POR UMA METAHISTÓRIA DO FILME: NOTAS TRIVIAIS E HIPÓTESES
O cinematógrafo é uma invenção sem futuro.
— Louis Lumière
Há muito tempo, de acordo com fontes confiáveis, a História tinha sua própria Musa, e seu nome era Clio. Ela presidia sobre a produção de uma classe de artefatos verbais que se estendiam da aurora das lendas escritas até, possivelmente, Gibbon.
Esses artefatos partilhavam a suposição de que eventos são numerosos e repletos além da compreensão de uma única mente. Eles não propunham um substituto compacto e sistemático para seu mundo concatenado; em vez disso, constituíam um conjunto aberto de ficções racionais dentro deste mundo.
Como coisas fabricadas, fortes em sua própria imanência, essas ficções propunham à nossa energia contemplativa tanto quanto quaisquer outras fabricações humanas. Elas dizem respeito, em última instância, ao que parecia ser a reflexão consciente sobre as qualidades da experiência nas épocas que representavam.
De modo a gerar percepções dentro do significado formal de seu pretexto (isto é, a “verdadeira história”), estas ficções empregam duas táticas. Primeiramente, elas aniquilam intuições ingênuas de causalidade, ignorando deliberadamente a mera cronologia temporal. E então, para o nosso pavor cultural, elas dispensam, em grande parte, as recentes invenções que chamamos de fatos.
Essas ficções são o que poderíamos chamar de metahistórias de evento. Elas permanecem eventos em si mesmas.
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É razoável considerar que o Reverendo Swift, desejando em sua ira confundir o Ocidente, inventou o fato.
Um fato é um módulo indivisível do qual substitutos sistemáticos para a experiência são construídos. Hugh Kenner, em The Counterfeiters, cita uma anedota reveladora do tempo de gestação do fato. Os eruditos contemporâneos de Swift alimentaram um cão com dados. Eles (os dados) passaram pelo cão visivelmente inalterados, mas com seus pesos reduzidos à metade. Sendo assim, um cão passou a ser definido como um dispositivo para (entre outras coisas) diminuir pela metade o peso de um dado.
O mundo continha apenas uma lista enumerável de coisas. Qualquer coisa podia ser considerada simplesmente como a intersecção de um número finito de fatos. O conhecimento, então, era a soma de todos os fatos passíveis de descoberta.
Muitos borrões factuais foram necessários, é claro, para pintar uma imagem verdadeira do mundo; mas a invenção do fato representou, do ponto de vista mecanicista em ascensão, uma diminuição gratificante da força bruta requerida de um tempo em que o conhecimento havia sido o fatorial de todos os contextos concebíveis. É essa mudança na definição de conhecimento que Swift satiriza em As viagens de Gulliver, e que Pope lamenta em A duncíada.
A nova visão permaneceu inquestionada por gerações. Na maior parte dos lugares ainda permanece: do que se deve concluir que não vivemos todos no mesmo tempo.
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O primeiro a colocar os dedos na traqueia de Clio é uma incógnita, mas eu estou inclinado a culpar Gotthold Lessing. Seus descendentes, os pitorescos e desinteressados historiadores da arte do século XIX, fizeram sua parte para acabar com ela. Eles tinham a Ciência como apoio. A Ciência favorecia o fato porque o fato parecia favorecer a previsibilidade. Na esperança de incorporar completamente a profecia ao seu império, os historiadores do século XIX abraçaram o fato, e mergulharam no que James Joyce depois chamou de o “pesadelo” da história.
Havia, simplesmente, fatos demais.
Eles adotaram a estratégia autocontraditória de “selecionar” exemplos quintessenciais, e deles invocar teorias monstruosas de praticamente tudo. Eles se encurralaram em uma armadilha imparcial, e Werner Heisenberg não estava lá para salvá-los: era uma época de absoluta certeza.
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Isaac Newton passou os últimos anos de sua vida escrevendo uma série de volumes em latim sobre religião: a nascente atomização do conhecimento foi um vento feroz do qual ele buscou abrigo em seu tempo. Como jovens cientistas, ele e Leibniz haviam herdado a geometria analítica de Descartes, e o triunfo de seu uso por Kepler para prever os movimentos dos planetas. Equações algébricas lidavam bem o bastante com seções cônicas, mas Newton estava interessado em movimentos de corpos que descreviam caminhos mais intrincados.
O movimento complexo no espaço e no tempo era difícil de traduzir em números. O número “um” era grande demais; o fato matemático deveria ser muito menor. Mesmo a unidade aritmética era certamente uma estrutura imensa construída de pequenas pedras: cálculos infinitesimais, incrementos indivisíveis.
A partir disso, foi um pequeno passo até a suposição de que o movimento consiste em uma interminável sucessão de breves instantes durante os quais há apenas imobilidade. O movimento então pôde ser factualmente definido como o conjunto de diferenças entre uma série de poses estáticas.
Zenão havia retornado com seus paradoxos para se vingar por meio do impassível Cavaleiro da Física.
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Em 1830, Georg Büchner escreveu Woyzeck. Évariste Galois morreu, vítima de um assassinato político, deixando para um amigo uma última carta que continha as fundações da teoria de grupos, ou a metahistória da matemática. Fox-Talbot e Nièpce inventaram a fotografia. O físico belga Plâteau inventou o fenacistoscópio, o primeiro verdadeiro cinema.
Na história do cinema, esses quatro fatos provavelmente não são relacionados. Na metahistória do cinema, esses quatro eventos podem finalmente ser relacionados.
Fox-Talbot e Nièpce inventaram a fotografia porque nenhum deles aprendeu a desenhar, uma façanha comparável à maestria do tango posteriormente e em outro lugar.
Plâteau tinha o cálculo no leite de sua mãe, de modo que suas suposições eram para ele mero reflexo. Ele desenvolveu um interesse pela percepção sensorial e descobriu, olhando para o sol por vinte minutos, uma das falhas mais estranhas de nossos sentidos, eufemisticamente chamada “persistência da visão”.
Sua hibridização de um defeito sensorial com o infinitesimal newtoniano começou a fechar vigorosamente uma curva cujos membros cresciam desde a invenção do alfabeto.
O pequeno esquema de Plâteau começou a juntar Humpty-Dumpty novamente. Como várias outras maravilhas sem futuro, tornou-se um brinquedo vendável, e foi sucedido por novidades semelhantes e genéricas: zootrópio, praxinoscópio, zoopraxiscópio.
Todas elas, copiando inconscientemente o processo intelectual que instigaram, tomaram a forma de ciclos disjuntos: uma eternidade de cavalos galopando e bolas quicando.
E eram todas desenhadas à mão. A fotografia não foi mapeada sobre o esparso terreno do paleocinema até que o primeiro fenacistoscópio fotográfico foi construído, três gerações depois.
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A união do cinema e do efeito fotográfico seguiu uma desengonçada sedução mútua atravessando seis décadas. Houve uma quase-atribuição na vasta obra de Eadweard Muybridge, sob cuja bateria de câmeras construtoras-de-fatos milhares desfilaram seus corpos curiosamente obsoletos.
Em uma sequência, altamente sugestiva de futuras complicações, o próprio mago, um velho nu e barrigudo, carrega uma cadeira até o quadro, se senta, e olha ferozmente para suas câmeras.
Mas as séries sugeriram a Muybridge apenas a analogia pronta do espaço do livro: sucessivo, acessível aleatoriamente, anisotrópico em relação ao tempo. Por conseguinte, ele as publicou como edições de placas.
O encontro crucial foi adiado, à espera da proteção de dois irmãos que possuíam o apropriado nome de Lumière.
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A relação entre cinema e fotografia estática supostamente apresenta uma questão controversa. O conhecimento comum é da linha ovo/galinha: o cinema de alguma forma “acelera” a fotografia estática até o movimento.
É implícita a asserção de que o cinema é um caso especial da fotografia estática católica. Como não há qualquer necessidade observável na lógica visual das fotografias estáticas que demande tal “aceleração”, é difícil ver como ela pode sequer acontecer.
É um lugar-comum histórico que a descoberta de casos especiais precede no tempo a extrapolação de leis gerais. (Por exemplo, o triângulo retângulo com lados racionais medindo 3, 4 e 5 é mais antigo que Pitágoras.) A fotografia pré-data o cinema fotográfico.
Eu proponho então retirar o cinema desse labirinto circular, sobrepondo a ele um segundo labirinto (contendo uma saída) –, postulando algo que começou a se tornar uma atualidade: podemos concordar em chamá-lo de cinema infinito.
Uma câmera polimorfa sempre esteve ligada, e estará para sempre, com sua lente focada em todas as aparências do mundo. Antes da invenção da fotografia estática, os fotogramas do cinema infinito eram vazios, como pontas pretas; até que poucas imagens começaram a aparecer sobre a interminável fita de filme. Desde o nascimento do cinema fotográfico, todos os fotogramas estão preenchidos com imagens.
Não há nada na lógica estrutural da fita de filme cinematográfico que nos impeça de sequestrar uma única imagem. Uma fotografia estática nada mais é que um fotograma isolado retirado do cinema infinito.
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A História vê o casamento do cinema com a fotografia como uma conveniência; a metahistória deve vê-lo como uma necessidade.
A câmera lida, de um jeito ou de outro, com cada partícula de informação presente no campo de visão; ela é totalmente indiscriminada. Fotografias, para a alegria e miséria de todos que as fazem, invariavelmente nos contam mais do que gostaríamos de saber.
A estrutura definitiva de uma imagem fotográfica parece nos escapar na mesma medida que a estrutura definitiva de qualquer outro objeto natural. Diferente de imagens gráficas, que se decompõem, sob exame detalhado, em padrões factuais de linhas e pontos, a fotografia parece um contínuo virtualmente perfeito. Daí a intensidade de suas ilusões: sua amplitude instantaneamente faz da fotografia – dentro de seu próprio mecanismo – a restauração subversiva do conhecimento contextual aparentemente coterminal com todo o mundo sensível.
O cinema poderia alegar – pelo mesmo nexo – um feito complementar: a ressurreição de corpos no espaço de suas trajetórias desmembradas.
A consumação esperada aconteceu no horário de saída em uma fábrica na França, numa tarde ensolarada no fim do século, enquanto garotas sorridentes acenavam e vibravam. O acontecimento imediato foi uma máquina excepcional.
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Tipicamente, tudo o que sobrevive intacto de uma era é a forma de arte que ela inventa para si mesma. Latas e montes de lixo são restos de tempos neolíticos, mas a prática da pintura continua inteira de Lascaux até o presente. Podemos presumir que a música chegue até nós de uma era mais remota, quando as cordas foram inicialmente esticadas no sistema nervoso dos vertebrados.
Estas invenções servem originalmente ao fim da pura sobrevivência. O rouxinol canta para atrair as fêmeas. Pinturas rupestres supostamente ajudavam a caça; poemas, como Confúcio nos diz nos Analetos, ensinam os nomes dos animais e das plantas: a sobrevivência para a nossa espécie depende de termos a informação correta no momento certo.
Conforme uma era se dissolve lentamente na outra, alguns indivíduos metabolizam os antigos meios de sobrevivência física em novos meios de sobrevivência psíquica. A esses últimos, damos o nome de arte. Eles promovem a vida da consciência humana nutrindo nossos afetos, reencarnando nossas substâncias perceptuais, afirmando, imitando, reificando o processo da consciência.
O que eu estou sugerindo, em termos mais simples, é que nenhuma atividade pode se tornar uma arte até que sua própria época tenha terminado e que tenha caído, como acessório para a sobrevivência primária, na total obsolescência.
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Eu nasci durante a Era das Máquinas.
Uma máquina era uma coisa feita de “partes” reconhecíveis, organizadas como imitação de alguma função do corpo humano. Dizia-se que as máquinas “funcionavam”. Como uma máquina “funcionava” era logo aparente a um adepto, por inspeção da forma de suas “partes”. Os princípios físicos pelos quais as máquinas “funcionavam eram intuitivamente verificáveis.
O cinema é a típica forma sobrevivente da Era das Máquinas. Junto com seu subconjunto de fotografias estáticas, realizava funções memoráveis: nos ensinava e nos lembrava (depois do que parecia ter sido um atraso suportável) como as coisas se pareciam, como funcionavam, como fazer as coisas... e é claro (por exemplo), como sentir e pensar.
Nós acreditamos que isso duraria para sempre, mas quando eu era apenas um garoto, a Era das Máquinas chegou ao fim. Não devemos nos deixar enganar pelo abridor de latas elétrico: pequenas máquinas se proliferam agora como se estivessem fora de moda porque é precisamente isso que está acontecendo.
O cinema é a Última Máquina. É provavelmente a última arte que alcançará a mente por meio dos sentidos.
É costume marcar o fim da Era das Máquinas com o advento do vídeo. O ponto no tempo é impreciso: eu prefiro o radar, que substitui o avião de reconhecimento mecânico por uma caixa preta anônima. Sua introdução coincide com a produção de Tramas do entardecer (Meshes of the Afternoon), de Maya Deren, e Geography of the Body, de Willard Maas.
A noção de que há um instante exato em que as mesas foram viradas e o cinema se tornou obsoleto, e portanto uma arte, é uma ficção agradável que implica uma tarefa especial para o metahistoriador do cinema.
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O historiador do cinema se depara com um problema aterrador. Buscando em seu objeto algum princípio de inteligibilidade, ele é obrigado a tomar responsabilidade por cada fotograma de filme existente. Pois a história do cinema consiste precisamente de cada filme que já foi feito, por qualquer razão, seja ela qual for.
De todo o corpus, coisas como O encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin, Sergei M. Eisenstein, 1925) compõem uma fração incrivelmente pequena. O balanço inclui filmes institucionais, filmes cantados, cinematografia endoscópica, e muito, muito mais. O historiador não se atreve a selecionar ou ignorar, pois se o fizer, o tesouro certamente o escapará.
O metahistoriador do cinema, por outro lado, dedica-se a inventar uma tradição, isto é, um conjunto prático e coerente de monumentos discretos, destinado a inseminar coerência ressonante no campo crescente de sua arte.
Estas obras podem não existir, e então é o seu dever criá-las. Ou elas podem já existir, de algum modo fora das fronteiras intencionais de sua arte (por exemplo, na pré-história da arte cinematográfica, antes de 1943). E então ele deve refazê-las.
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Não há evidência na lógica estrutural da fita de filme que diferencie “material bruto” de um trabalho “terminado”. Logo, qualquer pedaço de filme pode ser considerado “material”, a ser utilizado de qualquer maneira imaginável, para construir ou reconstruir uma nova obra.
Portanto, é possível ao metahistoriador utilizar obras antigas como “material”, e construir uma obra nova e idêntica, necessária à tradição.
Quando isso é impossível, por perda ou dano, novo material deve ser gerado. O resultado será perfeitamente semelhante à obra anterior, mas “quase infinitamente mais rico”[1].
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Cinema é uma palavra grega que significa “movimento”. A ilusão de movimento é certamente um acréscimo habitual da imagem fílmica, mas essa ilusão se apoia na suposição de que a frequência de mudança entre fotogramas sucessivos varia apenas entre limites curtos. Não há nada na lógica estrutural da fita de filme que justifique tal suposição. Portanto, nós a rejeitamos. Daqui em diante, chamaremos nossa arte simplesmente: filme.
O filme infinito contém uma infinidade de passagens intermináveis em que nenhum fotograma lembra nenhum outro em nenhum nível, e outra infinidade de passagens em que fotogramas sucessivos são tão parecidos quanto a inteligência pode perceber.
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Eu chamei o filme de A Última Máquina.
Pelo que podemos lembrar delas, as máquinas se aproximavam vagamente dos mamíferos em tamanho. A máquina chamada filme é uma exceção.
Estamos acostumados a pensar na câmera e no projetor como máquinas, mas eles não são. Eles são “partes”. A fita flexível de filme é tão “parte” da máquina fílmica quanto o projétil o é da arma de fogo. O total de rolos de filme ultrapassa as outras partes da máquina por várias ordens de magnitude.
Como todas as “partes” se encaixam, a soma de todos os filmes, todos os projetores, todas as câmeras no mundo constitui uma máquina, que é de longe o maior e mais ambicioso artefato já concebido pelo homem (com a exceção da própria espécie humana). A máquina cresce milhões de metros de material a cada dia.
Não é surpreendente que algo tão grande possa completamente engolir e digerir toda a substância da Era das Máquinas (com máquinas de tudo), e finalmente substituir a totalidade com sua carne ilusória. Tendo devorado todo o resto, a máquina fílmica é a única sobrevivente.
Se formos realmente amaldiçoados com a tarefa comicamente convergente de desmantelar o universo e fabricar de seus restos um artefato chamado O Universo, é razoável supor que tal artefato vai se assemelhar aos cofres de um interminável arquivo fílmico para guardar, em um abrigo frio e eterno, o filme infinito.
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Se a fita de filme e o projetor são partes da mesma máquina, então “um filme” pode ser definido, operacionalmente, como “tudo o que passará pelo projetor”. O mínimo que pode fazê-lo é absolutamente nada. Este filme já foi feito. É o único filme existente.
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Vinte anos atrás, no fascínio da necessidade adolescente de se “modernizar”, eu fui encantado pela afirmação de Walter Pater de que “todas as artes aspiram à condição da música”, que na ocasião eu entendi aprovar a liberdade da música em relação a eventos fora de si mesma.
Agora eu comento, e tento praticar, uma arte que se alimenta de ilusões e referências desprezadas ou rejeitadas por outras artes. Mas me ocorreu que o filme cumpre o que talvez seja, no fim das contas, a condição primária da música: não produz um objeto.
O músico ocidental normalmente não faz música: sua notação codifica uma série de instruções para aqueles que fazem. A partitura possui com a música o tipo de semelhança que a hélice genética possui com o organismo vivo. Para existir, a música deve ser apresentada, uma dificuldade que John Cage renuncia no prefácio de A Year from Monday (1967), onde ele aponta que fazer música até então tem consistido largamente em dizer aos outros o que fazer.
O ato de fazer um filme, de construir fisicamente a fita de filme, se parece um pouco com a construção de um objeto: que os artistas fílmicos tenham se apropriado da materialidade do filme é de importância inestimável, e o filme certamente possibilita explorações desse nível. Mas no instante em que o filme é terminado, o “objeto” desaparece. A fita de filme é um aparato elegante para modular feixes padronizados de luz. O trabalho fantasma transpira sobre a tela enquanto sua notação é lida por um virtuoso intérprete mecânico, o projetor.
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O metahistoriador do filme cria para si mesmo o problema de derivar uma tradição completa de nada mais que os limites materiais mais óbvios da máquina fílmica completa. Deve ser possível, ele especula, passar de The Flicker para Unsere Afrikareise, ou Tom, Tom, the Piper’s Son, ou La région centrale[2], e daí em diante, em passos finitos (cada passo um filme), exercendo apenas uma opção perfeitamente racional a cada lance. O problema é análogo ao Passeio do Cavalo no xadrez[3].
Entendido literalmente, é insolúvel, infelizmente. Os caminhos geralmente se abrem em garfos para o Cavalo (para reconvergir sabe-se lá onde). O tabuleiro é uma matriz de linhas e colunas incalculáveis, onde nenhum ponto de partida pode ser defendido com confiança.
Apesar de tudo, eu vislumbro a possibilidade de construir um filme que seja um tipo de conjugação sinóptica de tal passeio – um Passeio dos Passeios, digamos, ou o filme infinito, de todo o conhecimento, o que significa a mesma coisa. Em vez disso, algumas dessas possibilidades se apresentam insistentemente à minha imaginação, disfarçadas como o germe de um plano para a execução[4].
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O filme finalmente atraiu a sua própria Musa. Seu nome é Insônia.
H.F.
Eaton, Nova York
Junho, 1971.
Notas, por Bruce Jenkins:
[1] A citação é uma referência ao conto de Jorge Luis Borges de 1939, “Pierre Menard, autor do Quixote”, em que Borges descreve as tentativas de Menard (uma personagem ficcional) de exceder o ato de apenas traduzir, produzindo um texto que “irá coincidir – palavra por palavra e linha por linha – com o de Miguel de Cervantes.” De acordo com Borges, “O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, mas o segundo é infinitamente mais rico.” Ver Ficciones, ed. Anthony Kerrigan (Nova York: Grove Press, 1962), p. 52.
[2] The Flicker (Tony Conrad, 1965-1966), Unsere Afrikareise (Peter Kubelka, 1961-1966), Tom, Tom, the Piper’s Son (Ken Jacobs, 1969-1971) e La région centrale (Michael Snow, 1971) foram filmes realizados por contemporâneos de Frampton que exploraram a materialidade do meio.
[3] O “passeio do cavalo” é um problema no xadrez em que o cavalo é posicionado num tabuleiro vazio, devendo então passar por todas as casas em movimentos consecutivos, sem repetir nenhuma delas. Com a referência, Frampton alude provavelmente ao livro homônimo de Viktor Chklóvski (publicado em 1923), uma das principais figuras do formalismo russo. [N.T.]
[4] Esta é uma das principais referências ao imenso ciclo fílmico de Frampton, Magellan, que ele iniciou em 1972, o ano posterior ao da escrita do ensaio. Magellan permaneceu inacabado até sua morte em 1984.
(Artforum, vol. 10, n.º 1, setembro de 1971. Republicado em On the Camera Arts and Consecutive Matters: The Writings of Hollis Frampton, Bruce Jenkins [ed.], Massachusetts: The MIT Press, 2009, pp. 131-139. Traduzido por Lucas Baptista) |
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