NO MUNDO DE 2020
por João Bénard da Costa





(Soylent Green). 1973. Metro-Goldwyn-Mayer (96 minutos). Produção: Walter Seltzer, Russell Thacher. Roteiro: Stanley R. Greenberg, baseado na novela Make Room! Make Room!, de Harry Harrison. Fotografia: Richard H. Kline (Panavision, Metrocolor). Música: Fred Myrow. Cenografia: Edward C. Carfagno, George W. Davis (não creditado) (p.d.). Montagem: Samuel E. Beetley. Elenco: Charlton Heston (Thorn), Leigh Taylor-Young (Shirl), Chuck Connors (Tab Fielding), Joseph Cotten (William R. Simonson), Brock Peters (Hatcher), Paula Kelly (Martha), Edward G. Robinson (Sol Roth), Stephen Young (Gilbert), Mike Henry (Kulozik), Lincoln Kilpatrick (o padre), Roy Jenson (Donovan), Leonard Stone (Charles), Whit Bissell (Santini), Celia Lovsky (líder da troca de livros), Dick Van Patten (acompanhante), Morgan Farley (livro #1), John Barclay (livro #2), Belle Mitchell (livro #3), Cyril Delevanti (livro #4), Forrest Wood (atendente), Faith Quabius (atendente), Jane Dulo (Sra. Santini), Tim Herbert (Brady), John Dennis (Wagner), Jan Bradley (a mulher de bandana), Carlos Romero (novo inquilino), Pat Houtchens (guarda gordo), Joyce Williams (garota mobília), Erica Hagen (garota mobília), Beverly Gill (garota mobília), Suesie Eejima (garota mobília), Cheri Howell (garota mobília), Kathy Silva (garota mobília), Jennifer King (garota mobília), Marion Charles (garota mobília).


O céu dos gatos sempre foi o inferno dos pardais.
— João Manuel Barreiros


No mundo de 2020 é um dos vários “cavalos de batalhas” entre cinéfilos e literatos amadores ou profissionais de ficção científica.

Estes últimos (apesar do filme ter recebido o Prêmio Nebula do ano, como “SF best film”) acharam sempre que a obra era uma “traição inverossímil” ao livro de Harry Harrison (n. 1925) em que se baseia, intitulado Make Room! Make Room!, publicado em 1966.

A obra de Harrison insere-se no que o calão de ficção científica chama “distopias”, para as distinguir quer dos universos utópicos, quer dos universos arcádicos. Embora a noção de utopia não contenha em si nenhum sentido beatífico (a arquetípica, de Thomas More, do século XVII, está longe de ser tranquilizante), é verdade que o termo ganhou essa conotação. Para a retirar, sem flagrantemente se lhe opor com qualquer anti, se inventou esse termo “distopia”, em que a própria utopia é logo desfigurada. John Brunner, ensinam-me os especialistas, é o nome mais ilustre desse gênero, a que em ficção científica também se chama: “Se isto continua...”.

Acusado de pessimista (e um dos seus livros mais famosos – Stand on Zanzibar, de 1968 – aborda também o problema da superpopulação como Make Room! Make Room!), Brunner respondeu: “Como escritor de ficção científica sinto-me obrigado a apontar exatamente na mesma direção para que a nossa sociedade aponta. Sou um pessimista por inteligência e um otimista por coração. Se não o fosse, não conseguiria continuar a escrever os meus contos imaginários”.

Richard Fleischer podia ter subscrito estas palavras, quando sustentou que No mundo de 2020 (filme distópico) “é um filme realista, pelo menos na primeira parte. É um olhar para um futuro próximo, e a minha ideia foi mostrar personagens tão reconhecíveis quanto possível para o público de hoje, porque não se trata de uma grande extrapolação face ao que atualmente acontece na nossa sociedade. Por isso o filmei num estilo quase documental. Só que a certa altura, quando as personagens passam a outro mundo, tentei conseguir uma qualidade poética”.

Foi esta “segunda parte” ou essa “qualidade poética” que lhe foi mais atacada (o otimismo do coração, se otimismo há). Sobretudo objetou-se muito à ideia (alheia ao livro) do canibalismo, ou seja, de fazer do “soylent green” algo “made out of people” como Charlton Heston descobre, horrorizado, no final. Essa história dos cadáveres de velhos aproveitados para alimento de novos, introduzia, na opinião dos detratores, um fácil “horror” que atenuaria o horror essencial do livro: que o “soylent green” (a palavra “soylent” é uma contração do “soy beans” – “soja” e “Lentils” – “lentilhas”) pudesse ser um processo discreto e eficiente de alimentar 40 milhões de pessoas, em Nova York, no ano 2022. O horror era essa necessidade. Reforçá-la com uma história policial de bons e maus e com a carga metafórica da origem do alimento era “dramatizar” tudo e escamotear o principal.

Não julgo que os crentes de estrita observância tenham razão. E não o julgo, porque no imaginário do filme, desde a montagem fotográfica inicial, à utilização do verde e aos planos de massas (os corpos amontoados à porta da casa de Charlton Heston, a sequência da amotinação) não é incoerente que a obra se inscreva sob a sombra de Kafka, e se vá adensando numa dimensão tanto mais alucinatória quanto Charlton Heston no final (depois da morte de Robinson) não tem interlocutor. A sua descoberta de nada lhe serve, nem ajuda o policial que é. É para nós (espectadores) que o horror é invocado, naquele plano final da sua morte, em que a mão ferida aponta para um espaço inexistente, e para uma visão impossível.

Perpassam, é certo, neste filme várias narrações, além da “distopia”. A narração a que Fleischer chama realista (inserção da ficção num documental, expressa desde os créditos); a narração policial (quem matou Joseph Cotten e para quê); a narração cultural (a relação de Robinson com o mundo dos livros e com a cultura não deixa de evocar Fahrenheit 451 [François Truffaut, 1966], filme sete anos anterior); a narração absurda (as referências ao universo kafkaniano e, notoriamente, ao Processo, quer ao livro, quer ao filme de Welles, também muito mais antigo); e a narração simbólica, com o apogeu da morte de Robinson, em imagens cotidianas tornadas paradisíacas por contraste ao som da Pastoral (de novo o “efeito Kubrick” que antes pressentíamos ao ouvir o Trio de Mozart).

Só que esses vários níveis (díspares) se acham extremamente bem conjugados pela progressiva oposição de décors e personagens, marcada desde o início.

Com efeito, passados os créditos já aludidos, somos introduzidos na casa em que Heston e Robinson vivem, tugúrio sinistro, mas onde as personagens (policial ou “police book”) afirmam a sua independência face ao mundo que as rodeia (e que logo vemos quando Heston abre a porta). Quando o locutor fala do “soylent green day”, Robinson desliga a televisão e diz “bullshit”, enquanto a luz se apaga e acende sublinhando a zona intermediária em que o discurso de Robinson logo mergulha Heston. Harry Harrison conta que explicou a Robinson (que se queixava de não perceber a personagem) que “você é a única personagem de todo o livro/filme que viveu num mundo em que era bom viver, onde se via o sol nascer, onde havia pássaros, felicidade, calor. Todos os outros acham que este mundo ‘lixado’, cinzento, baço, é ‘the only game in town’. Você liga esses dois mundos”.

Logicamente, e pois que a personagem é essa, Fleischer opõe-lhe imediatamente (sequência seguinte) Joseph Cotten, que também viveu num mundo assim, mas soube guardar os seus privilégios (oposição décor Cotten e décor Robinson). Mas Cotten desiste, é “unreliable” e por isso é abatido. A investigação policial de Heston só tem por função dramática descobrir a oposição dos dois décors (os livros, as bebidas, a carne) e assegurar uma continuidade (que o final revela impossível) aos valores de Robinson. Daí que ele lute no interior da própria organização contra a organização a cujos ditames obedece aquela “lógica absurda”. A progressão (através do corpo feminino e da erotização) só divide Heston, à medida que a “intriga” se avoluma, a fim de que a transmissão dos valores de Robinson ao seu amigo se possa fazer naquela belíssima sequência do jantar, com talheres, Mozart e um grande silêncio.

O policial volve-se então no acossado (com as imagens da igreja a reenviarem, de novo, a Kafka) e a partir do momento em que a encenação se lhe revela (a carga policial, a reeleição de Santini, o mundo que subjaz ao “soylent green”) Heston é o único que não desiste e leva a sua luta até o final, mesmo quando o “mestre” abdica, após a sua descida por escadas kafkanianas ao mundo clandestino da cultura.

E surge o grande mistério deste filme que é a sequência da morte de Robinson. Chamo-lhe mistério, porque o arsenal de efeitos (as paisagens, a Pastoral, a poesia explícita) contados davam para acabar com qualquer um. Visualmente (segredo de uma montagem habilíssima e do gênio de Robinson) tudo funciona para tornar essa sequência num momento antológico do cinema, a que não se pode deixar de aderir emocionalmente. Cinefilamente, intervirá o sabermos que este foi o último papel do grande ator e que, quando ele desapareceu, levado na maca, com os olhos abertos, desaparecia também para sempre do mundo de que durante quatro décadas, desde Alma no lodo (Little Caesar, Mervyn LeRoy, 1931) até A cidade dos desiludidos (Two Weeks in Another Town, Vincente Minnelli, 1962), passando por Hawks, Ford, Walsh, Welles, Wilder, Lang etc., fora uma das mais portentosas imagens? É bem possível. Porque cinefilamente é como se Robinson estivesse a ecoar a mais célebre das suas réplicas no filme que o lançou, ou seja a perguntar-nos e a perguntar-se de tudo isso e para quem não o saiba há uma carga emocional única nessa passagem, que transfigura o próprio Charlton Heston (que nunca foi tão bom) quando se despede dele, dizendo-lhe “I love you”.

Harry Harrison que não é suspeito descreve nestes termos a filmagem dessa sequência: “Fabuloso homem. Tinha-se enganado no diálogo duas vezes. Era uma cena-chave, mas aos 79 anos, já é permitido enganarmo-nos duas vezes nos diálogos. A cena-chave era também muito longa. Robinson exigiu que tudo fosse filmado à porta fechada, o que quer dizer que as únicas pessoas que ali estavam eram técnicos e eletricistas que já tinham feito um milhão de fitas e estavam chateados de morte. Haviam de ter visto esses tipos. Quando o plano acabou (...) e Dick Fleischer disse ‘Corta’ todos esses horrorosos eletricistas velhos, todos aqueles carpinteiros ordinários, desataram às palmas. Algo tinha sido criado. Tinham visto uma cena estúpida, mas um grande artista a transformar tudo (‘and what a real artist created out of it’)”.

A partir daí (fosse a cena filmada antes ou depois – mistérios do cinema) tudo está contagiado. É belíssimo o plano da saída da roupa, é belíssimo o da descoberta dos corpos e o plongée sobre a piscina.

No mundo de 2020 atinge a sua dimensão mais delirante com Heston a procurar no “dormitório-asilo” o auxílio que ninguém lhe dá e a gritar, entre tosses e ressonos, “Soylent Green is made out of people.” O dedo final é a sua última homenagem ao “police book” que amara, num mundo em que esse amor é o último absurdo. Mas o último e único sinal.

What a damn good work created out of it! Tão damn good work que Richard Fleischer não hesitou em o escolher como a sua obra favorita e o seu filme favorito de todos os tempos e de todos os autores.

 

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