantes oficiais brandirão seu apelo à mordaça para proclamar uma piada de mau gosto. Visto que o autor parecia propor-lhes os seus delírios, eles o designaram como um demente, um gênio aleijado e um hábil impostor. Erro grosseiro e falha imperdoável. Carmelo Bene trabalhava a matéria do cinema, restituindo-lhe sua cadência original, e confrontou-o com espaços de musicalidade fora das metáforas e dos símbolos.
Alguns (poucos) compreenderam, entretanto, que essa aparente cabotinagem delirante era a própria linguagem de sua obra, sua matéria-prima e seu objeto. Somos tentados a nos utilizar do paradoxo, dizendo que suas obras apresentavam uma imparável semiótica da máscara como vetor de realidades biológicas. É verdade que ali se encontravam ao mesmo tempo maquiagens e caretas, escarros de saliva, ranho e comida mastigada, nudez parcial ou total, insistentes ou veladas, feridas por armaduras de ferro ou atadas por bandagens, isso quando não estavam recobertas por um travestimento grotesco, repugnante ou patético. Sem esquecer suas destruições brutais a fogo e sangue...
Seus filmes sempre apresentavam uma série de contradições ligadas aos corpos e aos fantasmas culturais, políticos ou sexuais. Não se tratou nunca de uma desordem sedutora, mas de um fluxo incandescente em que cada novo afluente colocava em questão o que parecia ter sido estabelecido em nome de uma beleza estupefaciente. A frequência de locais fechados como arenas únicas da representação (Don Giovanni inteiramente filmado no seu apartamento ou Salomé realizado em um estúdio da Cinecittà) e a teatralidade da interpretação de certos atores são fragmentadas pela aglomeração de planos e dos seus eixos. A mixagem mantém uma confusão para instaurar um maximalismo do minimalismo.
Narcisismo, histeria ou caricatura transformavam-se com falsos excessos em uma matéria poética abundante cuja profusão de cores, as hachuras da montagem, o renascentismo dos quadros e a experimentação das bandas sonoras colidiam com as vias do senso lógico e violavam implacavelmente os mausoléus da cultura estabelecida (oficial e paralela) para produzir um magma supraorganizado que assassinava a narração (direta ou fraudulenta) e, assim, jogava musicalmente com as emoções do espectador.
Carmelo Bene, aliás, repetia frequentemente: “Eu faço música para os olhos”, e me confessou uma única vez: “Creio que é chegado o momento, fora da ideologia e da comunicação de espírito literário, de recuperar uma palavra que é hoje maldita: sentimento. Se sucedermos verdadeiramente essa seria a situação ideal, poderíamos alcançar aquilo que triunfou na música.”
Pena que os espectadores, a crítica e os financiadores o amaram menos que ele amava o cinema. Ele abandonou essa amante para regressar à sua outra amante: o teatro, continuando nele suas alquimias até exaurir suas explorações.
Dele ainda nos restam os traços de um trabalho pouco comum. Sete filmes (cinco longas-metragens e dois curtas-metragens de três – Ventriloquio, de 1973, tendo sido infelizmente perdido). Tantos minutos gravados em celuloide que permanecem à frente de todo mundo (e particularmente à frente do mundo do cinema).
(“Homenagem a Carmelo Bene”, Centre Pompidou, de 26 a 30 de setembro de 2002. Traduzido por Bruno Andrade) |
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