PROFISSÃO: REPÓRTER, Michelangelo Antonioni, 1973-1975
por Valeska G. Silva e Bruno Andrade



I don’t care!


Estamos em um país na África. Um estrangeiro está à procura de algo. Vai de uma pessoa à outra, comunicando-se de forma extremamente precária. Seu carro atola em um banco de areia em pleno deserto. Seu choro é substituído pelo som do vento cortante, sua desesperança pela imagem da areia infinita. Ele grita: “Eu não ligo!”.

Profissão: repórter (The Passenger/Professione: reporter), de Michelangelo Antonioni, é um filme ao mesmo tempo mítico e fiel aos dados históricos. Estamos no tempo da guerra civil em Chade, centro-norte da África, país que deixou de ser colônia da França, mas não conquistou a paz. O governo do Partido Progressista garantiu, de 1962 à morte do seu líder, em 1975, um tratamento extremamente duro, com assassinatos e prisões políticas, aos seus opositores: o grupo guerrilheiro da Frente Nacional pela Libertação do Chade.

A poesia, em tempos históricos, é ditada por ritmos cíclicos que alternam duplos complementares: morte-renascimento, desaparecimento-retorno, luz-escuridão, vida ativa e desperta-vida estática e ilusória.


O êxtase


Em um hotel que lembra mais um hospital infecto, onde as relações são marcadas pela impessoalidade e a indiferença, o homem que vimos antes no deserto, o repórter David Locke, interpretado por Jack Nicholson, conhece David Robertson, um traficante de armas. Este morre, e Locke toma a sua identidade. Locke experimenta, assim, a euforia da possibilidade de uma nova vida. Diverte-se com o destino em aberto, imaginando e vislumbrando todas as suas possibilidades. “Quero um bilhete para o resto da vida”, diz o passageiro à atendente do guichê da companhia aérea. Em outra cena retira o seu disfarce, um bigode postiço, e o deixa grudado jocosamente num lustre pendurado ao teto. Mais tarde podemos vê-lo estendendo seus braços sobre as águas, de cima de um teleférico, qual uma águia.

O êxtase tem por característica uma integração absoluta com o instante presente, pois é o total esquecimento do passado e do futuro. Por isso é fugaz e não representa mudança, e não deve ser confundido com a vitória da luz sobre a escuridão.


Solstício de inverno


Londres. Residência do casal Locke. A esposa, em pé, assiste a um programa de televisão em homenagem ao marido, presumidamente morto. Um ex-colega ressalta sua maior qualidade: a facilidade que Locke tinha de se colocar com distanciamento em relação ao que reportava. Uma marca de um tempo, representada aqui por uma absoluta indiferença e uma indispensável imparcialidade que sugerem também a permissividade de um ideal da profissão de repórter. Rachel Locke sabe que está longe de ser uma qualidade o não envolvimento do marido com tudo e intuitivamente ela passa a reinventá-lo, a buscar uma memória do que ele foi ou, ainda, do que poderia ter sido.

Já em outro país e vivendo uma outra vida, David tem um encontro incógnito numa praça pública com um idoso que se prontifica a lhe contar a história de sua vida. É nesse momento que a “maior qualidade” do homenageado repórter é questionada: um corte nos coloca frente a imagens reais, documentais, utilizadas na ficção como se tivessem sido registradas por Locke. Trata-se de um terrível assassinato por fuzilamento pelo exército de Chade. Ao término dessas imagens, que serão usadas num tributo a Locke, descobrimos que Rachel também acaba de assisti-las. Ela busca não demonstrar o quanto a experiência a transtornou.

A vitória da luz sobre a escuridão surge como uma possibilidade, mas não é a abertura para um verdadeiro solstício de inverno que Antonioni nos propõe.


Cinema


Antonioni parte de dados históricos irrefutáveis para fazer de Profissão: repórter um filme poético, lacunar e perfeitamente ambíguo. Pode-se juntar todas as peças deste filme, transformar a narrativa em algo concreto e sair do cinema contando a história desta ou daquela personagem, pois existe um quebra-cabeça que se completa sem prejuízo de peças; mas pode-se também deixar tudo onde está e não enxergar um homem em particular, mas sim todos os homens em David Locke.

Não se trata, pois, de um filme em que o tema toma a frente da expressão. Como em outros filmes de Antonioni, há um desenvolvimento absolutamente fundamental entre tema e forma, e para compreender como estes se coadunam é preciso identificar a existência harmônica de ambos nesse mundo onde, por exemplo, a esposa, com a normalidade de quem sabe que o sol nasce e se põe todos os dias, não reconhece o rosto do próprio marido após sua morte.

No cinema de Antonioni “o desenho e a cor não estão distintos; quanto mais a cor se harmoniza, mais o desenho se precisa”[1].


Abrindo a janela


Um quarto de madeira na beira do cais, em O deserto vermelho (Il deserto rosso, Michelangelo Antonioni, 1964), é vandalizado por um grupo de convidados. Um crescente clima claustrofóbico culmina na quebra do imóvel, que tem partes das paredes e dos móveis atirados ao fogo na presença do anfitrião. A partir desse episódio a personagem de Monica Vitti adquire um outro fôlego. O carro atolado no deserto, no início de Profissão: repórter, funciona igualmente como quebra de um mecanismo, dando espaço para que a imaginação da personagem se reprograme. É também de onde o filme parte, uma vez que depois desse prólogo vamos conhecendo a personagem David Locke apenas através das informações que vêm do seu passado.

O ser humano social funciona como um giroscópio, sempre numa dada direção na ausência de força que o perturbe. O cinema de Antonioni oferece oportunidade para metáforas da deterioração social e cultural e abre possibilidades metafísicas, mas antes temos que aceitar um mundo de aparente implausibilidade – não estamos mais no mundo naturalista de Zola, ou no mundo realista de Balzac. Os filmes de Antonioni não cumprem com a obrigação de ilusão da realidade; como Machado de Assis, Antonioni concebeu uma arte experimentalista e moderna, simples e direta. A zombaria veemente beira o surrealismo, mas jamais ultrapassa a linha tênue...


A linha tênue


... como na diferença entre o gesto de simplesmente abrir uma janela e abri-la para enxergar tudo que há à nossa frente.

Pestana, personagem principal do conto Um homem célebre, de 1883, tranca-se no quarto passando a noite entre uma tentativa e outra de compor uma partitura, admirando os retratos de grandes compositores da música clássica como se estivesse de frente a um altar. Mas a música de Chopin, Mozart e Haydn jamais é compreendida profundamente por Pestana, que se restringe a esse contato banal, admirando-os apenas superficialmente. Para ele isso parece bastar, e essa é a explicação machadiana para o compositor ter vivido frustrado, produzindo, para o seu desgosto, “simples” polkas tiradas ao piano.

Antonioni, como Machado, como Blake Edwards, entregou-nos personagens solipsistas, de uma melancolia constante, que não explodem a não ser em êxtases momentâneos que em nada nos lembram a felicidade. A abertura de Bonequinha de luxo (Breakfast at Tiffany’s, Blake Edwards, 1961) não funcionaria sem o humor produzido por um estranhamento que desestabiliza as nossas expectativas, no qual o aparente naturalismo é desarranjado através de sutis arranjos da encenação: um táxi estaciona em uma avenida deserta; uma moça elegante e solitária deixa o veículo com um vestido de festa negro e longo; ela toma um café da manhã em pé, de frente a uma vitrine de joias, e segura com os dentes um brioche que poderia ser algo tão vulgar quanto um pastel de feira. Mas, conforme saberemos mais tarde, não há nada de absurdo aqui: trata-se apenas de uma garota de programa chegando de uma noite de trabalho, provavelmente faminta, e que sonha com as belezas que o dinheiro pode comprar, representadas naquela vitrine de loja.


Há homens que vivem no deserto


Um roteiro, com suas personagens, sua trama, suas ambientações, sua construção dramática, e mesmo com as emoções que estas articulam, por mais espetaculares ou delicadas que sejam, ainda não é cinema. A narrativa sozinha, mesmo que concebida e construída em função do dispositivo cinematográfico, não passa de literatura nessa etapa. Cinema: ligar a câmera, fixar um ângulo, fazer com que a sensibilidade da luz ative a sensibilidade de cada átomo, de cada partícula do suporte fílmico, concentrar o tempo de uma ação no tempo do seu corte no filme. O vento que levanta a poeira, o vapor da água que encobre a protagonista, sai Monica Vitti e entra o rosto do forasteiro mal-encarado do faroeste (mas aqui, ainda, o roteiro – o vento, a poeira, o forasteiro, Monica Vitti etc.). Reconhecemos o valor expressivo de tudo isso, de todas essas ideias, mas para serem organizadas em um sistema singular elas ainda carecem da substância de uma matéria, da distinção que lhes é conferida pela forma. Se, por um lado, somos tentados pela ideia de comparar o sistema formal de Antonioni ao de Robert Bresson (se Bresson recorre à ausência de profundidade para fazer com que absolutamente tudo cresça na tela, Antonioni amplia o espaço para que tudo nele se reduza), por outro somos forçados a reconhecer que essa utilização da gramática das escalas, que subverte tanto a concepção do espaço físico quanto a do sonoro, concerne ainda mais tangivelmente a um outro cineasta, também italiano. Um movimento ascendente ou descendente acompanha o olhar da personagem para em seguida revelar o enorme espaço à sua volta, cuja densidade a oprime, a valoriza ou simplesmente denota alguma mudança de ânimo; um plano fixo estabelece a distância entre as personagens, permitindo que o espaço sonoro e o movimento dos corpos na tela deem relevo um ao outro, destacando-se mutuamente na medida em que a distância entre cada um aumenta; à amplitude dos espaços correspondem os enormes planos detalhes, com enquadramentos que se fecham sobre alguns dados e os privilegiam. Sai Monica Vitti, entra o rosto do forasteiro mal-encarado do faroeste. Sai Michelangelo Antonioni, entra Sergio Leone.


A inflexão


A famosa cena da entrevista com o curandeiro africano estabelece um limite, impõe um obstáculo a um cinema que se abasteceu de tantas narrativas de resistência ao nazismo e da subsequente reconstrução de um país das cinzas, dos dramas íntimos de casais em quartos fechados ou em deambulações pela nova paisagem do milagre econômico (de Viagem à Itália [Journey to Italy/Viaggio in Italia, Roberto Rossellini, 1953-1954] a A primeira noite de tranquilidade [La prima notte di quiete, Valerio Zurlini, 1972], passando por A aventura [L’avventura, Michelangelo Antonioni, 1960] e A noite [La notte, Michelangelo Antonioni, 1960-1961]), das odisseias das grandes personagens mitológicas (Ulisses, Hércules, Maciste, Sansão, Ursus etc.), do melodrama e da aventura baseados no folclore local (Raffaello Matarazzo e Riccardo Freda à frente) e mesmo do gênero norte-americano por excelência, temporariamente transplantado para as pradarias de um país vizinho (o western italiano, filmado na sua maior parte em Almería, na Espanha). Saímos do parque industrial do cinema italiano e do relativo conforto que ele proporcionou aos realizadores e produtores cinematográficos “com seus sistemas de coprodução e de multiroteirização ostensiva”[2], saímos dos seus temas de predileção, saímos das filmagens por bairros de Roma complementadas em sets da Cinecittà, saímos da segurança do som pós-sincronizado, dos gigantescos arcos de luz e do registro em estúdio, que tanto permitiu como inspirou a sofisticação na invenção e na subversão das convenções do grande cinema industrial de espetáculo, saímos de toda uma cultura. Saímos, enfim, da Itália, e penetramos agora outro território, potencialmente inóspito, mas que também potencializa a novidade, a experiência, o experimento.

O curandeiro toma a câmera e volta a lente para o rosto do repórter, dizendo: suas perguntas revelam mais sobre você que minhas respostas revelariam sobre mim. Primeiramente assistimos à cena como se se tratasse de um documento para, em seguida, através de um recuo de câmera, um monitor ser revelado: estamos assistindo novamente junto a Rachel Locke uma cena gravada. Ela está visivelmente incomodada pelo fato do marido ser revelado pelo que é: o europeu arrogante frente às culturas locais, às suas ex-colônias. É também Antonioni e todo o cinema europeu, todo o cinema de coprodução internacional que se contempla criticamente pela inversão do ponto de vista.


David Locke e David Robertson


Pouco antes de Locke arrastar o corpo de Robertson para o seu quarto, uma sequência deixa bastante claro como Antonioni coaduna poesia e narrativa ficcional através das ações das personagens, através da arquitetura dos ambientes e do singular trabalho de som que contribui para a ilusão da eliminação do tempo-espaço, a qual se concretiza por um mecanismo muito simples e pouco utilizado no cinema: o plano-sequência que se mantém mesmo quando deve existir um salto espaço-temporal.

A câmera desce do ventilador de teto barulhento pela parede branca ondulada. Locke troca as fotos dos passaportes enquanto ouve a gravação de áudio, provavelmente feita no dia anterior, de uma conversa entre ele e Robertson; a câmera caminha mais uma vez pela parede branca, agora num movimento horizontal para fora do quarto e voltamos no tempo: vemos Robertson vivo junto a Locke no parapeito do hotel, os dois olhando para as areias do deserto. Esse plano-sequência nunca cessará; o filme é a sua dilatação no tempo de uma vida e no espaço de dois continentes.

Imagens em movimento – a definição conceitual de cinema – nada mais são que uma ferramenta para o acesso ao mundo que sabemos existir em todas as potencialidades metafísicas, mas que não temos como acessar visualmente de outra forma.


Notas:


[1] Maurice Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, O olho e o espírito, Coleção Portátil 24, p. 118. Cosac Naify: São Paulo, 2013.

[2] Jean-Claude Biette, Cinémanuel, p. 20. P.O.L. – Trafic: Paris, 2001.

 

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