ENTREVISTA COM RICHARD FLEISCHER
por Michel Ciment e Lorenzo Codelli



Sempre fui atraído pelo que é novo e incomum”[1]


POSITIF: Você veio ao Festival do Filme Mudo de Pordenone para a homenagem concedida ao trabalho de Max Fleischer, um dos grandes nomes da animação, o criador de Popeye e Betty Boop. Qual foi, na sua infância, a sua relação com a atividade de seu pai?

RICHARD FLEISCHER: Eu tive uma infância verdadeiramente maravilhosa, e eu a devo sobretudo a meu pai, que não era somente um grande artista, mas também um ótimo pai. Por causa de sua atividade, meu ambiente era como um país das maravilhas, e suas criaturas animadas eram como amigos ou membros da minha família. Os animadores que trabalhavam com meu pai formavam um grupo bastante excêntrico. Eles vinham à nossa casa aos finais de semana, jogavam cartas e me levavam para passear. Desse ponto de vista minha infância foi bem estranha. Eu não sei até que ponto minha carreira foi influenciada por ela, mas suponho que tenha sido afetada, pois esses excêntricos estavam ao meu redor.

POSITIF: Quais eram as origens de seu pai?

RICHARD FLEISCHER: Ele veio de uma parte da Áustria que mudou muito de proprietário! A qual país ela pertencia quando ele nasceu eu não sei, mas ele chegou aos Estados Unidos quando tinha cinco anos. Ele não tinha nenhuma lembrança da Europa. Minha mãe veio da Inglaterra e desembarcou na América ainda mais jovem do que o meu pai, quando tinha três anos. Eles se conheceram quando eram adolescentes, no Brooklyn. Minha mãe foi ao Bar Mitzvá de meu pai quando ele tinha 14 anos. Os dois eram culturalmente americanos e não creio que a Europa tenha tido uma influência particular sobre o trabalho do meu pai.

POSITIF: Seus primeiros anos de estudos foram consagrados à medicina psiquiátrica e encontramos em seus filmes um interesse evidente pela análise do comportamento criminal.

RICHARD FLEISCHER: Assim que entrei na universidade, quis me tornar psiquiatra e cursei medicina durante quatro anos. Mas paralelamente a isso, dediquei-me enormemente à psicologia e fiz todos os cursos possíveis e impossíveis. Eu era um ótimo estudante nessa área. Sempre foi assim e, ao fim de um certo tempo, foi preciso que eu escolhesse entre continuar meus estudos de medicina, em uma faculdade, ou seguir em direção ao teatro. Apresentei minhas duas opções ao meu pai e seu conselho decidiu minha carreira. Ele me disse que eu deveria escolher a melhor escola de arte dramática (não havia, na época, escola de cinema) e passar um ano lá. Ao final daquele ano, ou eu amaria o teatro ou o detestaria, e se então eu desejasse me matricular em uma faculdade de medicina, ainda seria possível, pois eu tinha as qualificações para tal; eu teria perdido um ano, o que não é muito em uma vida. Se, pelo contrário, eu escolhesse a medicina, não seria feliz pelo resto da minha vida, porque não saberia se teria preferido o teatro. Era um raciocínio muito sábio, que visava me afastar de qualquer arrependimento. Dito isto, meus anos de medicina foram uma contribuição inestimável para meu trabalho posterior no cinema.

POSITIF: Onde você finalmente estudou teatro?

RICHARD FLEISCHER: Após meus anos de medicina e psicologia na Universidade Brown, entrei na Yale. Cada um de nós deveria fazer de tudo, fossem nossos estudos em cenografia, fossem em iluminação. Deveríamos também participar de várias peças a cada ano, o que foi para todos uma formação preciosa. Para cada encenação de uma peça, nós tínhamos que ficar encarregados alternadamente de um setor: figurinos, cenografia, maquiagem. Isso nos permitia adquirir um conhecimento amplo de todos os domínios da produção. Uma educação útil para um futuro diretor! Mas o mais enriquecedor foi a formação de ator. A meu ver, é importante para um diretor ter atuado durante um tempo em sua vida, tenha ele sido um ator bom ou ruim. Você toma consciência da insegurança na qual se encontram muitas vezes os atores. Você sabe, ao estudar o seu olhar, o que ele é capaz de interpretar. Você tem os meios de avaliar os problemas que ele encontra quando interpreta uma personagem. Se você próprio passou por essas dificuldades, você estará pronto para ajudar os outros.

POSITIF: Nessa época você se interessava pelo cinema?

RICHARD FLEISCHER: Durante meu período em Yale, de 1939 a 1942, nós certamente íamos assistir filmes, mas não tínhamos muito tempo livre. Trabalhávamos toda noite até meia-noite e levantávamos muito cedo. Além do mais, o meu objetivo não era me tornar um realizador, mas um diretor de teatro, como, antes de mim, Kazan, Losey ou Welles.

POSITIF: Que gênero de peça você gostava de montar?

RICHARD FLEISCHER: As comédias eram minha preferência, e eu as montei em Brown e em Yale. Foi isso que formou o meu gosto. No cinema também, os meus primeiros roteiros foram de comédias. Quando cheguei em Hollywood, os estúdios me propuseram outros materiais, mesmo eu tendo filmado pouco após o início de minha carreira uma comédia, O amor, sempre o amor. Sempre me arrependi de não ter seguido nessa via.

POSITIF: Você foi parar em Hollywood por acidente?

RICHARD FLEISCHER: Eis como tudo se passou: enquanto eu estudava em Yale e comecei a fazer teatro experimental (sempre fui atraído pelo que é novo e incomum), ouvi falar de uma companhia em Seattle, na costa oeste do estado de Washington, que havia criado um “teatro em roda” no qual o público sentava-se em círculo ao redor dos atores. Isso me intrigou; tive a impressão de que aquilo se aproximava do cinema, pois não havia ali o proscênio, e eu queria fazer o mesmo em Yale. Eu criei um grupo para a temporada de verão, o “Arena Players”, que teve muito sucesso. Com os meus atores que vieram de Yale consegui acordo com cinco hotéis de férias, e nós apresentávamos cada semana uma peça diferente, na sala de jantar ou no salão de baile, e os clientes se agrupavam em torno de nós. Em uma dessas apresentações veio um caça-talentos da R.K.O., Arthur Willy, que me perguntou se eu me interessaria em fazer filmes em Hollywood. Simples assim. Na verdade, eu nunca imaginei que iria fazer filmes na Califórnia. Sua oferta foi ainda mais surpreendente porque ele estava à procura de novos atores e eu fui a primeira pessoa a quem ele propôs esse tipo de trabalho. Antes de partir para Hollywood, passei por uma formação na Pathé News em Nova York. Foi a melhor coisa que podia me acontecer. Se antes eu tive uma boa experiência com o teatro e os atores, agora eu teria a oportunidade de aprender sobre o cinema sendo pago para tal. Foi Arthur Willy que teve essa ideia. Ele me disse que a R.K.O. passava por grandes transformações naquele momento e que se eu fosse para lá, correria o risco de me perder e dali a seis meses voltar para a costa leste. Ele encontrou emprego para mim na Pathé News, onde trabalhei por três anos, e foi uma experiência maravilhosa. Cheguei então em Hollywood bem equipado com minha formação teatral e cinematográfica para trabalhar na R.K.O. Uma coisa interessante na minha carreira merece ser ressaltada aqui: a maior parte dos estudantes que saíam de Yale se dirigia à televisão ou virava produtores e diretores importantes. Da minha parte, nunca trabalhei para a televisão simplesmente porque eu havia pulado essa etapa intermediária. Meus camaradas, uma vez consagrados na televisão, entravam então para o cinema. Já eu nunca o deixei.

POSITIF: Talvez porque a atmosfera estivesse caótica, parece que nessa época a R.K.O. deu a primeira chance a muitos cineastas talentosos.

RICHARD FLEISCHER: Primeiramente, a R.K.O. era a menor dentre os grandes estúdios. A situação era curiosa. Havia lá um grupo de jovens realizadores muito talentosos aos quais foram confiados importantes filmes. Digam o que quiserem de Hollywood, a R.K.O. tinha um programa de formação de atores e diretores e fazia-os assinar contratos de sete anos de duração. Se alguns deles virassem estrelas, beneficiariam o estúdio, pois estavam ligados por contrato e por pouco dinheiro. Era assim que o sistema funcionava na época. Os produtores que controlavam nossa vida estavam conscientes das capacidades de cada um. Se nós não gostássemos nem um pouco de faroestes, eles não nos forçavam, escolhiam um tipo de filme que convinha às nossas aptidões e inclinações. Em suma, eles nos atribuíam um filme como atribuíam um papel a um ator. Os diretores de fotografia, os cenógrafos, os músicos eram designados unilateralmente. Ocorria de nós conseguirmos compromissos com a diretoria, mas precisávamos às vezes nos cercar de colaboradores que não desejávamos. Com os atores, isso também trazia problemas. A diretoria nos indicava suas escolhas: tal ou tal ator sob contrato devia trabalhar, e era preciso que encontrássemos um papel para ele. Em resumo, ser um cineasta em um estúdio era fácil e não era.

POSITIF: Você teve alguma relação com Dore Schary quando esteve na R.K.O.?

RICHARD FLEISCHER: Ele foi por um tempo chefe de produção, mas durante os sete anos que passei no estúdio, 14 pessoas passaram à chefia. De brincadeira, nós os chamávamos de “oficiais do dia”, pois, no exército, o responsável por uma companhia mudava todos os dias. Eu não tive a chance de trabalhar com Dore Schary que partiu muito rápido, mas eu conheci bem o responsável pela série B, Sid Rogell, uma pessoa um pouco rude, mas que gostava de mim e que acreditava em mim. Ele me protegeu, mas ainda assim não era menos rígido no trabalho. Nós nos tornamos amigos e eu lhe devo muito. Ele me ensinou a produção: como trabalhar rápido sem perder a qualidade. Nós tivemos algumas discussões, ficamos seis meses sem nos falar, mas foi uma relação estimulante.

POSITIF: Você praticou muito nos seus primórdios o gênero policial. Essa foi uma escolha sua ou uma decisão do estúdio?

RICHARD FLEISCHER: A maior parte dos filmes da série B da R.K.O. pertenciam ao gênero policial. Nós pertencíamos ao gênero criminal. Confiaram-me um certo número de filmes e fico feliz por ter podido realizá-los. De tempos em tempos eles produziam um filme diferente, alguma coisa especial. E foi assim que me confiaram para a minha estreia, em 1946, um filme familiar, uma história maravilhosa e à frente do seu tempo, Filhos do divórcio. Não tinha nada de hollywoodiano e, a partir do roteiro que tínhamos, chegamos ao primeiro filme verdadeiramente honesto sobre o divórcio. A pequena Sharyn Moffett, que interpretava o papel principal, estava excelente e o estúdio esperava que ela se tornasse uma estrela infantil como Margaret O’Brien ou Shirley Temple. Penso que fiz um bom trabalho de mise en scène nesse filme, ainda que, hoje, eu o fizesse melhor.

POSITIF: O gênero policial te permitiu mostrar o inverso do sonho americano e as disfunções da sociedade.

RICHARD FLEISCHER: Sim, de um certo modo, mas os malvados acabavam sempre presos ou mortos. Foi um bom treinamento, pois aprendi a filmar a ação e o suspense. E eu adorava filmar em cenários reais. Esse apreço veio dos meus anos de aprendizagem na Pathé News, onde rodei documentários. Eu evitava rodar em estúdio, mas às vezes o roteiro exigia.

POSITIF: Quando filmou Crime da estrada, em 1948, você chegou a conhecer Robert Altman, que havia escrito o roteiro?

RICHARD FLEISCHER: Não que eu me lembre. Por outro lado, na R.K.O. eu trabalhei em cada roteiro dos filmes que eu dirigi, o que é incomum. Eu devia esse tratamento privilegiado ao fato de ter saído de uma escola de arte dramática. Assim, a companhia me deixava intervir na escrita do filme desde o início. Provavelmente Altman teve que propor um tratamento que foi desenvolvido em seguida por outros, antes de ser confiado a mim.

POSITIF: Você dirigiu nessa época Alma em sombras, a partir de um roteiro de Carl Foreman.

RICHARD FLEISCHER: Eu conheci um ano antes, em 1948, Carl Foreman que havia escrito Era uma vez uma herança, uma comédia que dirigi e que foi a primeira produção solo de Stanley Kramer. Enquanto trabalhávamos nesse projeto, Carl e eu íamos e voltávamos do estúdio às nossas casas (éramos vizinhos), e ele me contou uma história que ele tinha vontade de escrever e que poderíamos vender à R.K.O. Foi assim que aconteceu, e filmei Alma em sombras.

POSITIF: Quais eram os diretores de que você era mais próximo na R.K.O.?

RICHARD FLEISCHER: Eu dividia meu escritório com Robert Wise e Mark Robson. Nós passamos muito tempo juntos e nos tornamos amigos. Desde então, não deixamos de nos ver até a morte de Robson.

POSITIF: Seus filmes na R.K.O. eram curtos e compactos. Hoje em dia, as mesmas histórias exigiriam duas horas ou duas horas e quinze, enquanto você as tratava em uma hora. Como você explica isso?

RICHARD FLEISCHER: Não tenho resposta. Recentemente fui a um jantar feito em homenagem a Orson Welles pelo American Film Institute. Em seu discurso, ele deu um conselho aos diretores que fez o público cair em aplausos: “contem suas histórias mais rápido!”. A maior parte dos jovens diretores não se formou no teatro, mas nas escolas de cinema. Eles nunca escreveram roteiros, algo que nós fazíamos. Eles também não tiveram o treinamento que nós tivemos ao realizarmos filmes relativamente curtos e muitas vezes com pouco dinheiro. Eu terminava meus filmes gastando menos do que o orçamento que me fora dado, e não fazia quarenta tomadas, mas duas ou três. Na R.K.O. não eram autorizadas mais de duas. Era preciso fazer ensaios intensos antes de começar a filmar a cena. Rumo ao Inferno, por exemplo custou US$ 188.000,00 e foi um sucesso gradual e inesperado. Rodado em estúdio em 13 dias, rendeu muito dinheiro.

POSITIF: Você estaria de acordo em dizer que há um Richard Fleischer antes de 20.000 léguas submarinas (1954) e outro depois?

RICHARD FLEISCHER: É certo que pela amplitude de sua produção, 20.000 léguas submarinas me elevou a uma outra categoria. Até ali, eu havia realizado filmes com orçamentos muito baixos, dos quais alguns obtiveram algum destaque, em particular Rumo ao Inferno, o último que realizei na R.K.O. O seguinte, O amor, sempre o amor, produzido por Stanley Kramer, já havia elevado meu status. Foi pouco depois que Walt Disney me contatou para realizar esse filme, 20.000 léguas submarinas, o mais importante filme que eles jamais haviam feito. Acredito mesmo que esse foi o maior orçamento do ano em Hollywood. Isso contribuiu muito para um jovem realizador que tinha poucas referências por trás dele. Depois desse sucesso, eu assinei um contrato com a Fox que produzia filmes de qualidade e de categoria A.

POSITIF: O que levou Walt Disney escolher logo você, o filho de Max Fleischer, grande rival de Disney no cinema de animação?

RICHARD FLEISCHER: Ele contatou meu agente e perguntou se eu poderia me encontrar com ele. Eu estava intrigado por essa proposta e fui a seu encontro, mas muito desconfortável. Ele me propôs o filme e isso me chocou. Eu falei para ele: “Walt, você sabe quem eu sou, não sabe?” Ele riu e disse: “Claro!” Ele me conhecia. Perguntei-lhe por que havia me escolhido, e ele me respondeu que tinha visto o meu filme, O amor, sempre o amor, com Bobby Driscoll, um ator infantil que apareceu em diversos filmes produzidos por Disney com sequências em tomadas reais misturadas a cenas de animação; e acrescentou: “Aquele que pode fazer de Bobby Driscoll um bom ator só pode ser um bom diretor”.

POSITIF: Você acredita que, inconscientemente, ele tivesse vontade de ter um Fleischer sob seu comando?

RICHARD FLEISCHER: Não acredito nisso. Pelo contrário. As pessoas que trabalhavam no estúdio me deram uma versão diferente da minha contratação: a produtora abriu um concurso entre cinco realizadores, dentre eles, eu. Walt pediu para ver alguns filmes que havíamos dirigido, e então ocorreu uma votação. Quando foi conhecido o resultado a meu favor, Walt buscou no fundo do bolso um pedaço de papel em que figurava meu nome. Adoro acreditar que essa história é verdadeira. É realmente lisonjeiro para mim.

POSITIF: O amor, sempre o amor, do qual você nos falava e que atraiu a atenção de Disney, tem numerosos atores franceses nos seus créditos: Louis Jourdan, Charles Boyer, Marcel Dalio. É porque se passa no Canadá?

RICHARD FLEISCHER: Ele é falado em inglês, mas a ação se passava no Quebec, nos anos 1920. O roteiro foi adaptado de um romance e de uma peça, e o herói era uma criança de quem o filme narrava o despertar sexual numa família franco-canadense. É um filme charmoso e engraçado.

POSITIF: 20.000 léguas submarinas é um dos primeiros filmes em tela larga, senão o primeiro, que foi realizado em Hollywood. É um formato que você utilizou muito e que parece apreciar.

RICHARD FLEISCHER: Eu amava a relação largura/altura que ela instaurava. Eu logo a compreendi e a adotei naturalmente, como um pato n’água. Para um diretor, um dos maiores desafios é a composição, e com a tela larga temos grandes possibilidades de composição. Isso me deu uma nova liberdade: eu não tinha que fazer planos por cima dos ombros nem que multiplicar planos fechados. Muitos diretores nos anos 1950 se opunham à tela larga pois não sabiam o que fazer. Eles queriam rodar seus filmes como se tivessem à sua disposição o formato convencional. Eles não sabiam agarrar as possibilidades que o formato horizontal lhes oferecia. Creio que minha formação teatral me ajudou a adotá-lo, pois a tela se tornava como uma cena. Eu conhecia a composição no teatro: como agrupar os atores, como equilibrar os volumes. Estudei tudo isso durante anos.

POSITIF: Qual era a participação dos efeitos especiais em 20.000 léguas submarinas?

RICHARD FLEISCHER: Era mínima. A maioria das cenas foi filmada sem trucagens. Esse foi um dos primeiros grandes orçamentos dedicados a um filme de ficção científica. Quando criança, eu adorava ficção científica (não tanto Jules Verne, cujos livros eu achava enfadonhos, embora tenha tido que ler aquele para adaptá-lo!), em particular uma revista, Fantastic Stories, pela qual esperava com impaciência cada número. Eu adorei trabalhar com os atores do filme: assim que Disney pronunciou seu nome, pensei que James Mason seria ideal para interpretar o capitão Nemo. Kirk Douglas e Peter Lorre eram perfeitos também para suas personagens.

POSITIF: Com qual tipo de ator você se dá melhor?

RICHARD FLEISCHER: Sinto-me confortável com todo tipo de ator. Eu os amo e eles sabem disso. Nunca tive nenhuma dificuldade específica, mesmo com aqueles que têm a reputação de serem monstros, como George C. Scott ou Rex Harrison. Eles eram como irmãos. O único que me deu problemas foi Kirk Douglas, com quem fiz dois filmes. Ele foi tolerável em 20.000 léguas submarinas, embora muitas vezes difícil. Em Vikings, os conquistadores foi outra coisa: ele era o produtor e havia investido seu próprio dinheiro ali. Isso o tornou nervoso e irritado. Eu quase larguei o set, mas cerrei os dentes e continuei, pois estava certo de que seria um bom filme. Isso não impediu que por um tempo Kirk e eu tenhamos deixado de nos falar. Na estreia de Estranha compulsão, um ano mais tarde, ele pôs seu braço em volta dos meus ombros e me confessou que eu era o único diretor que havia sobrevivido após ter rodado dois filmes com ele!

POSITIF: Como você passou em seguida para a Fox assinando um contrato de sete anos?

RICHARD FLEISCHER: Havia lá um produtor que queria que eu dirigisse um de seus projetos, Sábado violento, mas queria primeiro ver meu trabalho em 20.000 léguas submarinas. Nós organizamos para ele uma projeção antes da estreia do filme e foi após vê-lo que ele convenceu a Fox a me contratar. Sábado violento foi o primeiro filme em cor e em CinemaScope que custou menos de um milhão de dólares. Buddy Adler, o produtor, e eu, por causa disso e do bom acolhimento do filme, nos tornamos heróis para Darryl F. Zanuck, e isso impulsionou nossa carreira na Fox. Foi minha experiência na R.K.O. que me permitiu rodar um filme de qualidade como Sábado violento por um preço tão baixo. Eu amava a história, que era muito original, com personagens vindas de horizontes diferentes que se encontravam num sábado de manhã para cometerem um assalto. Era necessário que o público visse claramente a linha narrativa. Lee Marvin estava maravilhoso no filme, mas era um grande bebedor, difícil de controlar quando estava bêbado no set. Foi a primeira e única vez que isso me aconteceu com um ator.

Também era original, na época, fazer um filme criminal em cores.

Como essa escolha foi feita, já não me lembro mais. Lembro-me de que o CinemaScope era na época obrigatório na Fox, o que me convinha perfeitamente, como lhe disse. Mas mais tarde, para Estranha compulsão, nós conversamos sobre isso de antemão, e eu não poderia imaginar o filme de outra forma que não fosse em preto e branco.

POSITIF: Estranha compulsão foi adaptado de uma história real.

RICHARD FLEISCHER: Muitas vezes notei que nenhum roteirista poderia imaginar certos fatos não categorizáveis. A realidade é muitas vezes mais estranha que a ficção, e não o inverso, como cremos habitualmente. Já me ocorreu de não integrar elementos da vida real em um filme quando eu sabia que não se acreditaria que aquilo realmente aconteceu. De todo modo, para preparar filmes policiais, faço pesquisas consideráveis e muito precisas. Converso com as testemunhas do assassinato, visito os locais do crime, leio o máximo de livros ou artigos sobre o assunto. Isso me dá uma grande satisfação e esse período em que acumulo documentação é talvez o que me entretém mais no processo de fabricação de um filme. Mesmo aí, esse gosto vem dos meus anos na Pathé News.

POSITIF: O escândalo do século, cujo tema (o assassinato do arquiteto Stanford White por um milionário ciumento) inspirou mais tarde Na época do ragtime (Ragtime, Miloš Forman, 1980-1981), se situa na Nova York do início do século, que é quase aquela da sua infância.

RICHARD FLEISCHER: Para isso também fiz pesquisas com meus roteiristas, Walter Reisch e Charles Brackett, pois esse assassinato, que filmei com grande fidelidade factual, teve perto de 400 testemunhas oculares. Li todos os relatórios e mantive a veracidade nos mínimos detalhes, até mesmo o trecho da música tocada pela orquestra quando o tiro se deu. É um dos meus filmes de que mais gosto. Não rendeu muito dinheiro nos Estados Unidos, mas foi melhor na Europa. Eu adorei a fotografia e os figurinos, e eu sabia que Joan Collins, que era muito jovem (tinha 17 anos) e fazia seu primeiro filme americano, tinha algo de especial.

POSITIF: Você trabalhou nesse filme com Milton Krasner, um grande diretor de fotografia. Você vem de um meio de artistas visuais e designers gráficos e estudou arte. Qual é a natureza da sua colaboração com os diretores de fotografia?

RICHARD FLEISCHER: Durante a filmagem, o diretor de fotografia se torna meu amigo mais próximo. Quando filmo exteriores, quero que ele esteja no mesmo carro que eu do momento em que eu chego no set até o final. E janto com ele cada noite para estabelecer uma relação de proximidade e discutir cada aspecto do filme. Eu quero que estejamos absolutamente sincronizados sobre nossa abordagem do material, sobre a maneira de conseguir o que queremos. Eu lhe digo quais lentes desejo usar e, se ele utiliza filtros, eu quero que ele me informe quais os tipos. Evito ditar qualquer coisa, dou sugestões e ele me explica o porquê, e quando é apropriado, ele as recusa. É preciso não se esquecer nunca que os bons diretores de fotografia são verdadeiros artistas. Para a questão da cor, temos uma discussão triangular com o cenógrafo.

POSITIF: Vikings, os conquistadores continham cenas dentre as mais violentas já vistas até ali nas telas.

RICHARD FLEISCHER: O filme cria em você uma sensação de violência, sobretudo porque ele não é verdadeiramente violento. Se você reparar bem, não há sangue na tela, exceto quando Kirk Douglas leva sua mão ao seu olho e o sangue escorre entre seus dedos. Quando Tony Curtis tem sua mão cortada nós não vemos a amputação, mas todos gritam na plateia. Isso se passa fora de campo e, portanto, sentimos a amputação. Hoje tudo é mostrado, não se deixa nada para a imaginação do espectador. Nós filmamos na Noruega e na Bretanha, onde encontrei um castelo com ponte levadiça, o Fort la Latte, que me convinha e que eu havia procurado em vão na Irlanda e na Inglaterra. Eu queria paisagens que correspondessem à história e tive a sorte de ter um grande diretor de fotografia, Jack Cardiff.

Orson Welles foi o narrador. Acredito que tenha sido uma ideia de Kirk Douglas, parecia-me que ele tinha perdido a cabeça... Orson ainda era um diretor importante e ele estava filmando A marca da maldade (Touch of Evil, 1957-1958). Tive que ir às filmagens e lá, para minha grande surpresa, ele aceitou minha proposta. Foi a primeira vez que o encontrei. Mais tarde, Zanuck naturalmente o contratou para Estranha compulsão. Foi uma das razões pelas quais aceitei fazer esse filme. Tudo se passou bem entre nós. Eu era o diretor e ele era um ator que fazia o que lhe era pedido, mas eu sabia que ele era um grande técnico. Era preciso estar atento e não cometer um erro pois se ele perdesse o respeito que tinha por você, ele tomava o comando do filme. Ele trabalhou durante 10 dias, o tempo de filmar a cena do processo. Ele não conhecia seu texto e utilizava um teleprompter, mas era um mestre em seu domínio. Eu sentia, contudo, que ele tinha ciúmes e que ele teria amado dirigir o filme no meu lugar. Nós tivemos uma única disputa: eu havia ensaiado uma cena com ele, e havia lhe dito que ao final ele devia ir por um corredor e sair pela porta à esquerda. Eu só tinha uma parede (que veio de um outro filme, mas me servia). Orson me disse então que preferia sair pela direita, sem ver que não havia uma segunda parede. Isso não fazia nenhuma diferença, ele não tinha nenhuma razão para preferir sua solução. “Orson, não há porta, não há cenografia à direita.” “Você sabe o que eu faria se dirigisse esse filme? Eu esperaria que me construíssem essa parede.” “Orson, é precisamente por isso que quem dirige este filme sou eu, e não você.” Ele recuou e fez um tipo de reverência dizendo: “Sairei pela esquerda.” Estranha compulsão também era adaptado de uma manchete que já havia inspirado Festim diabólico (Rope, 1948), de Hitchcock. Nós partimos de um ótimo livro, o que nos ajudou. Para a Fox era um orçamento pequeno. Nós filmamos em preto e branco, com quatro ou cinco meses de preparação (e não oito, como me era de costume), o que não me permitiu fazer todas as pesquisas que eu queria, e utilizamos cenários que vinham de outros filmes. Foram-me concedidos 32 dias de filmagem. Eu estava tão apaixonado pelo assunto que terminei o filme em 28 dias, sem esforço especial, e todos os dias nós parávamos por volta das duas ou três horas da tarde. Em seguida, fazíamos três horas de ensaio com os atores, o que explica a rapidez da filmagem.

POSITIF: Fora Fama a qualquer preço, você não filmou outro faroeste.

RICHARD FLEISCHER: Não sou louco pelo gênero. Mas eu adorava a história de Fama a qualquer preço, que achei incomum. Ela não tem nada de típica e isso faz do filme um antifaroeste. O protagonista é uma personagem horrível que comete os piores delitos para alcançar seu objetivo. Tem cavalos em O bandido, mas não é um faroeste. Da mesma forma, Os três discípulos da morte se situa no Oeste, mas não pertence ao gênero.

POSITIF: Para O homem que odiava as mulheres você experimentou o split screen.

RICHARD FLEISCHER: Eu tinha visto uma demonstração na Exposição Universal de Montreal, em 1967. Eu não me interessei pelo dispositivo, mas ele me pareceu apropriado para fazer avançar a história e contá-la de uma maneira diferente. Isso levou meses de preparação e custou muito caro. A tela múltipla estimulou minha imaginação, e quando me propuseram o roteiro de O homem que odiava as mulheres, pensei que seria um bom meio para representar a duplicidade da personalidade da personagem central. Eu queria mostrar o terror que havia se apoderado da cidade e de todas as mulheres que tinham medo do assassino. A ideia de apresentar essas personagens pela montagem me cansava. Então decidi por justapor-lhes ao mesmo tempo, o que criava uma confusão no espectador que não sabia para onde olhar. E essa confusão remetia à situação na história. Mas havia uma terceira razão, que era a de ilustrar a perseguição da polícia por diferentes suspeitos e, também, a confusão que ela ocasionava.

POSITIF: Acusaram-no, tanto nesse filme como em Estranha compulsão, de estar muito do lado do assassino.

RICHARD FLEISCHER: É uma repreensão que não me parece justificada. Tento compreendê-lo e mostrar que ele não é somente mau, que ele tem problemas psicológicos. Se reconhecemos isso, podemos, sem dúvida, visar curá-lo. Devemos tratá-lo como um doente.

POSITIF: Para O estrangulador de Rillington Place você não apenas fez pesquisas como também reconstituiu o apartamento do assassino.

RICHARD FLEISCHER: Eu fiquei impressionado com a sensação de claustrofobia que sentíamos no local onde ele morava. Isso fazia parte da atmosfera da história. Minha visita às locações foi um choque. A estreiteza da habitação dava arrepios e exprimia muito bem a psicologia do assassino. Como eu não podia filmar nos próprios locais, transportei com o meu cenógrafo o que se encontrava pelas casas daquela rua que estavam condenadas à demolição (o linóleo, a escada, as lâmpadas a gás, os moldes) e colocamos nos seus devidos lugares em um estúdio onde era possível mover a câmera deslocando paredes e tetos. Ao filmar, podíamos quase sentir o odor do local de origem! Além disso, penso que as performances de Richard Attenborough e de John Hurt foram as melhores que consegui obter em meus filmes.


Nota:


[1] Entrevista (inédita) realizada em 20 de outubro de 1995 em Pordenone, traduzida do inglês por Michel Ciment.


(Positif n.° 544, junho de 2006, pp. 81-89. Traduzido por Linara Siqueira. Revisado por Ana Júlia Galvan)

 

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