O ESCÂNDALO DO SÉCULO
por João Bénard da Costa



(The Girl in the Red Velvet Swing). 1955. 20th Century Fox (109 minutos). Produção: Charles Brackett. Roteiro: Walter Reisch e Charles Brackett. Fotografia: Milton Krasner (CinemaScope, DeLuxe). Música: Leigh Harline. Cenografia: Lyle R. Wheeler, Maurice Ransford (a.d.), Walter M. Scott, Stuart A. Reiss (s.d.). Montagem: William Mace. Elenco: Ray Milland (Stanford White), Joan Collins (Evelyn Nesbit), Farley Granger (Harry Kendall Thaw), Luther Adler (Delphin Delmas), Cornelia Otis Skinner (Sra. Thaw), Glenda Farrell (Sra. Nesbit), Frances Fuller (Sra. Elizabeth White), Philip Reed (Robert Collier), Gale Robbins (Gwen Arden), James Lorimer (McCaleb), John Hoyt (William Travers Jerome), Robert Simon (gerente de palco), Harvey Stephens (Dr. Hollingshead), Emile Meyer (Hunchbacher).


Eis um filme que não se vê em Portugal há mais de 40 anos (considerando que a sua carreira comercial entre nós deve ter terminado em 1961). Mesmo que as televisões o tenham exibido, quem o conheça delas não o conhece, de tal forma o Scope e o DeLuxe são substanciais a esta obra. Eis um filme que nunca teve lugar entre os cerca de 15.000 títulos exibidos em sessões da Cinemateca, desde que esta mudou de nacional para portuguesa, em 1980. Por quê? Quem saiba que explique, que eu não o consigo explicar a mim mesmo.

Aliás, já que estou em maré de auto-ajuste de contas, devo confessar a minha má consciência em relação a Richard Fleischer (n. 1916). Em 1990, tinha ele 73 anos em muito boa forma, conheci-o graças a Peter von Bagh, que o convidou para o Festival de Sodankylä. Revi nessa altura alguns filmes dele, outros vi-os pela primeira vez e perguntei-me por que nunca tinha pensado num Ciclo Richard Fleischer, quarenta e sete longas-metragens entre 1946 e 1989. Propus a ideia a Fleischer (além de tudo, a simpatia em pessoa) e ele logo aceitou o “convite”. Disse-me que estava a escrever memórias, que contava concluir em 1993. Falou-se numa edição portuguesa, combinou-se tudo. Despedimo-nos até 1993. As memórias saíram em 1993 – Just Tell Me When to Cry, chamam-se –, Fleischer escreveu-me a saber novas. Havia muitas cópias (nada de espantar em um realizador que tanto cultivou o Scope e tanto usou cores DeLuxe) que só estavam disponíveis em cor de rosa pálido e essa foi a desculpa para adiar. Aquelas coisas de que nunca se desiste. Mas que o tempo resolve contra nós, estão a ver? Só hoje reparo que já lá vão dez anos. Fleischer tem 86 anos e possivelmente já não viaja. O mais certo é nunca haver um Ciclo Fleischer com Fleischer. O mais certo é eu nunca mais voltar a ver Richard Fleischer.

Quer isto dizer que o meu entusiasmo por ele não é tão grande como parece e que, herdeiro dos anos 1950 de capa amarela, herdei uma estima por Fleischer que nunca foi paixão? Aquele gênero de opinião que fez Doniol-Valcroze escrever em 1956, em crítica a este mesmo O escândalo do século: “bom trabalho, cuidadoso, consciencioso, sóbrio e elegante”? Nada disso. Por esta Girl me apaixonei aos 21 anos e recentes revisões reavivaram-me o assolapamento. E tanto tanto que gosto das 20.000 léguas de James Mason (revê-las-emos, no próximo mês), de Sábado violento (1955), de Entre o Céu e o Inferno (1956), de Estranha compulsão (1959), de Tragédia num espelho (1960), de Viagem fantástica (1966), de O homem que odiava as mulheres (1968), de O estrangulador de Rillington Place (1970-1971), de No mundo de 2020 (1973), de Mandingo – O fruto da vingança (1974-1975) etc. etc. etc., fora o bastante que não conheço. Alguns desses títulos têm sido visitantes usuais da Cinemateca, tantos outros nunca por aqui passaram. Valha-me o testemunho dos que revoltaram as massas no dia em que incluí Mandingo – O fruto da vingança entre as cem obras-primas esquecidas do cinema. Mas, mais do que todos, me balança e me balouça esta rapariga que um dia voou tão alto que chegou à lua, depois de rasgar com o pé em riste o chapéu de sol japonês, último obstáculo entre ela e o êxtase. Um veludo tão encarnado, uma tal atração pelas alturas...

Na legenda inicial do filme, quase inteiramente construído por um longo flashback, lê-se:

“Em 1906 o caso Thaw-White devastou a América. Por envolver um homem de enorme prestígio, outro imensamente rico e uma rapariga extraordinariamente bela. Ainda hoje, este caso é único nos anais do crime”.

Segue-se a habitual caução, com o recurso às atas do processo e ao testemunho de Evelyn Nesbit, à época com 71 anos.

Nos anos 1950, poucos se lembrariam do caso Thaw-White ou de Nesbit. Mas, entre 25 de junho de 1906, dia do crime, e 5 de fevereiro de 1907, dia da leitura da sentença, ninguém falou doutra coisa. Não é todos os dias que um arquiteto famoso (Stanford White foi o autor da Penn Station, da Biblioteca de Boston, do Arco de Washington e, sobretudo, do Madison Square Garden) é assassinado a tiro por um jovem multimilionário, enquanto ambos assistiam a uma representação de Mam’zelle Champagne, no restaurante do terraço do Madison Square Garden. No palco canta-se “I Could Love a Million Girls” e no restaurante o assassino clamou bem alto: “Matei este homem porque ele depravou a minha mulher.” Harry Thaw, o milionário, estava casado há onze meses com uma ex-corista, que tinha então 20 anos. O “depravador” 50.

Mas o genial argumento dos geniais argumentistas que foram Brackett (Lubitsch, Mitchell Leisen, Billy Wilder) e Reisch (Lubitsch, Cukor) e a ainda mais genial realização de Fleischer, não dedicaram grande atenção ao processo nem ao que nele se apurou ou não apurou. Para o espectador de hoje é quase indiferente saber que a história teve como base um fato verídico ou tomá-la como pura ficção. Quase, disse eu. Mas esse quase é de bom tamanho, pois, se não o fosse, a Fox não tinha alargado tanto os cordões à bolsa com uma faustosa e impecável reconstituição da “Belle Époque”. O caso Thaw-White ficou sobretudo como um símbolo da enorme transformação de costumes desses anos iniciais do século. Recomendando a quem queira saber mais a leitura do artigo “Evelyn Nesbit and the Film(ed) Histories of the Thaw-White Scandal”, de Stephanie Savage (Film History vol. 8, n.º 2, 1996), recordo que, à época, toda a imprensa acusava os nickelodeons e a “imoralidade do cinema” de contribuírem para a dissolução de costumes que levara ao “crime do século”. Kevin Brownlow contou como a polícia interrompeu as primeiras “cinematizações” do caso (em 1907) e como quase todos os jornalistas associaram essa exploração ao “wholly vicious” ambiente que o cinema estava a levar à América.

Sete anos mais tarde, na sua reatada carreira artística, Evelyn Nesbit faz 10 filmes entre 1914 e 1922, o último dirigido por Allan Dwan com o sugestivo título The Hidden Woman. Em quase todos representou o seu papel de “mulher caída”, em busca da redenção.

Ora, quando a Fox de Zanuck decidiu, correndo riscos vários, levar ao cinema a história de Evelyn, estava a começar a era pós-código, ou seja, os anos em que Hollywood sacudiu o jogo dos tabus a que durante mais de vinte anos obedeceu. 1955 é também o ano de O pecado mora ao lado (The Seven Year Itch, de Billy Wilder), Férias de amor (Picnic, de Joshua Logan), Vidas amargas (East of Eden, de Elia Kazan), O homem do braço de ouro (The Man with the Golden Arm, de Otto Preminger) ou Sementes de violência (Blackboard Jungle, de Richard Brooks), entre vários outros. O caso de O escândalo do século foi seguido de perto. Tinha que acabar com o castigo da girl e atenuar imenso as referências às orgias na garçonnière do arquiteto ou ao tema da caviar girl ou da champagne girl. A decoração do quarto do baloiço foi rigorosamente vigiada: nenhum objeto explícito. Além disso, proibição total de fazer referências a aspectos históricos conhecidos: a homossexualidade de Harry ou o fato de Evelyn ter proclamado que era de Harry o filho nascido onze meses depois da sentença e a que deu o apelido Thaw.

À época houve quem falasse de uma soft version do célebre caso. Nada mais falso. Se há filme que respira erotismo por todos os poros, esse filme é O escândalo do século, e é nessa carga erótica que reside grande parte do seu fascínio.

Repare-se, por exemplo, e para seguir a ordem cronológica, no primeiro jantar em Madison Square Garden, quando Evelyn ainda nem existe. Já tudo estremece na relação do casal White (“os homens parecem sempre 20 anos mais novos do que as mulheres”) e o conflito com Thaw subentende várias coisas deste: a agressividade neurótica, o séquito dos acompanhantes masculinos, a cena com o criado.

Até que chegamos ao teatro e a Evelyn, a quem daqui para diante só vou chamar Joan Collins. Como se sabe, a celebridade desta atriz é sobretudo televisiva e data dos anos 1980 e da série Dinastia (Dynasty, 1981-1989). Serviu em Hollywood, ou serviu-se de Hollywood, por pouco mais que dez anos (1955-1967), e nunca conseguiu ser uma estrela de primeira grandeza.

Mas há quatro filmes que chegam para a imortalizar: este, acima de todos; Terra dos faraós (Land of the Pharaohs, 1955; Howard Hawks nunca se enganou nas mulheres), A delícia de um dilema (Rally ‘Round the Flag, Boys!, Leo McCarey, 1958) e Esther e o rei (Esther and the King/Ester e il re, Raoul Walsh, 1960).

Aqui tudo é dela, desde a entrada, nos bastidores do palco, tão scholar, com a grande trança preta, o chapéu e a gravata verde. Duas vezes, à primeira vista, dois homens não repararam nela. À segunda (“take your hat off”) já lhe estão aos pés. As colunas erguem-se ou jazem (construção do pavilhão do jardim) e “you’re just a dream” (estou a pensar em Ray Milland). Um presente volve-se em dois (estou a falar de Farley Granger).

Quem experimentou tão grande poder tem vontade de brincar. A associação entre a loja de brinquedos e a garçonnière de White é lapidar. Ninguém falou de pedofilia, mas Evelyn tinha apenas 17 anos e nunca tinha provado caviar (“It’s better with champagne – one glass, just one”).

Na terceira visita à loja dos brinquedos, já são duas taças de champanhe e não uma. E é depois da segunda (que Ray Milland não a vê beber) que ela entra no quatro do balouço e “of course, the phallic symbolism so clearly refers”. Não precisamos de simbolismos para nada. Bastam os grandes planos de Ray Milland (os olhos, os olhos) e os clímaces de Joan Collins. Essa sequência é um dos grandes momentos da erótica cinematográfica. “Curiosity killed the caviar girl”? Pode haver outras opiniões, mas não outras visões. “Midsummer night’s dream”, “You are much too pretty”. O beijo. E o dente, o dente.

Mas tenho que voltar atrás, porque depois da visita do “Call me Mr. White. Call me sir. And don’t come back again” (porque alguém tem que fazer alguma coisa e com a idade dele esse alguém é ele) há a fabulosa sequência do quadro na praia, em que, ao dizer uma palavra, se interioriza em Joan Collins o plano da terceira visita. A espuma do mar, os cavalos de Farley Granger à desfilada. O fato de banho e o guarda-sol.

Por alguma razão, mais à tarde no colégio, na antológica sequência de telefonema na noite, as imagens que se sobrepõem no desmaio de Joan Collins são as do balouço, das ondas, da espuma do mar, do gato e do auscultador do telefone, ele próprio se balouçando, despousado do bucal.

Essa é a sequência mais delirante do filme e a de mais livres e ousadas associações. Perdido o lugar de mulher, ela perde aí, também, o de filha e soçobra na letargia de que a desperta Farley Granger, efemeramente transformado em doce príncipe.

Prodigiosa é a sequência na neve, com a confissão, mas mais prodigiosa ainda é a do comboio. De novo é um balanço (um balouço) que a leva a sair da cabine a procurar Farley Granger. Os uivos e os apitos bem a avisam, mas o cruzamento com o outro comboio pode mais que tudo. Tamanha mobilidade imobiliza-se na sinistra fotografia do casamento, quando tanto chovia lá fora.

A partir daí o filme cerra-se em elipses tão significativas como o que nos fora metido pelos olhos dentro. Elipse da noite de núpcias, quando certamente não era apenas de vinho tinto e de champanhe que Farley Granger queria saber. Elipse do Beast, transformado em B. A única claridade – mas foi a última – é a da sequência do dentista.

A partir daí, confinada e cativa, Joan Collins só existe murada, ou à porta do elevador, quando um travelling sublime vem esperar Farley Granger junto à mesa de Ray Milland.

Mas o filme do balouço tinha que subir mais alto. E isso acontece na sequência final, em que The Girl in the Red Velvet Swing se transforma em Lola Montes (Lola Montès, Max Ophüls, 1955), com ela culminando, em eterno retorno, o movimento de que jamais se conseguirá desprender.

O escândalo do século e Lola Montes são filmes do mesmo ano. Coincidência? Acho possível, mas não provável. Longe de mim pensar em influências. Mas quando as almas e os corpos balançam tanto como balançaram em 1955, há pessoas que são como sismógrafos. Por isso estes são os filmes que mais estremecem. Swing. Red. Velvet. E uma rapariga chamada Joan Collins.



 

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