O HORROR EM RICHARD FLEISCHER
por Valeska G. Silva



O cinema que audiovisualmente logra e fixa, a partir da vida, o teatro que transforma literatura e pintura em ação, em espetáculo.
— Manoel de Oliveira





Pensemos em uma charge muito simples: o público em uma sala de cinema não com uma, mas com duas projeções distintas em lados opostos. De um lado um filme incomensurável, mas de tema que pode mesmo causar repulsa aos mais sensíveis, e do outro um filme esquecível, mas com um tema popular. As cabeças todas inclinadas para a segunda opção.

As razões para isso podem ser várias. Primeiro, um universo que não é o meu; segundo, um gênero (visão dramatúrgica) que não necessariamente é o meu preferido; terceiro, possibilidades narrativas que jamais teriam me ocorrido. Apresentar algo é sempre mais complicado que, e bastante diferente de, simplesmente representar algo.

Em se tratando de apreciação e experiência estética, o melhor é aceitar o tema proposto sem prevenções, descartando assim qualquer ideia prematura, como, por exemplo, um tema que sempre tenha parecido absolutamente dispensável, ou mesmo completamente incontornável. A segunda recomendação: “Não nos projetarmos na tela”, como disse o poeta. É necessário criar os meios para que o instrumento do cinema – a câmera, que capta a realidade e cria atmosferas e ritmos – tenha a oportunidade de nos apresentar um universo novo. Quando se trata de um filme ruim, este apresentará no máximo o seu tema; mas e quando o tema nos é proposto menos pela realidade captada e impressa, o que chamamos de mise en scène, que pelos delírios que a organização das cenas pode criar?

Um tema de abordagem difícil e delicada teve vários tratamentos no cinema. Quatro nomes centrais: Fritz Lang, Alfred Hitchcock, Joseph Losey e Richard Fleischer. Crianças, mulheres, jovens e idosas. Enganadas, asfixiadas e violentadas. Não é um tema fácil e não é pequena a audácia em enfrentá-lo. Richard Fleischer tratou insistentemente em sua filmografia dos crimes humanos e, mais especialmente, dos crimes do Estado, com o seu sistema pronto, em momentos de crise, a reforçar a desumanização da sociedade, utilizando mecanismos que a enredam em um estado de choque, possibilitando um ambiente para mais barbárie, e mesmo endossando diagnósticos psiquiátricos precoces, prendendo inocentes na ânsia de oferecer uma resposta conclusiva ao invés de fazer aquilo que se promete: proteger e controlar. Inúmeras e rigorosas indagações acerca da conduta do Estado é o que encontramos na filmografia de Richard Fleischer, mais especificamente em O escândalo do século, Estranha compulsão, O homem que odiava as mulheres, O estrangulador de Rillington Place e No mundo de 2020.

Há dois momentos de O homem que odiava as mulheres em que essa injustiça também é gerada por conta do preconceito dos agentes do Estado. No primeiro, um chefe de polícia na busca pelo assassino comanda: “Busquem os que são geralmente ignorados: voyeurs, drag queens, exibicionistas, encoxadores no metrô, os de linguagem suja.” No segundo, um homossexual faz o seguinte comentário durante uma investigação policial em uma boate gay: “Nós somos os primeiros a ser procurados sempre que algo acontece.” Em Escravas do medo (Experiment in Terror, 1962), um filme de gênero atípico na filmografia de Blake Edwards, o Estado, em seu esforço para prender o criminoso, utiliza a vítima como isca, colocando sua integridade física e a de outro membro de sua família em risco.

O cinema que elege como seu tema histórias de assassinos reais e contemporâneos pode desorientar e, talvez, soar sensacionalista; mas por se tratar de uma arte essencialmente moderna, não se pode exigir do cinema que este não seja conectado aos interesses do seu tempo. Eis uma verificação tão sutil quanto complexa: as grandes obras pertencem sempre a um único tempo, o agora, um tempo acrônico, que nasce em seu tempo e abstrai-se dele, e que, portanto, não depende do seu tempo para existir. Partindo dessa complexidade é possível tratar de filmes como O homem que odiava as mulheres.

A tela escura é parcialmente preenchida pela imagem de uma senhora rechonchuda de cabelos brancos e cuidadosamente presos. Ela estica os braços e ajusta uma linha num buraco de agulha. A campainha toca e ela se surpreende. Um segundo quadro irrompe na parte de baixo da tela, mostrando a campainha, um braço coberto por um capote verde, uma mão enluvada de negro. A campainha continua tocando antes que a velhinha consiga tomar uma decisão. Ela coloca a linha e a agulha sobre a mesa à sua frente e se levanta. A cada imagem acrescida a tensão aumenta; a esta altura intuímos muito do que provavelmente acontecerá, e nem por isso a angústia diminui, porque existe um jogo de aproximação dos objetos, do conflito entre eles, de elipses entre os nichos de múltiplos enquadramentos atirados na tela. A rainha é a montagem.

Em entrevista Richard Fleischer contou que se impôs esse desafio das telas múltiplas após uma visita à Exposição Universal de Montreal, em 1967. Entre seus noventa pavilhões uma mostra chamou sua atenção, inspirando a produção que realizaria no próximo ano. Em O homem que odiava as mulheres a tela é dividida em duas, três, quatro ou mais partes que sucedem umas às outras: um quadro pode ser um ponto de vista diferente da mesma cena retratada por outro quadro, ou um detalhe de outra cena que ocorre ao mesmo tempo que a primeira, ou a divisão simples de dois cômodos dentro de um mesmo apartamento, onde vemos o que as personagens ainda não descobriram antes de abrir uma porta, ou ainda a imagem da televisão narrando os acontecimentos enquanto eles ocorrem; e, mais do que isso, assustadoramente o que é transmitido pela televisão determina não apenas o nosso ponto de vista, mas condiciona o ritmo e o rumo da investigação policial, num xadrez que burla a cronologia do movimento das peças. A técnica dos multiquadros é perfeita para o tema do filme.

Antes da senhora abrir a porta do apartamento, acompanhamos a trajetória do assassino. O foco está nos degraus da escada do prédio que leva ao apartamento da vítima. Os passos mantêm um ritmo, o som abafado proporcionado pelas botas pesadas em contato com os degraus de madeira dota o clima de tensão até o átimo da conclusão. Um quadro menor sobrepõe-se ao da escada: vemos a senhora colocando seu xale verde, distintamente, e ainda insegura, antes de abrir a porta. Enquanto ela se aproxima num primeiríssimo plano, a imagem da escada some, restando apenas o som dos passos, o que eleva ainda mais a tensão. A parte da tela que cabe à senhora é agora ainda menor, um pequeno quadrado no canto esquerdo superior sobre um fundo absoluto e negro que toma o restante de toda a tela. Ela já abriu a porta e olha para quem já está muito próximo do topo da escada. Ela sorri simpática e lamenta: “Hoje em dia nunca é demais ter cuidado.” Entra a voz do jornalista anunciando a sua morte enquanto ela sorri para o seu algoz. O quadro vai sendo vagarosamente substituído pela imagem do televisor com o jornalista pesaroso listando nomes e sobrenomes de mulheres.

Fleischer pertence à estirpe dos diretores que não rivalizam concepções distintas da expressão cinematográfica (do que pode ser criado na frente da câmera pelos atores e pelo enquadramento, ou posteriormente pelos artifícios da pós-produção). O tratamento dado por Fleischer é o de uma mescla entre duas concepções, a da mise en scène e a da montagem. E se a arte da mise en scène é antes “uma arte de pôr as coisas no lugar ou no tempo desejados”, em O homem que odiava as mulheres a submissão a essa regra é levada do grau zero ao limite da subversão.

Na segunda parte do filme, quando o rosto do assassino já foi revelado e lidamos com a descrição de sua perturbada memória dos fatos, o jogo anterior entre os multiquadros oferecido pela montagem passa a funcionar no interior das cenas. Se antes dependíamos do arranjo das cenas na criação do sentido, da tensão dramática, um passo largo é dado aqui e é nítida e exata essa impressão de evolução. Se antes tudo estava a cargo da montagem, que projetava um sentido que não era encontrado apenas pelas imagens propriamente, agora esse signo das multi-imagens está no corpo da cena, na mise en scène: enquanto o perturbado assassino é interrogado pelo gélido representante do Estado interpretado por Henry Fonda, este é levado para dentro da ação do crime. O tempo-espaço é burlado mais uma vez, estabelecendo novos parâmetros para a relação entre as personagens, outro patamar de significação. A implicação dada pela representação é a de que enquanto o assassino realiza os passos até suas vítimas um cúmplice é introduzido: o Estado.

Não é um capricho que o interrogatório que ocorre dentro do hospital psiquiátrico salte de forma engenhosa para dentro do carro do assassino, no corredor do prédio das vítimas. Trata-se do Estado onipotente, análogo à interferência midiática na primeira parte da trama, presente no interior dos apartamentos, na delegacia de polícia, na central de investigação do Estado. Fleischer traduz para a linguagem cinematográfica o passé composé, a expressão de uma ação concluída completamente ou incompletamente no momento da fala (e, no caso do cinema, no momento da ação) ou em algum momento no passado. Essa revolução técnica é também uma revolução estética.

O estrangulador de Rillington Place, outro drama psicológico focado na crítica dos diagnósticos psiquiátricos apressados, da pena de morte e sobretudo da condição humana dramática que é a incapacidade intelectual de autodefesa (não conheço outro filme que deixe tão dolorosamente à mostra o homem indefeso), também tematiza as consequências nefastas das ações do Estado sobre o destino individual.

Albert DeSalvo, o estrangulador de Boston, não foi julgado ou acusado formalmente de ser o responsável pelos crimes, mas permaneceu em um hospital psiquiátrico até a morte. Entre suas supostas vítimas havia mulheres de idades e grupos étnicos diferentes, o que levava a crer à época que havia mais de um criminoso envolvido. Em 2001, pouco mais de trinta anos depois, a última vítima dos crimes de Boston foi exumada para uma coleta de amostras do seu DNA, utilizando as técnicas de identificação que estavam surgindo. Nenhuma das amostras então coletadas sob as unhas e roupas íntimas da vítima conferia com as amostras de DeSalvo: elas pertenciam a dois indivíduos diferentes.

No filme de Fleischer, entre os suspeitos investigados resta uma estranheza: todos mantinham consigo algum tipo de indício que os incriminava e os aproximava dos assassinatos, como se qualquer americano pudesse ser absorvido pelos acontecimentos. De certa forma, o futuro comprovou essa intuição do diretor, e não deixa de ser aterrador que Fleischer conclua seu filme com a seguinte nota: “Este filme terminou, mas a responsabilidade da sociedade pelo diagnóstico precoce e o tratamento da violência ainda está por começar”.



 

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