VIAGEM FANTÁSTICA
por João Bénard da Costa



Viagem fantástica foi um êxito de público e crítica, com indicações para vários “Oscars” e um ganho (pela sua direção artística). Ficou como um dos pontos mais altos da carreira irregular de Richard Fleischer.

Viagem fantástica (desde o título) joga permanente e habilmente no equívoco. “Fantastic Voyages” são coisas normalmente do espaço e quem nada saiba do filme, facilmente será levado a acreditar que é isso que vai ver. Não é. Mas a viagem no interior do corpo humano é sempre análoga à viagem espacial e há múltiplas referências (visuais e de diálogo) no filme que impõem permanentemente tal analogia. Estamos dentro, mas também estamos fora, perdida, desde que a viagem começa, a proporção que nos podia remeter para uma maior alucinação.

É certo que o filme é pontuado por chamadas ao exterior (os médicos, a sala de operações, a presença visível do corpo anestesiado do cientista, dentro do qual tais coisas se passam). Mas também que essa montagem paralela só funciona por razões de “suspense” e que progressivamente a questão deixa de ser a de salvar ou não o sábio, mas a de salvarem ou não os exploradores do seu corpo. Com um acréscimo originado pela luta entre o “bem” e o “mal” que, no interior do grupo, no interior do corpo, se trava. Nem falta um “falso culpado” e uma intriga policial, só desvendada no fim.

Quem tiver visto esse incrível filme que é O incrível homem que encolheu (The Incredible Shrinking Man, Jack Arnold, 1956-1957) terá uma curiosa ocasião de comparar duas obras que têm por tema “o encolhimento”. Só que enquanto no filme de Arnold a nossa perspectiva acompanhava a do protagonista e jamais se “distanciara” da dele (o que é uma das mais singulares apostas desse filme ímpar), aqui a inversão da perspectiva funciona ao contrário. Exceto na sequência do “encolhimento” e na sequência final (quando os protagonistas são colhidos da lágrima), a aparência dos atores é sempre “normal”, o macroscópico prevalecendo sobre o microscópico. A perspectiva invertida é a dos corpos “infinitamente pequenos” (células, micro-organismos, anticorpos) que, ampliados, ganham a proporção gigantesca que permite o terror e a maravilha. O homem mantém-se, mesmo à escala microscópica, mesmo no interior de outro corpo de homem, como centro e medida de todas as coisas, sem que jamais a monstruosidade seja dada do seu lado. Em O incrível homem que encolheu, o monstro era o homem, reduzido à escala infinitesimal; em Viagem fantástica, como nos filmes espaciais, os monstros são os aliens, mesmo que saibamos que esses aliens estão in e não out, são células do nosso corpo e não criaturas de outros espaços. Em O incrível homem que encolheu, o humanismo funcionava, em lenta investida, impondo-nos o espanto da sua (im)possibilidade. Em Viagem fantástica o humanismo é direto e declarado. Mesmo quando as comunicações se cortam entre os “viajantes” e os “homens do exterior”, é possível a compreensão entre uns e outros, ou seja, é possível que se estabeleça a comunicação racional (aconteceu X, reagirão Y, eles vão perceber que por causa do X, nós vamos ter que fazer Y). E a tripulação do submarino, ao contrário do “shrinking man” de Arnold, sabe que o seu estado é passageiro e controlável. São uma maravilha da ciência e não uma aberração da natureza.

Isto dito – e a compreensão desse humanismo é fundamental para explicar o êxito do filme e o seu impacto – importa dizer que Viagem fantástica é sobretudo um prodigioso argumento, prodigiosamente construído.

Exposta brevemente a situação (importância do “homem que vem do frio”, atentado), a ação começa verdadeiramente com a reintrodução de Stephen Boyd, quando este é acordado a meio da noite. Nem ele, nem nós percebemos a razão disso, ele como nós nos despistamos sobre o lugar onde o conduzem, até que Edmond O’Brien define as regras do jogo. Com um grupo sabiamente escolhido (o homem, a mulher, o suspeito e auxiliares técnicos indispensáveis) estabelece-se simultaneamente o microcosmos e o microgrupo, na micro-macro viagem que “nunca ninguém fez” e nas “paisagens” que serão os primeiros a contemplar.

A partir daí, o espectador é levado a confundir os dois planos, como os protagonistas: é “voyeur” (tanta maravilha, prodígio da direção artística e dos efeitos especiais), é detetive para perceber quem, naquele grupo, está a querer sabotar a expedição (ou seja, a matar o professor, e principalmente a matar os colegas) e é cúmplice do tempo imposto, “torcendo” pela salvação dos heróis, mais do que pela salvação do cientista, que só nuns rápidos minutos vimos “corpo vivo”. Entre a espetacularidade e o “suspense” decorre a “fantástica viagem”, “história trágico-marítima” de cujo “happy end” jamais descremos.

É exatamente esse sentido de aventura e esse sentido de espetáculo que dá a Viagem fantástica o seu poder de fascínio, brilhantemente servido não só pelo script como pela realização de Fleischer. Mais uma vez, o científico importa muito pouco (a total inverossimilhança da viagem – mas não se chama ela precisamente fantástica?) e a ficção domina tudo. O “passe de mágico” (o crédito dos técnicos e do realizador) é fazer-nos sofrer durante a viagem como se a implausibilidade não existisse.

Asimov, o célebre escritor de “fc”, gosta de contar, a propósito de Viagem fantástica, uma das suas anedotas favoritas. “Quando o filme acabou, a minha filha Robyn voltou-se para mim e disse: ‘Mas o submarino não vai agora aumentar e matar o homem, pai?’ ‘Vai, Robyn’ – expliquei-lhe – ‘mas percebes isso porque és mais inteligente do que a média dos produtores de Hollywood. De resto, já tens 11 anos’”.

Também outro autor resumiu o filme dizendo que se tratava de uma história de policiais e ladrões dentro de um corpo humano. Logicamente tem toda a razão. Mas Viagem fantástica nada tem que ver nem com essa lógica, nem com essa razão.

Uma vez mais, tem que ver com o “sense of wonder” e é nesse sentido que o filme funcionou e funciona.

O submarino descontrolado na veia jugular; os ventos ciclônicos dos pulmões; os ruídos do ouvido interno; a travessia do coração; e sobretudo a belíssima solução da lágrima, esses são os efeitos graças aos quais a viagem é fantástica e graças aos quais no fantástico viajamos. E mesmo que o público bata palmas quando Donald Pleasence tem o merecido castigo, ou sofra com o ataque dos “anticorpos” a Raquel Welch, tudo isto é bom, porque tudo isso é espetáculo. E aqui viemos, e aqui viajamos para o ver. The Greatest Show in the World. Para o resto, há por aí muitos documentários científicos, que se podem ver com mais proveito didático.


(“Redescobrir Richard Fleischer”, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 1 a 4 de junho de 2007)

 

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