ENCONTRO COM RICHARD FLEISCHER
por Bertrand Tavernier


Que eu saiba Richard Fleischer nunca foi entrevistado, e é pena, pois os poucos minutos que pude passar com ele em seu escritório na Fox, em Hollywood, revelaram um homem singularmente cativante, bem diferente da média dos realizadores americanos: culto, inteligente, apaixonado, defendendo com um calor convincente alguns de seus filmes.

RICHARD FLEISCHER: A primeira vez que pude tentar alguma coisa foi em O cerco, um pequeno documentário policial no qual tentei cuidar da atmosfera e da sequência final. Mas foi com Rumo ao Inferno que eu verdadeiramente consegui encontrar um certo estilo de mise en scène. Aceitei o tema com entusiasmo porque cada plano acarretava inúmeros problemas e eu queria me arriscar. Precisava dar ao filme um movimento visual um pouco sincopado, por causa dos espelhos, dos vidros, dos corredores, das idas e vindas perpétuas de pessoas que se cruzam, reencontram-se, e esse emaranhado de coisas era assustadoramente complicado de se resolver.

CAHIERS: O que você pensa de Era uma vez uma herança?

RICHARD FLEISCHER: Foi uma das primeiras produções de Stanley Kramer e uma tentativa muito nova, pelo menos na América: fazer um filme que não era nem um drama, nem uma comédia, praticamente sem história, sobre pessoas bastante simples. Gosto muito desse filme, mas foi um fracasso retumbante. Era muito refinado, avançado demais para o público americano.

CAHIERS: O fato de ser filho de Max Fleischer o influencia?

RICHARD FLEISCHER: Você quer dizer visualmente? Claro. Graças a meu pai conheço muito bem as artes plásticas e isso me leva a utilizar técnicas que se sobressaem menos no cinema do que na pintura ou no desenho. É o caso de 20.000 léguas submarinas, que é quase um desenho animado, e sobretudo do filme que acabei de realizar, Viagem fantástica, no qual trabalhei durante meses para obter efeitos plásticos totalmente inéditos. Com meu diretor de fotografia preferido, Ernest Laszlo, nós tentamos suprimir os cenários e substituí-los pela luz. Graças às matérias transparentes e aos posicionamentos dos jogos de luzes obtivemos resultados impressionantes. Demos vida a um cenário imaginário graças a uma repartição das zonas de sombras, de diferentes cores. E como, excepcionalmente na ficção científica, o roteiro foi construído sobre um postulado adulto e não sobre uma estúpida história para crianças anormais, creio que as pessoas ficarão bastante interessadas.

Eu até mesmo realizei uma experiência plástica em um western, Fama a qualquer preço, que é uma transposição extremamente fiel das pinturas de Mondrian. O lugar das cores, suas formas, reproduz os mais belos quadros de Mondrian, algo que ninguém percebeu.

CAHIERS: O filme era uma alegoria social?

RICHARD FLEISCHER: Social e política. Era uma crítica a uma atitude muito americana, uma espécie de egoísmo monstruoso, de recusa de intervir na vida dos outros desde que eles não lhe ameace, a qual leva ao pior conservadorismo político. Creio que seja um filme bem pessimista.

CAHIERS: Entre o Céu e o Inferno tinha as mesmas ambições...

RICHARD FLEISCHER: Esse filme foi muito alterado, e o que continha acabou edulcorado. No início se chamava The Day the Century Ended. Eu adorava esse título, resumia a moral do filme. Essa guerra era o fim de um século, de um modo de vida, de uma maneira de pensar. Os Estados Unidos entravam no século XX, especialmente essas pessoas do Sul que tinham tantos atrasos. O filme contava a história de um homem que via um século sucumbir em torno dele e compreendia a situação. E era essa compreensão que o salvava. Infelizmente obrigaram-me a colocar flashbacks ao invés de contar a história em continuidade, e as sequências civis perderam muito do seu aspecto corrosivo. De todo modo, adoro esse tipo de tema. Em O escândalo do século é a garota que assiste ao desmoronamento de um mundo, mas essa queda a mata.

CAHIERS: É um pouco como Janet Leigh em Vikings, os conquistadores...

RICHARD FLEISCHER: Esse é um dos meus filmes preferidos. Muitos disseram que era violento de uma maneira atroz. Ora, não se vê sangue, a não ser em um único plano, quando Kirk Douglas tem seu olho perfurado. No resto do filme tive sucesso em sugerir uma violência terrível sem mostrá-la verdadeiramente. Não há um plano sádico sequer, ou gratuito. Tudo é recriado. E, para mim, mostrar a violência assim é capital: é a única maneira honesta. A violência é importante para mim. Se conseguirmos captá-la com o máximo de verdade (mesmo uma verdade recriada) chegamos aos maiores temas, às maiores ideias: a ideia de civilização, por exemplo, sobre a qual se baseia Vikings, os conquistadores. Habitualmente eu detesto a violência no cinema: eu a considero imoral, estúpida e travestida. Foi por isso que trabalhei tanto em Vikings, os conquistadores. Através do homem em combate, podemos encontrar o Homem. Por exemplo, em Barrabás... Aliás, o que você acha de Barrabás? Você não gostou muito? Você está completamente errado. É um filme muito bem-sucedido. Eu estava totalmente livre. Barrabás é um filme totalmente original. Pegue a maioria dos filmes bíblicos: eles vão geralmente de A a Z. São cíclicos e terminam sempre fechando um círculo perfeito. Ora, Barrabás só vai de A a B. Cabe ao espectador fazer o resto do caminho, se ele quiser. E contrariamente aos filmes bíblicos, que são fundados sobre a afirmação, esse é um filme sobre a dúvida. Nenhuma sequência se fecha sobre si mesma, pelo contrário. Todas permanecem abertas. Há uma progressão dramática, mas não intelectual, pois os fatos se contradizem, se neutralizam, são interpretados de dez maneiras diferentes sem que essa liberdade seja vista como um erro. E você não considera isso original no domínio do filme religioso! É quase revolucionário! O filme é muito mais sutil do que aparenta numa rápida visão. Posso dar a impressão de elogiar a mim mesmo, mas sou severo o suficiente sobre o que faço para poder dizer aquilo que penso. Barrabás é muito melhor que O bandido. Mais forte. E gostaria de falar ainda, para terminar, do meu filme favorito, aquele do qual ninguém fala: Estranha compulsão. Para mim, foi a única vez que a pena de morte e a crueldade da justiça foram atacadas honesta e inteligentemente. Habitualmente apresenta-se um inocente e pede-se que se tenha piedade dele. O que é natural, pois ele é inocente. Ou então procuramos justificar a importância de seu crime, a escamoteá-lo, a falar dos problemas de um júri que desfavorece o acusado. Ou seja, escamoteamos o assunto. Como nos filmes antirracistas. Ora, meu filme é verdadeiramente antirracista, se você considerar o acusado como um símbolo, porque não escondemos o horror de seu crime abominável, seu lado gratuito, desagradável. Não dissimulamos as relações homossexuais entre os dois assassinos e, no entanto, sem trapacear, eu peço aos espectadores que tenham piedade deles, que não os executem, e eu mostro o porquê. E isso sem trapaça, sem falso horror. Estranha compulsão é um testemunho de defesa ao homem, uma acusação contra a intolerância. Se, ao fim, vocês estiverem convencidos, é uma grande vitória. Eis por que sou orgulhoso desse filme.


(Cahiers du cinéma n.º 186, janeiro de 1967, p. 16. Traduzido por Sérgio Alpendre)

 

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