SOBRE RICHARD FLEISCHER
por José Oliveira





IMPÉRIO DO TERROR (Armored Car Robbery, 1950)


Assim como em Fama a qualquer preço a balada brotava ao invés dos típicos acordes ou americanas do western acabado, em Império do terror, que abre os fifties, Fleischer esquece toda a panóplia plástica e simbólica do filme noir ou do policial, com mulheres mais evoluídas e redondas do que as fatais e cigarros queimados sem aura, para ir em direção a uma fisicalidade e a um magnetismo que irá sempre em ebulição ao longo do muito diferente que fará. Seja na The Girl in the Red Velvet Swing (O escândalo do século) e na sua tórrida lírica, ou num dos que mais fala com este, Os novos centuriões ou o desossado cagufe da solidão.

Nesta explanação e análise de um roubo planejado à exaustão por um cabecilha tão obcecado como o Sam Jaffe do O segredo das joias (The Asphalt Jungle, John Huston, 1950) ou o Robert De Niro do Fogo contra fogo (Heat, Michael Mann, 1995), esse Dave Purvis tornado maníaco por um William Talman consumado, tanto retira as etiquetas da roupa como mata quem tiver de ser por uma finalidade superior – o não deixar rastro nem memória. Ou seja, não dar margem ao incontrolável, à surpresa, ao que dele não dependa. Missão que é uma teia aritmética de queda, com mulher em disputa.

Fleischer começa por se instalar em vários lados, a ver como funciona o campo e arredores que escolheu. Ao lado dos ladrões, dos policiais que os caçam, dos bastidores da ordem e nos bastidores de uma bailarina que trocará as voltas e os princípios a quem julgava não mais vacilar. Nunca impondo uma autoridade esmagadora. Costurando o suposto lado documental e descritivo com a força de uma encenação sem qualquer tipo de desvio ou digressão que não a essencialidade do que está em centro e progride, varrendo tudo numa intensidade que se julgaria impossível nos seus sessenta e sete minutos, chegando à abstração e à impunidade pelo lado mais dúbio e emaranhado – que é esse destino ou acaso que jamais se conseguirá domar, o chão a diluir-se, os olhos raiados de sangue a embaciarem-se, sendo o abate final de Purvis abençoado com o ouro que a todos e tudo corrompeu.

Traições ou desapegamentos intoleráveis, trituramento dos meios em relação aos fins, desistência da honra, vingança grave como a morte. E já falo do policial para o qual Fleischer se volta a partir da morte do comparsa. Aqui, como depois nos Centuriões, só se deixa de beber café quando se devolve a bala prometida. Num realismo onde o aro do enquadramento se apega à matéria nervosa que se dispõe em frente, para lhe sondar, captar e espalhar todas as energias vitais e mortais. Numa pressão e com uma tensão que o liga, por exemplo, a um Aldrich explosivo, mas talvez ainda mais desafeiçoado e não consciente do poder da linguagem, antes ligando seres e coisas como uma relação imprevista e sempre nova para o mundo e para o cinema. Nos instantes decisivos, do tudo ou nada, o olhar da máquina fixa-se, frontaliza-se, vectoriza as geometrias e os suores, o sólido e o fugaz, e oscila inauditamente com o que se derrama. Espanta-se, mas finca o pé.

Eis assim um realizador tão implacável como os inconscientes ou por demais conscientes que desafiam a circunferência de Deus ou de nada; e que mantendo sempre a verticalidade, tomates no lugar certo, não se trai a si mesmo nem à raça que abraça, devolvendo a um tempo a razão a toda a gente, e disparando o fogo que conserva. Para o certo imponderável, a certeza certa. De todos os lados. E uma campa de notas, aquele que levou a riqueza para a morada final – fico com esta imagem.


RUMO AO INFERNO (The Narrow Margin, 1950-1952)


O det. sgt. Walter Brown que o estoico Charles McGraw agarra em Rumo ao Inferno, o Fleischer de 1952, é uma continuação do ten. Jim Cordell que o mesmo também fez em Império do terror. Só que nesta produção R.K.O. com orçamento de varredor de estúdio, o seu braço direito de ofício morre mal abre o filme, o que é mais grave quando depois ficamos a saber que na larga vida que a fita tenta alcançar, o det. sgt. Gus Forbes – assim se chamava ele – estava perto da reforma, já não costumava dar o corpo às balas pois a retaguarda servia a sua experiência, bem como entre os dois a questão era mesmo de pura amizade, corpo uno que tinha visto coisas incontáveis, relações familiares como laços de sangue que não se quebram. E tal vai assombrar o Walter Brown que desde o início nos surgiu como o aço, desprovido de emoções extravasantes ao crachá, chegando o seu sistema nervoso a entrar em atrofio quando a corrupção que é o seu anátema lhe bate à porta e ele vacila, em nome da redenção dos amados defuntos e pela comodidade dos que ficaram.

De Chicago a Los Angeles é um esticão jeitoso, e para quem vai fechado numa carruagem de um comboio ainda não moderno, com a morte do amigo ainda nas órbitas impressa, protegendo testemunhas que meio mundo quer abater e estonteando-se e fragmentando-se no que se revela como a desmultiplicação imparável da maldade humana, não vai ter tempo de fechar os olhos, respirar como deve ser, meditar caminhos seguros. Por aqueles vidros que se volvem espelhos do mal e refletem mortalmente o seu vírus, na exiguidade de um espaço que a todos promete engolir depois de consumir, pelas metamorfoses desprovidas de qualquer resquício de escrúpulos de cada um que defende a sua, todos envoltos em vapores e poções vorazes e conspurcadas, Walter Brown vai descer ao fundo da sua solidão e do seu desamparo como, improvavelmente e num daqueles diabólicos boomerangs que a vida por vezes inflige, encontrar ou desencontrar o seu firmamento. Entre outras coisas – e dando razão ao amigo que dizia que não se deve generalizar nem com aquele tipo de mulheres com que eles se iriam meter, nem com os trapaceiros que as conquistam – os carrascos viram heróis ou heroínas e os inocentes tornam-se indecifráveis e nebulosos – constatação de que a posta em cena, carregada de ilusões ópticas e replicantes, refrações e imagens cindidas, é tanto o fulgor do cinema como arte dos múltiplos sentidos e leituras, como o “baralha e torna a dar” que é o eterno reinício desta porra orgânica.

Naquela negra serpente a vapor que reduz o mundo a pó ou à sua nitidez mínima, Fleischer mete a bandidagem toda, a sua origem e germinação, o seu potencial, o seu contrário, as cartas todas. Assim que a tragédia primeira se dá, e que vai ser o móbil moral e a engrenagem motivacional até o final, toda a encenação é drenada, secada e cinzelada a carvão, desprovida de artifícios musicais ou pontuação evasiva, para se tornar numa reportagem sobre o discernimento do homem ferrado e encarcerado num cosmo ou no ralo de todas as possibilidades e gêneros. Estado direto onde tudo desenrola no presente, onde o “tema” é exatamente o que acontece. Horizontes fugidios e confluentes. Reportagem que se estanca ou se abana, com câmera à mão e rodopiando e tudo quando tem de ser, ou que, como um Hitchcock de um Intriga internacional (North by Northwest, 1959), contempla e se molha com uma nascença do amor no reduto mais esquisito e nada recomendável. Espaço que no geral se pode comprimir, como no grande plano arejar. Nada esperem e na esquina mais suja, no ponteiro mais banal e com o tempo errado, tudo recomeçará, tudo começará.

A caminho da negra cratera final e já vendo a areia da cova acenar delicadamente, W. B. aplica uma guinada que deve ter virado ao contrário as molas, parafusos e restantes alicerces deste abarcante e paciente complexo que nos atura. O resto, neste fabuloso filme negro e estelar, são os segredos perdidos da desaceleração e aceleração perene a que a existência e o seu entendimento se votam, onde o cinema pode ser feliz; a sugestão e abstração que na estrutura e no percurso mais definido se ousa atingir, nada a ver com os supostos experimentalismos de hoje, nesses absurdos dilatamentos e durações vagas que se envaidecem em si mesmas, antes sabendo que a luz tapa e aclara, mata, morre e revive, franqueia e bloqueia, estoura e se desvanece. Antes da retórica, da psicologia, do que for, a luz. E que como ela que possibilita o cinema e o milagre, tão efêmera, cada corpo e cada alma é um outro, sistema ou organização de leis próprias não estanques que não para de espantar e subverter. Monstros ou anjos ou casualidades. Animais de um Tourneur em embrulhos correntes. Fim, silvo de promessas.




20.000 LÉGUAS SUBMARINAS (Jules Verne’s 20000 Leagues Under the Sea, 1954)


Mas há esperança para o futuro. Quando o mundo estiver preparado para uma nova e melhor vida. Tudo isto se irá um dia passar... no bom tempo de Deus. São os derradeiros brados para nenhures das 20.000 léguas submarinas pintadas secretamente e em convulsão por Richard Fleischer em 1954. Nunca apenas Jules Verne em transposição imagética mas antes pura poesia em andamento, a desenrolar-se de boca aberta pelas possibilidades inexploradas das coisas e das suas cambiantes, massa aquosa que transporta em si a harmonia da rima e o seu contraste terrível; pura poesia atormentada pelo mal que jorra constantemente sem trégua à vista, pura poesia elevada pelas cintilações ontológicas inapagáveis; sem retórica ou sublinhado que não a livre beleza imanente. Não poesia na prosa, fogachos a trucidar uma narrativa clássica, mas sim a verdade dela, a sua chaga escancarada, desnudada, sangue a correr e esse milagre nunca percebido. Água, sangue, coisas que correm consubstanciadas. A trazerem ao de cima os massacres calados pela eternidade tão velha, a cavalgante sede destruidora, a culpa indesculpável; e o humanismo e a contradição a surgirem como possível única redenção. É a guerra, não antecipadora da primeira ou da segunda de um século vinte, mas essa destinada enquanto razão houver.

O capitão Nemo sabe que o poder do ódio pode ser tão forte como o do amor. Mataram-lhe mulher e filha e entregou-se ao gênio. Ao mais puro gênio que só tem por finalidade e objeto o mais perfeito mal. Tombou nos visionarismos e afogou-se na totalidade. Na sua ânsia cega de terminar a morte só responde com morte. A sua libertação pelo privilégio ímpar dos fundos dos fundos das águas é a sua condenação e a de todos. Os tesouros e o ouro da danação terrestre já não fazem ali sentido. Paradoxos aflitos que remetem para todos os holocaustos recorrentes e sem rastro, na ponta da língua e cifrados na ciência ou na computação, onde o crescimento para Deus prepara o embate impraticável.

Esperma de baleia à sobremesa, cobra marinha melhor do que carne de carneiro, charutos de algas, os mortos que ainda se continuam a enterrar solenemente nas profundezas das profundezas... Monstros e mundos da maravilha e do terror onde se pode viver quando se esquece e mata e humilha o prisioneiro palco da nascença, com todas as latitudes e infinitudes intactas e fulgurantes, nada a ver com subsistência mas antes com avanço e potencial nunca sonhado pelas mentes fechadas no seguro chão. Pensava-se que nas águas se escondia a maior e mais perigosa das criaturas marinhas e ainda a inteligência e estratégia oposta. Nemo a crescer para Deus. E em contragosto o marinheiro e caçador de baleias bêbado de Kirk Douglas, que só tem a carne feminina e o álcool na cabeça e na ambição, a mais reconhecível das nossas criaturas e Herói ou Carrasco máximo quando tudo parece ficar na costumeira paz. Inventor que junta à música de toda esta pintura a música de guitarras desconhecidas. Costela fordiana que impõe o baile à violência, que sente o auge desses movimentos sem lhe impor moral. Muitos não pararam de avisar que é talvez a paz que se seguirá ao “The End” que provoca o caos. Essa da ilusão e da repetição que antecede o sono e a paralisia, a antecâmara da morte.

Não há fim do beco e luz, tudo se complexifica na máxima simplicidade, sabemos do que se trata e sabemos que a solução não se deixa agarrar. Compreende-se perfeitamente o que se passou e a irresolução perene. Os grandes planos de Nemo dão-lhe a razão tirada pelas suas ações. De monstro a criança indefesa e a monstro. Quando o marinheiro bêbado o salva e de seguida se embebeda para esquecer essa infâmia, também fica sem o tapete do bem e do mal resolvido. A chave ou o pistão que salta será algo muito, muito maior, inultrapassável, invisível, esquivo aos correntes olhos, irrevelável, inviolável, aquele ponto onde sempre se tenta chegar, sempre, em milênios e milênios perpétuos, e que cada vez foge mais, mas comanda e seduz. A poesia, precisamente, fonte e confluência de todas as forças, crenças, direções, onde nada pode ser descurado na perseguição do absoluto. Perseguição, apenas perseguição. Absoluto, absoluto, nome para todas as quedas. Em Hollywood e com a encenação a carburar sem freios, raro tanto se entreviu. Fleischer absolutamente aberto e absolutamente em sentido. Vigilante e em arrepio, por aí toda a descarga suave e maléfica desta sinfonia pelo ordinário.













SÁBADO VIOLENTO (Violent Saturday, 1955)


(...) Victor Mature, tão injustamente apelidado de canastrão, protagonizou, no Arizona,
um sábado violento de assaltos sangrentos, que nunca mais me saiu da imaginação.
Fleischer outra vez em Violent Saturday. E, nos dois filmes, era também a glória
do Scope a afirmar as virtudes cardeais, essas que nos faziam dizer como o cinema era grande.
— João Bénard da Costa, O realizador do balouço vermelho


Cinema grande é o que realmente não falta em Sábado violento, largura que raramente assim se instalou em território tão íntimo e nada convencionalmente épico, profundeza na absorção de uma galeria de personagens, que mais uma vez no cinema de Fleischer, de tão variada, lacunar e complementar, parece meter, em caldeirão, uma possível enciclopédia da existência e a sua cantilena. Virtudes cardeais que vão relacionar e fazer corresponder em desmesura, dando razão à personagem viciada em fotografia que só fala em dimensões e perspectivas, homens queimados pelas mulheres e mulheres que se queimam por homens. Uns que não se declaram, outros que se declaram demais. Quem olha nos olhos e quem vira a cara. Os que apagam o fogo e os que nele se pelam.

Pela perspectiva fora apanha-se a fiada toda, e daí a importância, tal como no western de 1959, da relação entre o sutilíssimo Mature e o seu pequeno filho. O pai que se queria desvencilhar das misérias do seu pai e o filho que queria ver no pai o herói que alguns têm. Heranças de pais que passam para filhos, em perda potencialmente infinita. Questão de remissão dos pecados do mundo por violência como a final que secamente explode na tela? Onde até quem se entregou a um Onipotente, falo de Ernest Borgnine e da sua família amish, tem de fechar olhos e espetar gadanhas num instante incomportável ou num instante de salvação suprema? Fleischer decidiu terminar este conto ou o seu mosaico com várias crianças e o seu Deus, depois de tantas entregas clamantes e volúpias retardadas. Alguma coisa quererá dizer essa triangular composição, para o bem que está facilmente implícito ou para um novo e necessário perpetuar do mal. Ambiguíssima imagem final.

Mosaico, grandeza, quadros fixos que se aguentam num único ponto de vista pela abanante perscrutação, coordenadas unidas de sentido ou não-sentido e deslizar de um olhar num espaço ao jeito de um grande tabuleiro universal. Zappings e suspensões. Confluências lógicas e impossibilidades de reconciliação. Falei no final violento, falo no entrecruzar de opostos e no passo minúsculo da diferenciação. Não estamos tão longe uns dos outros, parece-me sussurrar uma espécie de deus ex machina surpreso, que é essa câmera ousada e tão esclarecida que na sua digressão estabelece a montagem dentro do plano uno, que só quebra por razões que não detém ou pelo excesso que nos finda. Bocados de falas que ficam no ar e regressam, presenças que saem de campo para depois invadirem campos alheios, geometrias que não se aguentam nas canetas pela bondade ou pérfida circundante.

Vertiginoso Scope que percebe, de modo natural e sem desculpas, que há que ir até ao fim. Mesmo que as linhas limites se vejam côncavas, retorcidas, deslustradas, deselegantes. Que as dimensões e ângulos entrem em guerras de escalas, proporções e hierarquia. Que se perca ou esfume o fundo que nos conforta. Que um rosto ou uma verdade extrema tenha que conquistar o direito de ir ao grande plano sem que seja a retórica determinista a fazê-lo. Toda a compressão de um dia a dilatar e a detonar a narrativa da causa e do efeito, para se tornar pintura abstrata, tal como a questão da herança resolvida. O cinema de R.F. cada vez mais condensadamente fragmentado, até a umas certas panorâmicas com split screen lá para a frente.

Epígrafe de J.B.C. que nada tem de saudosismo ou de retrocesso, antes todo o progresso e modernismo que a evidência, a filigrana e garra da posta em cena deste verdadeiro cineasta afirma. Alguém que está em sintonia com um passado de um Renoir ou de um Pabst, meter o infinito no quadro cinematográfico e permanecer silencioso, mesmo que a combustão seja instantânea, para assim ousar voos nunca tentados. E lembro-me agora de uma espantosa introdução de António Mega Ferreira (pelo menos ali, grande crítico de cinema) à visualização e construção do outro mundo em que assenta O fio do horizonte (Fernando Lopes, 1993), o nosso Um corpo que cai (Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958) e o nosso Borges, quando dizia que Lopes e Tabucchi não precisavam dessas linhas da moda e dessa cacofonia barata que, não disse ele mas pensei eu, muitos prodígios, jovens inconscientes ou “mestres”, têm necessidade de forçar em nome de uma suposta evolução que só me cheira a atrofio mercantil, carnal e formal. Enchimento mais perto de um espetáculo multimídia ou do design pós-moderno do que instrumentos de um trabalho e a sua urgência a exercerem potência.

Sábado violento é um grandioso fresco, sempre ao terreno nível. Valsa intemporal, sinfonia total urdida a um só instrumento leve e ordinário, talvez de sopro, para ir em busca de todo o peso. Pintura, música, dança funesta e ávida, poesia, cotidiano, por aí fora, volumosa dramaturgia intraduzível que todo o grande cinema deseja e lá toca.




O ESCÂNDALO DO SÉCULO (The Girl in the Red Velvet Swing, 1955)


O eclipse em O escândalo do século é bastante claro: aquela atração de feira escaldada e glacial da família de Lola Montes (Lola Montès, Max Ophüls, 1955) que anima os serões de homens de todos os tipos e feitios, por cima das cabeças deles e em movimentações inconcebíveis, mandou em tempos não muito remotos um homem para debaixo da terra, outro para o manicômio e muita coisa que só Deus ou o Diabo saberá. E então o seu show será mais condenação do que redenção, via-sacra sem expiação, num destino tão macabro e enviesado como. Richard Fleischer nunca se fez rogado, trabalhou sempre com o que tinha e sublimou as superfícies tanto como escureceu fundos. Depois da R.K.O. e dos mundos noturnos, côncavos e rasteiros, do saber-fazer imenso com pouquíssimos meios ou da fidelidade e dos biscates a Howard Hughes, entrou na metade dos anos 1950 com tudo o que essa tão convulsa década no cinema americano pôde contrapor à novidade televisiva. Assim, de 1954 a 1955 são as 20.000 léguas submarinas, Sábado violento e o filme sobre o qual me deterei mais um pouco, esse onde a chegada à lua de balouço mediante tão excelsas luzes, macias e clamantes carnes tudo provocou, tudo desmoronou. Anos gloriosos para alguns, estes da chamada “graça”, anos de princípios de fins ou fins de princípios, onde nomes como Elia Kazan ou Nicholas Ray, como pouco depois Martin Ritt ou Joseph Losey, findado o macartismo e os códigos pudicos, puderam fazer explodir todas as vanguardas teatrais e pulsões recônditas dos anos 1930 em que foram pioneiros, bem como alcançar as suas experiências cinematográficas totais que até aí só tinham almejado, trazendo para primeiro plano o que antes era clandestino, para as telas como para as vidas de muitos. Muito rasgado e com cores inauditas, assim desponta arrebatadamente O escândalo do século, carregado de vício e de suor, de provocação e de volúpio chamamento. Antes da mulher literalmente atraente, a rivalidade de dois homens. Oposição que parece ser para o arquiteto Stanford White, do grande e sempre esquecido Ray Milland, capricho juvenil ou exagero passageiro, mas que é para o igualmente bombástico e excessivamente romântico Thaw, indefinível possuído por um Farley Granger em fuga para a frente de perdição, questão de morte, muito mais do que de vida.

Enquadramento larguíssimo, já se disse, deveras povoado e abarcante, a rebentar pelas costuras de tanto ritmo e de tanto latejar chegado à luxúria de um Josef von Sternberg que observa e capta mais remoto, sempre apalpando o terreno e as pulsações até consumações outras. Depois, depois Fleischer oferece a Joan Collins, aqui Evelyn chamada, um daqueles grandes planos com que Griffith justificou as obsessões e Vincente Minnelli sonhou por todos nós, destacando e elevando essa criatura devastadora a olimpos não permitidos a nenhuma mulher que por ali passará. Grande plano que tanto volta das origens aprimorado pela vertigem do Scope como revive ecos passados da grande pintura dos grandes retratistas da pintura flamenga ou da livre expressão dos apaixonados sem gênero. Criatura devastadora, disse, e é aí que reside todo o mistério desta tragédia da posse e do domínio, do desejo e da loucura. Ambiguidade de Evelyn, tratada por Thaw como anjo, anjo que no entanto parece querer devorar, envolver, minar, sacar o chão a esses que retribuíram o olhar do desastre. Ou anjo assim mesmo, dessa pureza dos seres lá de cima tão incompreensíveis cá em baixo. É nessa ilusão e nesses hiatos que tudo balouçará entre altos e baixos, céu e terra, paraíso e inferno, com demoras em purgatórios que constituem a danada da ficção. São os vermelhos que tudo puxam e estraçalham ao corpo desejante e os azuis ou brancos da neve esfriante. Mas ambiguidade inescapável de White, que ousa aquela porta secreta para topos e fins nada confessáveis e limpos, que lamenta amar duas mulheres e então decide colocar a que é mais facilmente maniatável num infantário, para encontros e vigílias de escândalo. E ambiguidade também certamente de Thaw, que acaba como que o vencedor possível entre os vencidos, alguém que nunca se sabe ao que vem e que num só golpe parece poder apostar tudo. Embates naturais ou embates demoníacos que circulam pela ambivalência e instabilidade da transgressão. O que quer dizer que tudo tanto se joga nos sentimentos e segundas e demais intenções camufladas, como na ousadia ou pecado da estética, vermelhos tão vermelhos, veludos tão veludos, carícias tão carícias, arrepios demais fundos. Quando tudo assim é posto em cena e o inconfessável se escancara na sua ontologia, o resvalamento aparece sem pedir licença, e o resto ou é a história do costume ou promove o “nunca se viu nada disto”.

“Vi mais lágrimas em rostos bonitos do que nos normais”, começa por dizer a mãe a Evelyn quando pressente o abalo uterino. “Shoot for the moon”, é o desafio lançado por White, correspondido imediatamente por quem não tem medo de amar a lua, estourando assim o fogo da paixão interdita. Caem nos braços um do outro, vão à lua deles, mas as leis dos bons costumes e da posição social não permite voos propalados e o regresso é desastroso. E surge Thaw, arqui-inimigo primordial que não admite que lhe roubem mais do que mesas de restaurante ou lugares de espetáculo, miúdo sem vergonha e desgarrado que só parece ter para oferecer incômodos e frio à mulher escandalosa daquela praia de entardecer que é a lua deles, escândalo que parece amar ou não amar. Está aberta a contenda, e é depois dessa noite de bruxas de pesadelos a sério, noite flamejante em que Evelyn se rasga para cada um apanhar a metade devida, vórtice das cores, das composições e da outra luta entre a horizontalidade da paisagem e do social e a verticalidade do intimismo e do lírico, que é puxada para as forças indomáveis onde não se entra impunemente. Nos Alpes encobertos começa uma dominação que se opõe e completa radicalmente à instrução proposta por White. A figura evanescente e idealizada que começou por se entrever na capa de um boletim, volve-se monstro de beleza nefasta, e tais jogos pagam-se com o mais caro. Entre o Romeu sem tino que se torna indesculpável ordenador alheio e a besta que atingiu a elevação ignorante, está ela apertada, até ao tiro, à cova e à teia capital. Todos eles aspiraram para lá da incomportável visão, todos receberam o efeito natural. Sem delírios ou injustiças, muito menos culpados. Qualquer deles inocente numa razão incontrolável, qualquer deles o mais sujo pelo forçar de certas notas.

Richard Fleischer, que igualmente começou nas vanguardas do teatro nova-iorquino, confessou numa das entrevistas finais que o que sempre lhe interessou acima de tudo foi a encenação, essa antes da câmera começar a rolar ou da montagem manipuladora, descobrindo com os atores e com os cenários o movimento justo que é o movimento crucial. Se parece diverso em tom idêntico das fúrias e do descoser abrupto e consútil dos seus contemporâneos Kazan e Ray, ou mesmo de Richard Brooks ou Joshua Logan que participaram na transformação interior do classicismo, é porque acredita que o continuum, onde está inserida a distância convicta, conclui toda a pressão e peso dramatúrgico que a febrilidade da cisão e o barroquismo muitas vezes declarado tinha para aqueles, esbatendo-se assim paradoxos e diferenças sobretudo pulsionais que apontam aos mesmos derrapes. E é nesta prodigiosa porque perigosa dança em que a imagem e a aparência provocam a derradeira irrupção visceral, o jorrar por dentro, que tudo se joga num triângulo para lá do cânone, sagração ou paganismo. Antes da magia da arte, a crueza da experiência, do presente. Ligados os holofotes, castrado o espaço, fatalizado o tempo, brutalizado o esboço, nasce esse indefinível onde toda a unidade se interlaça com a próxima e a longínqua, tornado tudo dependente de tudo, divino que toca no ordinário, milionário que apela ao pé-rapado. E fica esse perpétuo balouçar, essa perpétua indefinição que nos assiste.





O BANDIDO (Bandido, 1956)


Na zona mais negra de uma floresta negra, mesmo por aí, sobre luzes e correntes aceradas e plutônicas, é possível virar o vento. Robert Mitchum foi dos que mais pisou, cheirou e se queimou nesses espectros de naturezas que reagem ao íntimo e à temperatura do homem. Em O bandido começa por ser o típico fanfarrão imperialista e orgulhoso de uma barbárie ganha, entrando no México de 1916, a ferro e a fogo letal, para entre os habituais negócios de armas emporcalhados e lançamentos de granadas que jamais fazem tremer o seu essencial copo de rum, regressar a uma infância que transformará o seu olhar e apagados horizontes.

De fama feita, esse tal Wilson que é perigoso e nada confiável, ainda mais por misturar os negócios com o prazer, vai olhar por um acaso uma Lisa que naquele antro passa por uma aparição – e o é, de chapéu à rapariga de balouço vermelho e fitazinha de orvalho cor-de-rosa pela delgada cintura –, e não será o mesmo. Ela também já não suporta o marido tão sujo como o pretendente mas que a trata como esposa e não como mulher, e de mais a mais, o hábito já os mumificou. Wilson ou o próprio Mitchum encara-a no momento seguinte e mostra-lhe a casa dos divórcios. Quanto às diversas facções em jogo, essa cambulhada de amigos, inimigos e cínicos de toda a raça, vão confluir para uma mudança impossível, como que atraídos por uma beleza estranha de inesperada, no espaço e tempo menos propício. Tipicamente Fleischer por esses anos.

Não é um western como não é imagem histórica ou denunciante de qualquer gênero. É uma progressão fabulesca que deixa a perfídia e o horror para nesse caminho subterrado apanhar o milagre inusitado, e mudar da fumaça e da preta labareda inicial para outro tipo de brilho, alvo e luminoso como os rostos do par que se encontrou no dantesco caldeirão, entre cordas nas gargantas e covas já nomeadas. Uma cura, uma missa ou um exorcismo, sei lá onde estamos às vezes..., que alastra ao filme desde o primeiro plano agreste e chamuscado a fazer lembrar os planos agrestes e chamuscados do argentino Hugo Fregonese, para se transformar numa ode aventureira mesmo que debaixo de pólvora à maneira de Raoul Walsh ou DeMille ou então para cavalgar mais... Lembrei-me do inimitável A face oculta (One-Eyed Jacks, 1958-1961) do cineasta Marlon Brando, e não só pelas ondas transbordantes e os brancos maculados por brancos. De tabernas manhosas e hotéis corrompidos como generais ou mercadores dali, para pântanos luzentes, lagoas magicadas, praias-fronteira rimbaudianas e pertenças de amor caligrafadas. Por entre balázios e canhões de todas as espécies, temos sempre a certeza que aqueles seres que divindades ou insondados de outra ordem decidiram acolher, não sofrerão danos de maior que não corações partidos, sufocares a contrarrelógio, corares de primeiro encontro.

Que bailado inaugural aquele da câmera em sequência para trás e para a frente que nunca é virtuosismo mas antes confina toda a ambiência e motivação. Num Scope que jamais pensou no inimigo televisão que lhe reduziria e humilharia as escalas. Ou em operações cosméticas que limpassem o que aqui é carnagem orgânica e convulsa, anti-pixels, escorreres labiais e camufladas libidos jactantes à tela. Onde o meio corpo de Mitchum é do tamanho de uma selva ou de um arranha-céus de hoje, onde uma majestosa igreja, como qualquer barroquíssima ogiva sensual, é tão imensa e sensual como o desejante clamor de vida e prazer da enrubescida e renascida bela. Todo o resto que pretenda manchar aquelas primaveras, ressurreições e expressão puramente liberta da forma, vai diretamente para os trilhos do desprezo, de proeminência e idade contrária ao sangue vital que explode em cores e sons.








ENTRE O CÉU E O INFERNO (Between Heaven and Hell, 1956)


Eles subiram à planície da terra e cercaram o acampamento dos santos e
a cidade predileta. Mas um fogo que caiu do céu devorou-os.
— Apocalipse 20:9

– What’s the matter, Sam?
– I don’t know.
(...) Scared, I guess.
— Diálogo do filme


Entre o Céu e o Inferno é a história ou o fragoso percurso de um homem que desde a sua pacífica terra natal até aos demoníacos campos de batalha lá longe vai perdendo quem ama ou começa a amar. Entre o Céu e o Inferno, certamente o limbo mais ingrato e terrível, o cada vez mais aflito e contorcido soldado Gifford (um sempre triste Robert Wagner entre travesso infante e empertigado adulto falhado), vai entender, pela dureza e pelo focinho da morte que o acaricia delicadamente, aquilo que não entendeu no seu algodão caseiro. É a trama da consciência que é o mesmo que dizer a fulminância do medo. Com certeza exíguos na terra o suportam, e a este pobre que a casualidade ou a loucura ceifou redenções e recomeços em forma de novo amor, vai descobrir – entre a posição vertical que o mantém de pé, com a pasta dos ossos, carnes, sangues e diversos compostos químicos e animalescos em tensão, e a horizontal que o deita e o poupa, o arrefece – que as falhas ou pecados ou heranças se pagam no corpo, vão para ele sem pedirem licença e dele saem em combustão. Chagas não fornecedoras do perdão ou da água benta prometida. E assim, mais uma vez, todo o alcance do esqueleto originário, dos traçados e da composição no grande embate existencial. O filme que Richard Fleischer tinha obviamente de fazer é um dos pilares mestres da complexa pirâmide multidimensional que foi erguendo sem meias-medidas, porque ainda mais do que atordoante belicismo é algo da ordem do sagrado e da eternidade, isto antes de Barrabás, numa portentosa ascese cristã de obstinações e vias sacras, onde o arranque final para casa tudo obscurece – o indivíduo, a sua circunstância, os seus cadáveres.

Envenenados ou sujos charcos da memória, vales da volúpia e morte, pólvora anunciada. Primeiro a mulher que o tenta converter, depois o pai dela que lhe descobre a tragédia, por último esse colossal Waco (Broderick Crawford muito descontrolado, assolado pelo abstrato que rói, muito tocante), poço de contradições que cristaliza as de Gifford e lhas entrega demarcadas. Por de volta todos os atores do circo que gira perfeitamente sem o seu volume e o seu espírito, esses todos que o tornarão imagem da perdição e, consequentemente, de uma inadaptação à terra. Nele, todos. Em todos, aquele corpo vergado. Incontáveis milhões de anos, oráculos, resoluções e não sabemos o que fazer por aqui. Tristes guerras.

E a respiração ecoante que não se pode deixar de ouvir, pois se cavalga diversamente das tripas e do visco que lhe vem como suor e o paralisa, falha-lhe, cala-o, consume-o fatuamente na intempérie e na sua rememoração. Salgação e bafo do apagamento. Entre o presente frontal e a sua lembrança oblíqua, surge-nos o ser, e a dificuldade ou a impossibilidade de o domar a bel-prazer. Entre o Céu e o Inferno, que é, à medida de A morte tem seu preço (The Naked and the Dead, Raoul Walsh, 1958), Apocalypse Now (Francis Ford Coppola, 1976-1979) ou O portal do Paraíso (Heaven’s Gate, Michael Cimino, 1980), todo enlaçado em plano-sequência, todo, malgrado ou até mais pela sutura classicista e temperamento camaleônico (magnético), a quente ou a frio conforme. Uma totalidade. Regras e cátedras a falecerem no fluxo cósmico que tudo varre, abarca, possui, interpreta e pergunta. No centro de todo o estardalhaço, em todas as direções, o cúmulo da síntese e do foco essencial, fluindo sem escape. Como um vento novo muito livre e muito sabido, avisado, que quer ver as coisas sem se intoxicar. Límpido porque consciente de tanta angústia, sofrimento, hermetismo, consumição, corrupção. E ao diminuto ou titânico, denso ou pueril, filósofo ou vagabundo, afeto, desprezo – a mesma intensidade da verdade... ou, se ainda puder ser, da crença.

A nossa inadaptação à terra, é isto, para se viver tem de se saber amar e morrer e matar. Tantas vezes tudo no mesmo palco. E a estupefação disso.







VIKINGS, OS CONQUISTADORES (The Vikings, 1958)


O maior dos oceanos não é o venenoso mas o que separa um cristão de um pagão. As mãos podem cruzá-lo facilmente. Se estas se tocam também as almas se tocam. E a carne. Quem assim se debate são rainhas e herdeiros de tempos longínquos demais, suplicando pela fusão. Homens e mulheres imemoriais. Trabalhos imemoriais. Vikings, os conquistadores é já de 1958, auge de outra ou da mesma poesia que no mais irreconciliável e cavo não desdenha a pujança dos seres e os esplendores da sua envolvência, jamais fendendo, jamais traindo, jamais rebaixando. Toda a trama e toda a questão, assim todos os sentimentos, são mais velhos ainda, velhos como o respirar, por isso iguais aos da vida e da ficção deste lado do contentamento.

Tem a ver com irmãos de sangue separados na vida e reconciliados na morte. Junções prometidas como amanhãs de sempre. Bruxarias ancestrais. Se nos tempos e lugares desses povos a violência ainda não teve rival, todo esse vendaval e universo parece bem mais habitável, justo e honrado do que qualquer civilização, sistema político, organização moderna, ou seja o que mais for de sentido de decência e cavalheirismo. Ali entregam-se espadas e soltam-se amarras antes da morte do inimigo, para este ter paz e encontrar o seu Deus, como gostaríamos que nos fizessem a nós mesmos. Cumprem-se promessas mesmo que a certo momento inconcebíveis. Abre-se o jogo e a tal da ambiguidade e das meias-verdades em voga não entram. Visão reconfortável em comparação com o último chegar da grande panorâmica do tempo.

Claro que os corpos se rasgam em grafismo e fealdade aterradora, o sangue afugenta-se tristemente, a vingança volve-se visita fatal. Mas nesse ressoar de suaves trombetas dos anjos sem apocalipse que fazem correr homens, mulheres e crianças para a felicidade dos novos mundos, pelos ventos místicos e mágicos e entre as neblinas da perdição navegante que evaporam o impressionismo e o fantástico rumo à superior abstração da mais pura beleza inominável com o horror casada, assoma a pulsão original do homem e o seu natural instinto justiceiro. Antes da degradação pela aparência, precisamente. O choque final é sintomático, revelador e cheio de saudade – o embate escrito em rodopios ao céu direcionados, a presença inteira da mulher, a testemunha das forças telúricas expectantes. E o funeral a suave fogo, chamas bem-aventuradas, devires plenos. Dovjenko nos fiordes, os planos e a matéria devotamente ungidos, num dos cimos do seu lado da sagração. Que tanto ainda mais rima com os fecundos verdes das planícies e árvores invencíveis, a agrura também tão velha da pedra, os brancos espumantes e jorrantes das águas e das cataratas procriadoras, prenhas mesmo, o olhar vidrado e rosto esfaqueado do mano hesitante como o do conto de Lucas. Tudo tão velho, velho, cansado, o ressurgir de novo, o presente.

As veias que se esticam até aos limites e o suor que seca o corpo que resiste a tombar, acordado com a pintura dos sentimentos, a rescendência dramatúrgica, a alma plasmada, o tremor universal. O selvagem a viver com o artifício mais real do que o convencionado real. Lembra-me Acto da primavera (Manoel de Oliveira, 1963), lembra-me As legiões de César (Le legioni di Cleopatra, Vittorio Cottafavi, 1959). Foi preciso ir tão atrás para se perceber como se está tão na frente. E, numa oposição tão descabida e bruta, esse pesar da constatação limpa demais. A derradeira cisão, o buraco desmedido. Outra musicalidade, esse som dos círculos para sempre.





ESTRANHA COMPULSÃO (Compulsion, 1959)


Uns óculos caídos sem explicação na cena do crime. São eles que vão fazer vacilar o crime perfeito. São eles que tudo ensombrarão no último fôlego de uma longa caminhada sobre um abismo de nada. E Deus. E Orson Welles, possuindo um advogado sem escrúpulos e sem piedade e se calhar sem sangue, que é o mais violento ser deste pós-apocalíptico circo, vai fechar o vórtice desenhado por Richard Fleischer em Estranha compulsão, de uma forma e com uma lábia que é inútil traduzir em palavras que diminuam a sua expressão e jogo de cintura. Pode-se dizer que a pressão que mete em quem o escuta, ao dizer que o mal não vai matar o mal, que o poder não se pode comportar como as bestas que praticaram o ato inominável em causa, bestas defendidas por ele, ou, talvez o cúmulo, que levá-los à forca seria regredir brutalmente na concepção e busca de uma humanidade melhor. Discurso, ética e estética que está ao nível do que Chaplin fez em O grande ditador (The Great Dictator, 1940) e que será o apogeu do Welles ator e do Welles encenador, medonha caveira carcomida a insônias.

Super-homem, Nietzsche, indiferença emocional, gelo, desprezo, superioridade, relativismo filosófico, liderança suprema, Moisés, arrogância legítima, virtudes incompreensíveis ao rasteiro... e cada vez mais supremos até de tudo estarem desprendidos. Judd e Straus, o paranoico e o esquizofrênico, querem estar para além ou para aquém do bem e do mal, do certo e do errado, sem cauções de sanidade judicial ou medicinal. Querem-se fundir em um e praticar o mal de cada vez pior, horrífico, limpo, inconsequente. Aglutinação de carnes tenras que compreende o sensível, o moral e, de maneira mais aparentemente soterrada, o sexual. Fortíssimo filme erótico de uma carga e tensão a rebentar as bordas do Scope em constante desequilíbrio. Ora abarcando, ora isolando lá pelos cantos mortos.

Sem paixão, sem amor, sem desculpas. Judd cultiva arrepiantes animais empalhados, Straus brinca com manhosos ursinhos sorridentes. Judd tenta ser mais perfeito do que o mestre sodomizante, mas acaba vergado às confusões e sensações que os olhos e o roçar numa moça loira produzem. Uma espécie ou um concurso mesmo de supradeuses que só finda quando o primeiro for ao tapete ou à ultrarreferida guilhotina. História passional entre dois homens em que o reflexo é história de horror sem causa. O que falhou e os levou ao encarceramento eterno que se revela mais cruel do que a corda que os esganaria de vez?

Uns óculos que vão baralhar e atrofiar tudo, álibis, argumentos, nexos, personalidades? A formosa Ruth fala na infelicidade do paranoico. O Wilk de Welles vai por caminhos patológicos, advogando por amor. Mas neste cruzamento ou atamento entre Festim diabólico (Rope, Alfred Hitchcock, 1948) com os vampiros libertinos e sugadores que Abel Ferrara pôs à luz do dia em O vício (The Addiction, 1994-1995), a escorregadela ou a falha que se detecta mesmo no ressoar derradeiro, aqui a coisa é estendida e distendida e reinventada para lá mesmo do último apito do árbitro, é a sentença privada e noturna de Welles. Muito mais sentenciosa e fatalista do que a do oficial, e que reza, no idioma original, assim – “In those years to come you might find yourself asking... if it wasn’t the hand of God that dropped those glasses. And if he didn’t, who did?” Pumba, “The End”.

Não querendo puxar a brasa a nenhuma sardinha, muito menos ter certezas num palco onde elas estão fora de serviço, faltou aos dois putos espertos e mais ainda ao cabecilha o que faltou ao artista de Império do terror, sendo esta uma rima perfeita ou um chafurdamento mais fundo – o respeito ou a simples consciência de uma possível transcendência, ilógica ou lógica à sua maneira, isto para não usar ou deixar em elipse metáforas ou habitantes divinos. O que transporta este filme para outro degrau ou patamar é precisamente a elevação desta questão ou desta incógnita, infinitesimal ou colossal, a estrados metafísicos, em consonância com todas as verborreias que escorrem no ora metálico ora viscoso preto e branco. Fora ou além da esfera e do peso dos corpos, do dinheiro, da posição social. Em amplitudes que justamente ao evocarem o contrário do mal só para ele caminham e o largam, besta na selva. Mal difuso que se entranha e não se isola do bem. Terror da beleza e beleza do terror, como também lá se diz.

Irracional, inaudito, insuperável. Mente que não calamos, alma que não acedemos, rol de eventos que corre imperialmente, fazendo-nos ajoelhar quando e onde quiser. Fora do que podemos tocar plana o que não podemos tocar. Ou ver. Sentir. O que nos foge ou seca como a água sobre a pele quente. Como pergunta terminal do que andamos aqui a fazer, para quê, por quê. O que Fleischer largou às feras é a impossibilidade da cura. Reconciliação. Abraço. De um modo tão amplo e circular que só podemos responder como responde aquele Straus das certezas todas – de boca cosida.

Confrontar se faz favor, para fins de outro tipo de inteligência, os dois tipos de tratamento da realização, isto é, antes de Welles e depois de Welles, que invade e tudo modifica num rompante sereno. Serenidade filha da puta. Duas partes distintas, duas respirações, duas pulsões. Como se na primeira não houvesse nada da ordem da crença e estivéssemos a flutuar e a pairar num crispado vácuo. Cenas e planos que se chocam e entrechocam, durações e ritmos convulsos, perigoso atrito, olhares desencontrados. E na segunda fossem precisos os caminhos e os saberes, por exemplo, de uma decupagem que permita dar luta ou emplacamento àquele Altíssimo ou àquele Diabo que suga tudo do campo. Olhar encontrado, escansão, movimento e significâncias tão claras como negras. E no embate do claro e do negro estará o tom geral. De onde o choque dual produz o que lá está. Sem resoluções.





FAMA A QUALQUER PREÇO (These Thousand Hills, 1959)


Richard Fleischer é um homem de muitos gêneros, o que também significa que é de muitas vidas. Fama a qualquer preço, um dos que recentemente me impressionou pela singularidade e tradição com que se instala no western, é resumidamente a história de um rapaz que perenemente molestado pela fraqueza de um pai que segundo ele se acovardou atrás da Bíblia, torna-se um arrivista mesmo antes de arribar, que por conveniência esquece a mulher que mais amou e que mais o amou. Mata, rouba, corrompe-se. E que certo dia a certa hora, num lancinante lampejo de honestidade própria e de rasgar o coração, como que se redime ou justifica para lá do vacilante happy end e do que já não vamos ver.

Filme onde a profundidade de campo e a largueza do espaço se correspondem com a profundidade psicológica e a complexidade moral de Lat, o cowboy que enterra os escrúpulos tão fundo que para os alterar vai passar pelo seu cabo das tormentas. Ou a complexidade do espaço a debater-se com a desmesura emocional. Com Lat defronte da casa da verdadeira amada chamada Callie ou nas extensões intermináveis e poeirentas do Oeste, não se vão esbater os fundos ou permitir desfoques, ampliando-se sim tantas vezes a perfeição do estúdio e acentuando-se a limpidez, para dentro da horizontalidade que impera, e também Lat sentindo que o não acovardamento leva os níveis de verticalidade da consciência a um grau que a maior parte não pode aguentar, para bem da sanidade e para mal da puta da loucura.

Dentro das quatro partes que enquadram e pela disposição de infinitas variáveis lá por dentro, vão surgir troncos que o martirizam e não o deixam dormir, ramos que espetam e o sangram, complôs com as atmosferas cálidas e glaciais no mesmo perímetro. Mas também autênticas diagonais, vagabundagens e ímpetos daquele cavalo negro de sangue puro, que mesmo assim magoa muito menos do que as feridas abertas e sempre mais um bocado arreliadas que se cravam nos carrascos, na sua forma bruta e respirar solto que enche de incompreensão cada um que o tenta domar. A liberdade, em certos sítios e por certas alturas, costuma ser um privilégio só à custa de suprema vontade autônoma, que pode ser uma forma de bela violência. Tal colosso escolheu Lat para cavalgá-lo, e isso diz mais que qualquer coisa, pois esse animal de helênico esculpimento parece ser o mais fiel, um dos pêndulos de uma bondosa balança que se equilibra com o sorriso ou as lágrimas de Callie. Nada a ver com os outros zigue-zagues das balas que já substituíram as flechas índias, das provocações dos imbecis consumados e da alastrante lei e justiça ambígua.

Callie... Lee Remick... fora de tudo... que é, tem de se escrever aqui, a alma mais alva e libertina, escandalosamente alva e escandalosamente libertina, que dá todo o dinheiro a quem lhe deu o que ela nunca tinha sentido, proporcionando-lhe a via alternativa ao pai mas também a rampa da tragédia, que lhe abre sempre a porta apesar das humilhações, que espera, fica, e finalmente arruma a equação da maneira mais viril. É antigo dizer-se que a sombra da desgraça costuma pairar sutil e dissimulada no rosto e no olhar das coisas mais virgens e insuspeitas. Mesmo que Callie, para mim, jamais se tenha manchado.

Como tenho de me perder na cena mais exemplar, triste e saudosa, pois é aquela que resume toda a desistência da verdade em favor do status, mesmo que o referido acerto dos ponteiros na hora e no momento agudo seja como um canto de anjo no purgatório, um mimo de Deus, um perdão. Momento só comparável aos conselhos francos de um velho sábio que transporta esses dons na dorida cara. Que é a cena da caixa melódica infantil, da troca de vestido da menina linda e excitada para o encontro perfeito dos seus sonhos cor-de-rosa, do pentear-se ao espelho, do crescendo de excitação... e do menino cowboy que foge corado e que depois voltará devagarinho, pedindo desculpas sussurradas. Espaço agora interior ou ninho que é um oásis dentro de outra coisa vasta e fatalmente escorregadia, a sociedade. Onde finalmente a harmonia compositória de todos os elementos e as linhas não quebradas dão a paz e a impossível perfeição duradoura. Porque esses momentos duram pouco, efêmera duração inigualável, mesmo nas discussões e misérias, brotando luzes serenas, apaziguadoras, resplandecentes. Podendo aqueles dois seres manietados e à deriva saberem o que é a contemplação livre, promessas, eternidade, segundos. Esse oásis, nesses entretantos, transfigura-se no centro do mundo.

Tanto balanço e crispação, sem que o eixo mecânico e o foco sensível desabem alguma vez para o descontrole ou excesso, melodramático, virtuoso ou outro. Uma mão e uma inteligência arquitetônica, um olhar imperturbável, instintos apurados, para um todo cruelmente erigido. Eternas batalhas com a pressão que rodeia e com o afunilamento da agulheta... Arte do espaço, arte da relação nele. Do tempo que dele se abarca. E do estremecimento das conjugações. Nada mais humano.






VIAGEM FANTÁSTICA (Fantastic Voyage, 1966)


Viagem fantástica é mais um caso à primeira vista inclassificável no multidimensional percurso de Richard Fleischer, caso fantástico na sua tremenda viagem. Não lhe servem as prateleiras nem os carimbos da sci-fi, piropos utopistas ou solenidades proféticas. Está, como nas suas feerias tardias ou nas primeiras dos pretos e brancos e das assombrações calcinadas, instalado no momento presente que os aglutina a todos. Nascimentos, jornadas e crepúsculos na mesma passagem ou no mesmo cosmos que não exclui, pelo contrário, os turbilhões, os rasgares, as dimensões resvalantes.

A missão, a sinopse seca, na sua incredulidade científica ou narrativa, é simples: alguém que importa foi assassinado e urge reverter tal fato. Então, reduz-se literalmente uns cientistas e uns médicos, um submarino piscatório e a sua equipagem e toca a metê-los pelo interior do corpo humano adentro. O tempo urge gravemente e não há espaço para hesitações, éticas, repensares. Segue-se o conhecimento adquirido, afia-se o instinto e o cheiro selvagem, puxa-se o medo para a coragem, carrega-se no acreditar, e torna-se o extraordinário plausível por aquilo que sempre nos fez mexer, a necessidade, esse vulgo desenrascanço.

E depois, depois, começam lá dentro deste nosso embrulho, desta nossa mala, a dizerem espantados que o Homem é o centro do universo, que o nosso pensamento brilha mais do que todos os sóis de todos os universos, essa glória incandescente da infinita mente nossa. Eles, os especialistas, a abrirem a boca a cada instante, a surpreenderem-se sempre pelo que julgavam saber de cor e salteado. Todo aquele organismo de arestas recônditas, texturas ocultas, luzes e sombras fugidias, significações ambíguas e experiências primeiras vão ser como o acordar de uma nova galáxia. Eles ficam sem chão, e o cinema com eles. À redescoberta ou descoberta do que julgávamos arrumado, uma infinidade de surpresas, soluções, opacidades, altercações. A massa do sangue a deslizar para todos os mistérios e maravilhas. O coração a suspender-se, a ceder passagem, e a bombar de novo. Os desastres e anomalias ali como em todos os lados. Como também se diz lá: a mente finita não pode compreender o infinito; e a alma que provém de Deus é infinita.

E a dramaturgia, a imortalidade. Lá nesse dentro concentracionário como o dentro das insolentes e arrojadas expedições da NASA, continua a maligna sede da inteligência, da pulsão rasteira, fratura, degredo. Há sempre alguém que destoa. Que desarmoniza a natura. O demasiado humano e o caráter cravado a almejar orquestrar a seu bel-prazer. De fato, atinge-se alturas raras de perigosas quando antagonismos destes se debatem. Por entre esses tecidos e fluidos que fazem lembrar os desertos quentes da terra, nas zonas pulmonares que são o fundo do mar ou no cérebro das explosões cadentes – e que dizer dos alvéolos, guerrilheiros glóbulos brancos e vermelhos ou os fractais tão estupefacientes como em 2001: uma odisseia no espaço (2001: A Space Odyssey, Stanley Kubrick, 1965-1968) –, o permanente deslumbramento da nossa constituição com o permanente deslumbramento desta arte tantas vezes sem saída. Mas não são o suficiente para limpar a mente de outros tipos de sujidade: um dos elementos da tripulação renuncia e não são precisas insurreições vingativas dos seus comparsas. Entra em campo a grande justiceira, a ordenadora superior e depurada, a natureza. A essência. Essa que recicla tudo, clamante dos eternos retornos, sempre certa. Recicla o traidor, orienta os inatos milagres. E termina sempre em apoteose como este espantoso, e não encontro palavra mais definidora, filme de 1966. Sublimes ajustes da Mãe das Mães e sublime plano alto final, vulgo picado, a meter tudo na justa perspectiva. Mundo realista de escalas falseadas, maquetas mágicas, computação tosca, muito mais do que se fosse supervisionado ou sujeito à aprovação de um qualquer licenciado sério; e a mais bela das homenagens ao seu heroico pai, o Max Fleischer pioneiro da animação e inventor do marujo Popeye; ao seu heroico tio, Dave Fleischer, e a todos os que elegeram os trilhos desgarrados da poesia total, tais espelhos reveladores e pintura livre para encarrilharem aos trilhos essenciais da vida.









A ÚLTIMA FUGA (The Last Run, 1971)


A última fuga é de 1971 e assim encontramos Richard Fleischer já fora do grande ou do pequeno estúdio, por outras terras que não as da Califórnia. Trabalho carpinteirado ainda com mais artesanato e calejamento do que quando se aventurava entre fumos e maquetes em série e por si apropriadas, trabalho que pertence à estética, ao cheiro e à combustão orgânica que sobretudo desde O homem que odiava as mulheres começou a tomar conta de um lado da sua riquíssima obra, lado de uma certa doença geral e de uma certa desilusão sem filtros. Soturnos contos banhados por doenças que, porém, nunca surgem sublinhadas ou ostensivamente demarcadas pelas mantas habituais da sociologia ou da psicologia; tudo faz parte da derrapagem a que estamos sujeitos e o olhar de cineasta é sempre preciso, decantado e desencantado. O deformado split screen e a pressão demencial e sem explicação do filme de 1968, que acaba com uma fusão a branco do corpo e da cabeça de Tony Curtis com o ecrã uno e abismal do buraco negro que por natureza o cinematógrafo é, será de uma vez o auge e o alastramento para o grito da nossa impossibilidade de controle, alinhamento, paz. Sem maniqueísmo e com uma disponibilidade e logo ambiguidade que vai de Dostoiévski a Renoir. Por isso mesmo em O estrangulador de Rillington Place já está tudo doente e não somente o eunuco bebê envelhecido de Richard Attenborough, mas também o bebê efetivo e o que está numa barriga, o casal com todas as esperanças e sonhos, bem como todo o espaço daquela casa assombrada mas também a rua, as montanhas longínquas que acusam ainda mais, a derme e a epiderme e todo o cavo que a câmera olha e perfura sem freios. Assim fecha em paralítico final – olhem bem o mal e vejam se não o confundem com a mais inocente pedra da calçada pisada por todos. Do mesmíssimo ano de A última fuga e Rillington Place – três petardos num ano já é coisa do antigamente –, Fleischer ainda voltou a uma Inglaterra mais interior do que a de Rillington, observando o estoico corpo sem olhos e à deriva pelo cosmos de Mia Farrow perigado por uns olhos desencorpados e sem credo que atrofia e impossibilita cada plano. Em Terror cego chamado, tudo é ainda ordenado pela batuta da Mãe Natureza e do universo ecoante, mal metafísico em contato com uma pureza e apenas o acaso como eventual salvação, num subestimado filme que jamais é só exercício ou sucedâneo do sucesso de O bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, Roman Polanski, 1968), pois, se quisesse ir mais além, diria que este terror adjacente da normalidade pode assustar mais do que as seitas de Polanski. Depois do filme em que me vou meter que se veja igualmente e para efeitos comprovativos ou de dor de barriga a mortandade imparável, casual e lamentavelmente lógica que arrebenta em A morte do chefão, companheiro de todos os “Chefões” de Coppola e antecipador dos Scorseses mafiosos, estratosférica violência encenada com a secura de Robert Bresson e Don Siegel. E que não se menospreze a saga americana da terra e da honra na qual Charles Bronson em underacting desossado protege contra tudo e todos as suas melancias da corrupção; Desafiando o assassino é já de 1974. Mais e mais obras ou simples passagens de viagens fantásticas ou aventurosamente infantes poderia atirar para a mesa.

A última fuga é então tempo e também espaço para coisas surpreendentes e comoção aguda, daquela quando se sabe que o tempo não perdoa e que tantos paraísos já secaram. Tempo, esse escultor e justiceiro maravilhoso mas também impiedoso. Temos o grande muito grande Sven Nykvist saído de Ingmar Bergman para possuir literalmente imagens justas porque sujas, borradas de manchas de um tempo e de tipos infelizmente “novos”. Jerry Goldsmith com a sua música na ponta da navalha. E a geografia inigualável porque tão marcada de passado que começa por terras portuguesas em serras e mares algarvios mas escarpados, serras outras e planícies outras sem legenda, tão bonitas e tão ameaçadoras, atravessa fronteiras espanholas e chega a pisar em França. E como cada piso cada língua, e cada brilho e odor, até neste particular a que muitos, inclusive os grandes desprezaram a favor de outros propósitos, o cineasta se aplica e por isso a gama dramatúrgica vai ficando cada vez mais encorpada, pintura e coro. Quanto a estas coisas, tudo faz parte da empreitada e poderia ter sido por aqui ou no lado oposto, com estes ajudantes ou outros, que tudo se comporia no olhar camaleônico e na mão atraente porque fiel de Fleischer, sem desculpa ou sem divagação. Nunca comércio, turismo ou palmadinhas nas costas para coproduções futuras ou amabilidades criticas flanqueadoras.

Numa vilazinha piscatória vamos encontrar Harry Garmes, tronco sabido e consequentemente sem muitos sorrisos ou palavras a não ser o essencial que costuma doer quando sai, e vamo-nos lembrar muito da sua personagem também já reformada do policial que respirou em Os novos centuriões, sim, aquele que não tinha muito para fazer e que meio tímido voltava à velha esquadra e aos velhos comparsas, que se descobria mesmo assim desamparado e virava o cano da arma contra si e puxava o gatilho. Vamos ter com ele a uma velha garagem escura, ao automóvel de guerra e de sobrevivência, aos trabalhos de mão e ao apagar de uma luz antes do tremeluzir de outras. Vamos acelerar a seu lado de modo suicidário, mas sozinho vai recusar-se a morrer a pior das mortes, a que vem muito lentamente antes da inexploração de toda a incomensurabilidade da raça. E vai, vai à luta, vai provar que as veias ainda têm sangue, o coração pulsa e o medo real e a transgressão essencial existem.




Uma última missão, uma última corrida, dizem as parangonas: que do argumento então é largar a sua pesca fictícia e a sua prostituta honesta, a sua espera pelo que não há de vir, meter-se com criminosos e não saber o dia seguinte, resgatar um puto fala-barato com a namorada mais esperta e bonita do que ele, apaixonar-se novamente ou aparentemente, largar bala e fazer escorrer sangue, orientar ou esmurrar os de amanhã e os amanhãs, debater-se com a sua religiosidade... desenganar-se definitivamente. Isto é a ação, e é fulminantemente filmada, montada, vivida, sentida pelas guelras em direção a voos outros de significâncias e transcendências para além da impagável fruição. Lugares e medidas recônditas para além do cinema e das suas superfícies. Pois o fundamental é de outra ordem: começa desde a primeira aparição pesada e enrugada de George C. Scott mas pode ser centrada no momento em que ele prega dois socos ao jovem feio espertinho que é Rickard. Scott tem a gentileza de o fazer fora do alcance da namorada dele e assim expor a sua dimensão moral, que é a de que mesmo fazendo coisas do diabo e podendo algures ser o pior deles, é homem que acredita, homem teimoso. Algo que naquele tempo como hoje ainda mais não faz qualquer sentido para a maioria. E pode ser ridículo ver esse homem pausado, duro e frágil a sentir-se leve por se ter confessado ao ar ou a fantasmas numa igreja que calhou.

O que temos é então o encontro entre duas humanidades distintas, que poderão ser dois mundos, duas sociedades, e a clivagem pasmosa. Uma a morrer e sem parentes, outra a propagar-se como o pior dos vírus. Paul Rickard, esse engraçadinho que trata tudo como objetos dispensáveis, como lixo, apesar de tudo ainda vai aprender algumas coisas à custa de muita cabeçada – se o filme fosse refeito agora não aprenderia nada de nada. É um palhacinho, um irônico, um pós-moderno como tantos de hoje com as suas maneiras de estar e a sua arte de pacotilha. Ainda num outro dia um amigo me dizia verdades verdadeiras, por causa do melhor programa televisivo de que me lembro, chamado “Play-Off” e realizado atualmente pela SIC Notícias, sobre o irreconciliável que é o embate entre o velho lobo que é Toni Oliveira, o nosso John Wayne com o único bigode hoje em dia admissível, e o tecnocrata com todas as certezas feitas que é o Rui Santos das pantufas e das estatísticas sem margens para dúvidas. Jamais Santos irá compreender do que trata o olhar e as sentenças que surgem como marteladas bem assentes do grande Toni, humildade e saber que vem de um tempo com outros valores, limpidez e possibilidades inclusive mitológicas. Tempo em que o amor e as serenatas faziam sentido e os lamechas não eram “lamechas”. Tempo em que se vibrava com Camões. Às vezes, ali no quadrado ilusório dos raios catódicos ou nos nossos passeios cotidianos, parece-me ver robôs a interagir ou a tentar interagir com pessoas, frieza e calculismo contra agitação e abertura. Um boi a olhar para um palácio. Um lingrinhas para um monstro.

O novo e o velho é aqui o foco, tal como o era em Eisenstein, não como saudosismo ou lamurio inútil, sim como constatação do declínio e do degredo presente bem como das utopias de outrora. É como passar das lágrimas e das fundações a cimento de David W. Griffith e de Frank Borzage ainda cultivadas pelo atual e já ameaçado James Gray, para os bonecos, caricaturas balofas e água-de-colônia insuportável do “atual” e tão acarinhado Wes Anderson. A última fuga é sobre a utopia e é algo em si utópico e já ali anacrônico, com o milagre da sua construção e da progressão em dimensões ainda gigantescas, cravado em química e por física que não só virtual – coisa que só alguns grandes com muitas feridas atingem lá para o fim.

Fim, é o que Scott entrevê quando olha para o relógio antes de ir para a cama com a jovem resistente. Dizendo-lhe de chofre e sem pré-aviso que o tempo é o único inimigo. E os ponteiros vão-se cansando, cansando. Até se deterem na tragédia final que apesar disso é mais canto de cisne, melodia e pincelada a ver com quedas que metem pena mas belas apesar do resultado, e nunca subordinação mas ousada e derradeira insurreição. Confessando-lhe também que aceitou não pertencer a lado algum. Daí que não será citado entre os imortais da imortal história. Aceitando-se mortal e apenas um normal das singelas recordações de aldeia, e Fleischer a par dele com a devida irmandade, sem usura ou solenidade, oferecendo-lhe uma morte tão sacra e silenciosa como a que deu ao Robert Forster em A morte do chefão – algo a remeter para a qualidade impossível da luz milagrosa e tenebrosa que vai certificando e atormentando o colosso aninhado de Barrabás depois da suposta libertação e das respectivas visões na mais visionária das suas criações? Se Scott muito mudou de lugar e muito usou de contradição, o seu “I stay”, à imagem do de Curd Jürgens de Amargo triunfo (Bitter Victory, Nicholas Ray, 1957), é humanista, a ver com o berço, necessário. É um “eu resisto”, não me emporcalho, nem que morra todo.

Apetece-me ir outra vez de guinada ao início da narrativa e à cena do quarto da prostituta que só o é profissionalmente e não de coração, e estou a citar Scott, quando ele fala da sua mulher que igualmente fugiu, mulher de corpo de prata e seda, olhos azuis brilhantes. Virando-se surpreendida a sua nobre companheira e reconhecendo diferenças, mesmo que ele só ali esteja por necessidades animais. É já sintomático porque mais do que romantismo ou poesia ou cavalheirismo, é verdade exposta, alma e carne e vida, sem hipótese de ser doutra maneira. Ninguém lhe falaria assim, ninguém lhe confiaria dinheiro vital. E essas pausas dele, essas ponderações, dúvidas, cigarros pensados e vilipendiados, rumorejos finos, dores nas costas e nos ossos, rosto de incalculáveis relevos e rupturas a sorriso e choro, rosto duro talhado sobre o granito da memória, interior convulso e indigestões mas também apaziguamento crepuscular, é a força dele e a ousadia da firmeza. Estamos perante um duelo, e o realizador e o descomunal ator principal, quer seja um quer seja o outro, não irão facilitar. Quanto mais força melhor. A moral que importa, a moral custosa. No fundo de um buraco de chafurdanço como em noites longas (e tão brancas...), olha-se para o teto e vê-se claramente visto, é a droga da adrenalina procurada por Scott e o terrível que é estagnar. É preciso suar ou só andamos aqui a brincar. Scott antecipou que a jovem não o queria, mas tiveram o seu recatado céu. Sem rendição.

E não pondo de parte que John Huston é citado como correalizador e terá feito umas coisas, o que faz todo o sentido e acrescenta mais camadas poéticas e vísceras, pois tal como Hawks, o já citado Duke ou o anjo Mitchum, era dos que bebia dias e noites seguidas e depois perguntava aos que não bebiam, quando o trabalho urgia e tinha de ser feito, o porquê de eles estarem tão cansados. Pumba. Tiro e queda. Já devia ter acabado, mas, só para conversar mais um bocadinho, a modernidade da arte como do dia a dia sempre esteve em arranjar as formas adequadas ao que se trata, ao que se tem na frente, se sente. Em todos estes filmes que citei, é assim, e então agora, faça-se lá as contas outra vez.






OS NOVOS CENTURIÕES (The New Centurions, 1972)


Os novos centuriões é um dos mais belos e comoventes filmes alguma vez feitos sobre a amizade. Logo, uma dolorosíssima visão sobre os trabalhos e a fatalidade da solidão. Se acompanhamos grupos de policiais na cidade dos anjos que escalda, metodicamente e detalhadamente, o que vai sendo cada vez mais apurado e vincado é o tempo a atuar. Amizade, solidão, e logo o medo... Porque as coisas passam, envelhecem, desaparecem, tanto a paisagem como as pessoas. E chega a morte, que é a do inesperado final de Roy Fehler, e perfeitamente esperado pois tanto ele como o seu mestre – ou o seu pai, irmão, esse anacrônico e artista Kilvinski que soube desde sempre que a melhor das leis é a do interior – acreditaram demais e amaram demais o que porventura já assim não pode ser sentido pois demasiado já aconteceu por estas terras desde tempos demasiado remotos que vão ser evocados aquando das mais negras dúvidas. Amaram demais e viciaram-se demais no que lhes tocou em sorte, na missão sanguínea, e as duas tornaram-se indestrinçáveis. Quando julgaram que poderiam começar a afastar-se e a viver os contos de fadas que sempre puseram em perspectiva, tombaram. O mais triste dos contos, com a moral que Kilvinski não se lembra na hora do seu apagamento – no mais secreto e justo dos planos sacrificiais – e o mais alegre, num mundo onde em tão violentas crostas e cheiros todos parecem ser igualmente bons, muitas das vezes anjos – ou todos terem as suas razões – todos menos esse mercenário que explora os trabalhadores mexicanos e que arranca do bom Kilvinski a mais enraivecida das justiças. Justiça, que será outra dos centros e demandas, precisamente, sacrificiais.

Faz sentido que a dupla Irwin Winkler e Robert Chartoff tenha pegado no projeto e o tenha acarinhado tanto como acarinharia os contos caprianos da saga Rocky ou outras produções com Robert De Niro em deslize, parecendo ser coisas destas em ligação a paraísos perdidos o que realmente lhes interessa. Como as afeições alvas de Frank Borzage ou os miminhos das irmãs Gish nos filmes de Griffith, como Pat Garrett & Billy the Kid (Sam Peckinpah, 1973), Espantalho (Scarecrow, Jerry Schatzberg, 1973) ou Ed Wood (Tim Burton, 1994) para todo esse amador genial, Richard Fleischer cria, na aparência do gênero policial cinematográfico com o qual Kilvinski goza a certa altura para efeitos de realismo e verdade, um grande ciclo que vai do nascimento e aprimoramento ao fim, deixando entrever nas bordas os eternos retornos e mais uma vez os princípios dos fins. É assim que quando um verde agente diz aos experientes que apenas quer fazer o bem, só obtém destes silêncio, e medo, e muita estupefação de quem reconhece tais traços e crenças e já possivelmente o destino. Numa cena que corta e monta para outros trabalhos, os do casal com Roy que ainda não sabe controlar esse tipo de amor. Como Kilvinski, homens sempre à deriva num mar turvo que lhes promete a terra firme, mar de onde não poderão sair pois só nele se espraiam realmente.

Um veterano que recolhe as prostitutas da rua e as protege, oferecendo-lhes uísque e leite e tratando-as como rainhas, que se delicia no que elas têm de genuíno e de júbilo em comparação com as aparências do bem e do “normal”, ficando muitas saudades de ambas as partes, tem obrigatoriamente, na podridão circundante que teima em velar o brilho do mundo, de ser castrado. Que o seu discípulo lhe siga os passos mesmo que o contradiga perto da hora negra por ter descoberto outro tipo de ilhas, são as linhas e os caminhos da tragédia que este filme é. Tragédia que Fleischer tece sem exaltações mas como sempre muito naturalmente, muito humanamente. Não imita nada, não copia ninguém, não vai buscar a cinematografias alheias ou a fatos à medida de outras artes ou sociologias, mas observa, toma o pulso, segue, tenta perceber ou aceita o que assim tem de ser. Kilvinski nunca pôde dizer ao seu “filho” que parasse aquela rotina estupefaciente e voltasse para o lar, mesmo quando esse tocou nas matérias do outro mundo; assim como voltou ao antigo local de trabalho depois do retiro oficial, à sua única família, sem nada para fazer, como uma criança que exulta e suplica por brincar com os outros garotos. Essa suspensão, esse calamento. E é este o movimento capital destes centuriões modernos e de todos os que acreditam numa coisa em algum tempo e lugar, no que quer que seja, na sua arte, até ao fundo, sem freios – a solidão, a saudade, que afinal é universal. Faltando o tudo a que se agarrou, não se tendo as boias ou as margens alternativas, morre-se facilmente. É assim, sem efeitos ou enfeites. Secamente. Ao osso. O olhar vazio, a tal moral.




NO MUNDO DE 2020 (Soylent Green, 1973)


Nova York, 2022. É o que nos informa a legenda de No mundo de 2020, mas o que ela quer situar e mostrar verdadeiramente é o fim dos fins de uns inquilinos que passaram algures numa Via-Láctea e não souberam o que fazer, o novo do novo que para aí remete, o inaceitável. Por isso, mais perto de um Robert Bresson ou de um John Carpenter – a luz que se fecha e mais evapora a cada segundo passado a pacto com a unificação a toda a força e violência do estilhaço e do fragmento que corrói – do que de visionarismos ou criatividade da ficção dita cientifica ou da antecipação da humanidade e do high tech, essa que normalmente limpa os prêmios de efeitos especiais e cataloga de freaks os autores envolvidos. Como chegamos a isto, o mundo era melhor lá para muito atrás, eu estive lá, posso prová-lo, tudo isto são interrogações e tristes afirmativas do mais velho ser que ainda paira e vai resistindo num mundo que mais do que perto do colapso está insuportavelmente possuído pela mais incrustada fealdade. Talvez por isso se chame Sol, e vá dando uns toques latinos para mais disso se recordar, e tenha sido interpretado por Edward G. Robinson, também no último papel da sua espantosa e combativa carreira. Porque ali ele é o único jovem ainda, com sangue na veia e sede de saber e comer bem comido. E é o que vai passando ao Thorn de Charlton Heston: amor, conhecimento, beleza, o sabor antes de todo o pré-fabricado, plástico, de todas as correntes de degustação asséptica, de limpeza corporal e moral e sexual. Vendo agora, estamos de fato muito perto. Valha Deus aos macrobióticos e aos saudáveis sem carne...

Uma simples maçã que parece reluzir fora do seu esconderijo e exterminação, o espanto por um bife clandestino e com osso suculento há muito apagado do mapa, saladinha verde na proporção contrária aos raios queimados da panela de pressão que derrete as ruas, um refogado que envergonha as barrinhas que se tornaram único fruto, meia garrafa de uísque do divino gamada ao demo, uma colher rapada de morango desconhecido... Um jantar a dois entre o velho e o seu pupilo já maduro que olha para o que já foi habitual e banal e ali é exotismo histórico... Solenidade e ritual só a ver com o arroz malandrinho e os jaquinzinhos que João César Monteiro sacralizava e convertia na mais alta forma de sagrado nos seus sagrados banquetes. Música erudita também já esquartejada pela eletrônica e muitos sorrisos matriciais e sibilinos para um ato perfeitamente proibido, o de comer bem do que a terra oferece, a animalidade ou bestialidade orgulhosa da sua origem. O embalo e o instante perfeito ameaçados pelo fora e pelo bem geral que tudo calcou. Bem fundo naquela casa de madeira partilhada e forrada a material alienígena, livros, papel, material de escrita manual. Obviamente um último reduto a abater. Numa hipotética atualização realizada por um vencido da vida que continua a socar como a beber, trocava-se a película pelo vídeo e pelos DCPs vigentes e era o mesmo efeito? Como é que no tempo da Maria Cachucha se aguentavam riscos na tela gigante demais, saltos daquelas coisas chamadas bobinas, quebras abruptas e mesmo a possibilidade de incêndio? Eram felizes aqueles seres?

Até a morte de Robinson, talvez a mais fabulosa e transcendentalmente terrestre dos filmes de Richard Fleischer, grande cineasta da morte, da arte de morrer e do percurso derradeiro, onde todos os pixels esborratados da aparelhagem virtual que comeu peitos e coxas surgem devorados pelo que no auge da grande arte e do autorismo seria só cartão-postal. Naquela redoma horrível e íntima o asseadinho vai ser vergado pelo onirismo; campos em flores e beleza etérea de pacotilha são o aquecimento e a salvação possível, ao ritmo da suavidade melodiosa que hoje toca nos hipermercados. Momento em que o sensível e o crescendo boquiaberto rima com a abertura fotográfica de imagens congeladas da Magnum, que vão desde os sépias familiares da nossa descendência e contentamento, de Ford (John ou Henry) até Faulkner ou similitudes confluindo em fumos e lixo, fogo e máscaras do gás e do medo. Da sombra e do cinzel ao Photoshop. Arco temporal e desembocar lógico para os cadáveres que nos darão de comer, para os fornicamentos sem centelha, escravidão sem nome nem consciência. Se nos momentos de O homem que odiava as mulheres a O estrangulador de Rillington Place a cabeça doente propagava ao meio, aqui, valha-nos Maria Santíssima, nem os mortos podem aspirar ao eterno descanso ou a outra ascensão qualquer. Tudo a mata-cavalos e no speed do áudio e do visual conforme? Precisamente não e tudo sequencialmente agrupado, puzzle em visão conjunta, para apreciarmos limpidamente e em cristalina filigrana o êxito da expertise. E queima, queima, arde, como os mil graus que na rua se adivinham. E só faz bem, se esta genial obra ainda puder ser vista, será o melhor dos nossos remédios e das nossas rezas.






MANDINGO – O FRUTO DA VINGANÇA (Mandingo, 1974-1975)


“Alguns me acusam de demasiado parcial e, em tempos, na Cinemateca, houve quase uma tentativa de revolta de massas por eu ter incluído Mandingo – O fruto da vingança entre as obras-primas do cinema e defender que é obra, na gesta sulista, a colocar acima de ...E o vento levou (Gone with the Wind, Victor Fleming, 1939).” Não seria preciso João Bénard da Costa para ajudar ao que agora tem de ser uma evidência, principalmente depois do gato por lebre da chicoespertice bem comportadinha com que Tarantino chegou às estatuetas e aos tops of the pops, inconsciência que muitos comeram como o prato frio mais requintado da severa justiça, e o que é certo é que gostava que J.B.C. me ajudasse a disparar. Mandingo – O fruto da vingança é já de 1975, ano de liberdades, e como um amigo meu também me disse, uma das únicas obras sobre a escravatura ligada à sede de superioridade desta raça nossa admissíveis na arte cinematográfica.

A sequência introdutória de aproximação. Há medo, devagarinho como quem entra num castelo de fantasmas e de horrores daquelas feiras geladas como incêndios. A câmera vai baixando, se abaixando, entrando em propriedade perigosa ou manhosa, e a muito custo cai sobre aquela terra onde vamos estar durante longo tempo demais, depois de ultrapassar grades de meter respeito... e fica, fica lá por terras de contendas e de rasgos de humanidade às escuras. Quando sai, o sangue ainda mais verte e amor só a caminho da morte. Tremenda movimentação e tremente plano e conjugação clássica de planos, mas no caminho dessa legibilidade inventada por ali perto, a parceira e tão conflituosa parelha da imagem começa a espicaçar rumo a dialéticas desconhecidas, e vozes que sabemos de quem garantem-nos que delas só guardam o sentimento. O sentimento como patrimônio a priori inalienável.

A constatação da barbárie é imediata, com garotas perfumadas para brancos usurparem e rasgarem de primeira vez, quase bebês que curam reumatismos a lordes, ou maiorais que apalpam e olham o olho do cu dos pretos como se fossem vacas antes de fazerem a oferta da sua glória e imposição. Invoca-se e puxa-se Deus para o seu lado benigno e canceriza-se os subalternos como a pior das raças e o pior do sangue que alguma vez pulsou. Chicotadas, penetrações, lutas de morte, jogos de poder, de conflitos e de demência e dependência sexual, escravatura também sexual próxima dos jogos fetichistas e do castigo, e ainda estamos no campo do eufemismo. E a novidade ou não é que Fleischer, no aparente abandono do pudor e da poderosa sugestão que a sua posta em cena sempre primou, só vai escancarando para tornar tudo ainda mais opaco, dúbio, ambíguo.

Quando os patrões têm medinho, há que renovar as estratégias de ostracização à escumalha. E não os deixam ler, escrever, pensar, viver. Como hoje os patrões da televisão e do estado tão democrático não deixam nas horas que importam vermos as coisas que importam, para não se soltarem personalidades singulares ou a rebelião ser entrevista. Para as contas que importam e a sensação grave ficar perenemente estrangulada na corrente de forças. Mandingo – O fruto da vingança jamais passaria às nove da noite no canal da populaça. Mas o que trama a démarche e a honra do patrão James Mason é como um volte-face dos destinos e das distribuições lá dos altos, porque o seu grão, a sua contribuição, vai começar por se comover com aqueles segundo os quais as suas regras há que calcar ou perfurar. E tudo se volve e revolve entre o que não se explica e o acordado, o tácito e o instinto, o coração e a loucura cega, surda e muda em combate com esse “saber estar”.

Se a tragédia é final e inevitável mesmo que aquele filho bastardo de Mason seja jogada abençoada e demoníaca de um ou uns poderosos em contendas outras (veneno de anjos ou presentes infernais, São João ou Apocalipse), todos os limites do que não se ultrapassa há muito que se transgrediram infinitamente, tudo é porco, e qualquer tipo de alvura seria ali conspurcada. A certa altura esse filho bastardo que terá um filho também bastardo e entrará assim em demente pirulito, diz à sua marionete branca de conveniência que nem para a cama serve, e grita-lhe que não consegue dormir quando está a pensar, o que numa machadada o coloca ao nível de qualquer um daquele reino e de todos os reinos.

O momento falsamente sublime em que Perry King pede em casamento aquela noiva por momentos brilhante é definitivamente desmascarado quando sabemos que o maravilhoso e o verdadeiro em termos de união acontece quando este oferece os brincos à negra da sua perdição. O resto, os resquícios, são os trabalhos ordinários e seculares da farsa do casal decente, e os problemas e guerras conjugais só se dão com a oficiosa esposa clamante de sexo. Essa que se vai tornando bruxa e que se deixa violar pela personagem central do mandingo Mede, colossal bloco de todo o descentramento moral e sexual das personagens em causa. Na cena em que a desgrenhada bruxa se autoconsola de chicotadas na rival que a trai pois é a rainha do seu marido, a distância entre os dois rostos que se espraia e revela pelo enquadramento, só pode ser a distância da nossa mascarada sociedade que dali e de outros massacres traseiros advém. Todo o sentido nessas cortadas expressões, contrastes e iluminação, toda a família universal.

A cópula interdita entre Mede e Blanche, o movimento ascendente com uma luz desnaturada e dessaturada, acontece logo depois de se ouvir o coro pela segunda vez, a terceira passará nos créditos, e de cada vez com mais ardor. Sacudidela catártica e purificadora, e fonte jorrante de mais veneno. Via capital do imparável rol de violência prometida, o amor com amor se paga da fêmea ao macho em cisão, mas também ou sobretudo a mescla, o impuro, a impotência que a bondade tem encontrado para afastar definitivamente o seu contrário, e com isso a constatação da parte negra de cada um à espera de ser despertada do sono eterno. Mesmo que os sorrisos de Perry King à sua empregada tenham valido o mundo e a justificação do nosso andar nisto. E valeram.

Tudo o mais é a incapacidade de se falar ou escrever sobre a loucura ou lucidez que investiu sobre a cria de Mason e o degenerou mas não o fez ou fez igual a ele. Incapacidade do cinema como do realizador em entrar na cabeça e na complexidade terrível das pessoas para as manipular a bel-prazer. Aconteceu como vimos, mas poderia ter acontecido contrariamente, é certo. As certezas ficam para von Triers e Hanekes canônicos, como o racismo primário fica para os críticos que nada viveram e apelidam Hawks e demais de racistas, sem irem pelas formas ou não saberem sequer que os atos e seus responsáveis não são o discurso fílmico, pois neste piso de tudo foi deixado. O discurso de Mandingo – O fruto da vingança, como qualquer coisa que importe, é o de ver até aonde vamos, de nos vermos, sem ter discurso nenhum. Cinematógrafo consiste em mostrar. Mostrar. No final a câmera sai, ou foge, lá para fora como no princípio, que agora é fim. Eterno retorno, girândola e boomerang de ida e volta vitalícia, e contente assim. E só ficam dúvidas, perguntas. Isto de saber do que se trata.




O PRÍNCIPE E O MENDIGO (The Prince and the Pauper/Crossed Swords, 1977)


Assim como assim, não se deve ignorar o encontro de Fleischer com Mark Twain, no qual um príncipe, um mendigo e um andarilho se colocam em causa para colocar tudo o mais em causa. As fundações gerais, as aparências locais, os espelhos literais e o poder tentadoramente ilusório do cinema e da fabulação. Crossed Swords (“espadas cruzadas”), assim foi cortantemente rebatizada a parábola que para tanto mundo serve; e assim a obra do cineasta que foi vigorosamente a todas ainda não se podia abrir ao demencial do que seria Guerreiros de fogo ou o seu Conan – O destruidor, pois a verdadeira demência estava na realidade mais rasteira. Ou, para não perdermos tanto, na realidade edificada pelos sobre-humanos. Não se pode negar as origens, é o que sobrevém na cena da reposição final, logo tudo o que se perdeu da semelhança original. O suposto mendigo a devorar com as manápulas o fino manjar palaciano, as regras de etiqueta a caírem e toda a sua entourage feliz da vida nessa anarquia; o suposto príncipe a espalhar altivez humilde pelas pocilgas, confundindo todos os patamares e todas as lógicas. O andarilho, esse meio fanfarrão meio revolucionário como todos os que valem a pena, a planar por onde o perigo der de si. E apetece recontar a cena mais bela, a mais significativa, para reverberar só um pouquinho mais: no nevoeiro espesso à beira da encantatória lagoa e por entre viçosa verdura encontra-se o rei – ou o mendigo? – e o andarilho, ou um seu gêmeo, e não acontece milagre nenhum. Olham-se na miséria e na fragilidade, e no prodígio da aventura de viver, e acreditam-se. Choram-se, riem-se e abraçam-se. E a natureza com eles. Treme tudo, por dentro. Muda tudo. Sem milagres, mas no auge da comoção comum. Poesia, romantismo, catarse, o turbilhão do cosmos a encontrar-se. E os três a unirem-se num só. O príncipe, o mendigo, o andarilho.





ASHANTI (idem, 1979)


Depois de tanto se ter emaranhado na América profunda da irresolução perpétua como cegado nos estúdios verdadeiros demais que projetaram a Terra Santa ou suado nas vísceras da Nova York contemporânea de centuriões, em toda a terra e em todo o mar sem estilo e abundante de concreto, Richard Fleischer teve de ver e de ouvir mais uma vez o mais antigo dos horrores, o da escravidão humana como ignomínia limite, para ir descobrindo que o rolo da maldade é só um com inomináveis e inumeráveis abismos e labirintos, como se tecido por um mesmo inspirado criador.

Em Ashanti vão dar-se vários encontros improváveis: Michael Caine, o médico inglês experiente, com Beverly Johnson, médica negra com todo o futuro a seus pés, e, para fechar o triângulo, Kabir Bedi, nativo apossado de uma violência vital que é apenas a resultante do amor soterrado. Quando os dois homens tão distantes encaixam para resgatar a mulher caída na desgraça da humilhação sem lei, Caine nada sabe sobre desertos, armas ou faces permanentes do irrecuperável, mas decide sem tréguas dizer aquilo que Fleischer com certeza também acatou como profissão de fé – “I learn”: aprender e apreender na camada negra dos infinitos horizontes do visível e da alma, escutando o apelo longínquo e certo das emoções nuas, acolhendo e afiando o instinto como único instrumento assegurado no caminho, unir a esquadria dos olhos à hecatombe do coração, a inteligência da mente às definições do Scope da câmera.

A imagem e a prática infernal em causa explode e implode por gritos em fora-de-campo nas penetrações impossíveis de figurar, cortando para olhares e expressões que representam como vômito a vingança comum, entre a Bíblia sagrada e o animal sem dono; desmultiplicações nas areias e no vento do acaso dos grupos infra-humanos, para jamais nos esquecermos; lógica, valores de troca e moral desqualificados em terreno de todas as perdições; o esventramento do Deus e da crença. Saturado e austero, o anormal e prodigioso deste filme aberto a todos os reflexos e a todas as massas, é que a concatenação sublimada ou o regresso original se dá para lá dos ditos e escritos – Caine e Beverly começam a amar-se e completam-se imediatamente depois da fenda que ostenta dimensões de Dilúvio e de fim de linha. Aí, nas trevas, só se buscam e só buscam um eterno retorno que funcionará nas águas finais sem metáfora, plena fusão possibilitada e dinamitada por esse Kabir que no momento agudo não matou quem o tinha morto para, como quem semeia algo, poder assegurar todas as manhãs do mundo. Caine assumiu o inferno de Kabir e limpou-se depois por todos os vivos – testemunho até hoje assegurado, no começo do cosmos, ponto matemático do sentido. Ashanti perpassa pelo fogo mais intenso e pelo gelo imperdoável, aponta-nos as culpas às tripas e escancara-nos a transcendência. Sem apelo e com todo o assombro. Entre a sede derradeira e o renascimento em águas claras. Da negação e do milagre.





SEDE DE TRIUNFO (Tough Enough, 1983)


Longe das empreitadas de folgo épico que Richard Fleischer sempre tratou com a máxima fidelidade, Sede de triunfo mantém essa mesma entrega numa escala de quarto intimista que pelo trabalho e pela coragem almeja o universal e a fusão no todo. Realizado em 1983, na parte final da carreira, Sede de triunfo apropria-se de todas as convenções e ar do tempo da época para chegar a algo único que tem obviamente a ver com os seus protagonistas, tipos guiados pela paixão, assim mesmo constantemente perto da irresponsabilidade e da loucura. Veja-se: uma progressão colada a um jovem Dennis Quaid que esquece temporariamente a música da sua natureza para fazer do ganha-pão a porrada selvagem e ao mesmo tempo mais limpa do que as oficiosas; o seu arco onde giram a bondade não dita e o humanismo ferido pelo tanto experimento de Warren Oates, o fulgor sempre juvenil e o companheirismo de Pam Grier, enfim, o pai Wilford Brimley que é o que resta de tantos cowboys deslocados. E mais ainda: tanto se pode aproximar o esquema narrativo ao Kickboxer: o desafio do dragão (Kickboxer, Mark DiSalle e David Worth, 1989) com Jean-Claude Van Damme ou ao Karatê Kid: a hora da verdade (The Karate Kid, John G. Avildsen, 1984), do qual é contemporâneo, como a um Música e lágrimas (The Glenn Miller Story, Anthony Mann, 1953-1954) fatalmente mais conspurcado, para se chegar ao ponto e conclusão fundamental: Fleischer não se interessou pelos subgêneros, tipo exploitation ou blaxploitation, o que o seguraria nos terrenos mais confortáveis dos códigos e das texturas familiares, como também não se aproveitou da plástica pronta a consumir do beco social americano e da sua contraposição com o “grande sonho”; mas antes, e como toda a sua vida, foi menos um analista frio e totalmente (apaixonadamente e sem paninhos quentes) um parceiro leal dos obstinados que filma, e que não sabem que o são por isso ser inerente a eles. Topógrafo das sombras sem marca de autor e dos meios do caminho comum, do plano à altura dos sentimentos e da circunstância, da realidade transparente e complexa. O que ainda fica do classicismo é a ressaca dura – quando se tenta encontrar o que tanto se conheceu, e encontra-se apenas transformação e desistência inescapável – nas ambições e futuro, desejos e crença, tanto como arquitetura e ritmo, sobejando uma certa desilusão que é combatida pelo caso excepcional da tal loucura ou lucidez de Dennis Quaid.

Anomalia e moral forçadas pelo patético ou até pela inverosimilhança do desenlace heroico. Se o happy end e até um certo clichê fílmico e espetacular engordam a secura silenciosa do resto, é mesmo porque muitas vezes é preciso forçar a barra para fazer ver certas coisas (que se tendem a abafar). Que aqui são, sucintamente: família, amor, compromisso e destino – todo o legado firme, toda a composição equilibrada, da transparência aos estilhaços. Sede de triunfo está do lado de Sylvester Stallone/John G. Avildsen (Rocky: um lutador [Rocky, 1976]), resistências fordianas (quase toda a terra e os homens dos últimos vinte mil anos) que sentiram em cheio e com estrondo a troca do instinto e do puramente falho porque humano pela inteligência dos números e dos dados. De onde deriva e persistência passaram para a encenação e para a vida. Na tábua de todas as coisas.






GUERREIROS DE FOGO (Red Sonja, 1985)


Guerreiros de fogo nasce a ferro e fogo em 1985, penúltima longa-metragem de Fleischer e situada entre o já fabuloso Conan – O destruidor, com o invencível Arnold Schwarzenegger, e o quase abafado, sabe-se lá por que cargas d’água, O mistério de quatro milhões de dólares. Produzido por um Dino De Laurentiis fiel a si mesmo, dono de todas as possibilidades megalômanas e refinadas varinhas de condão, com a mão dada por Ennio Morricone na orquestração, é qualquer coisa muito atrás ou muito à frente, onde a cronologia e fidelidades de catálogos pedagógicos não interessam por aí além. Vamos parar literalmente em mundos outros e em arrepios outros. Atente-se à lenda que funciona em cortina, que vocifera vinganças, fala em mundos selvagens e tempos de violência passados, remotos ou futuros, em lendas e em cabelos vermelhos incendiários de guerreiras que saberemos eternas como Arnold, que enfim, nos prepara para guerras.

No centro de tudo, para além de Red Sonja e Kalidor feitos colossos da espécie, está um talismã que de tanto uso e abuso tem de ser destruído antes de ele mesmo destruir a terra toda. E uma outra princesa má, mais falsa do que o principezinho sem trono com os mesmos tiques dos principezinhos do Mark Twain de O príncipe e o mendigo, que a pretende conservar para conquistar tudo o que existe e não existe, para ser a Senhora. Sede de poder e de posse que se prepara para levar à ruína um universo tão brilhante, febril, estonteantemente mágico e de condição tão maravilhosa e logo horrenda e insuportavelmente feérica, mil vezes mais do que todos os “Senhores dos Anéis” juntos, tornando tal atitude ainda mais incompreensível do que quando tudo era nivelado na sociedade do “tasse bem”.

Feito o roubo pela histérica próxima rainha, queimados os belos exemplares dessa armada formosa que acaba por gemer no fogo, o super-homem e a super-mulher encontram-se, salvam-se, desencontram-se, atraem-se, e vão juntos e com mais ficção em torno até as bandas da noite eterna, que é o nome da arena da batalha final e esconderijo da joia e não arremedo poético. Na fábula e na magia caímos e pela magia e fogosidade das linhas que rasgam o desmedido Scope, pelas transparências e ofuscação das superfícies, vales, montanhas, neve e fogo, luta de contrários e de poesias prometidas, a Sonja ardente diz que não quer homens mas antes prefere o individualismo, opção tentada ou marcas do passado. Mas vai ser neste cosmo do irreal mais do que real, um todo visceral e aglutinador como lava, que se vai ficar novamente a saber do que trata o toque de dois corpos, a troca de fluxos como de imperscrutável ou de alma, o sexo que parece desaparecer quanto mais para a frente se anda. Sequência perfeita e mais pedregosa ainda do que a d’O bandido de 1956.

O momento decisivo pode ser a salvação global ou a luta entre os dois que em situação normal, ou anormal, não caberiam no mesmo espaço nem partilhariam o mesmo tempo, o mesmo leito. Luta que é todo um manancial erótico em cenografia concordante. Na espadeirada e nas voltas, mortais, saltos, curvas e contracurvas, todas as posições e encaixes do par são testados e praticados, até a exaustão e momentâneo repouso, com esforço final e repetição incluída. Entram-se, saem-se, a arma vai ficando cada vez mais pontiaguda, convidada, resplandecente. Perpetram, penetram, rasgam. Ousadas investidas, furiosos balanços, resvalares. Coreografia orgástica que advém obviamente de Josef von Sternberg, passa por um Vittorio Cottafavi e explode aqui. E para não entrar em delírios lamentáveis juro que não me vou pronunciar sobre aqueles ecrãs adivinhadores, oráculos ou cabines expiatórias, porque outra vez não faço a mínima ideia se estamos nos campos das feitiçarias ou já do pós-plasma. Ecrãs dentro de ecrãs e toda a semiótica a reboque? A academia que se ocupe disso que o outro lado é bem melhor.

Quando o talismã verde cai ao fogo e com ele todas as metáforas do mal e da sua perdurabilidade, se salvam crianças e os Céus continuam a soltar os seus adventos e a tocarem as suas trombetas, se a pincelada que os envolve tanto é William Turner ruivo e dourado como apocalíptico Rembrandt como a Bíblia Sagrada, se parece que a marcha da juventude e do saber pode continuar a desbravar caminhos e ousadias, a moldura final, esse plano mais médio ou menos médio sem linguagem em que Sonja e Kalidor se agridem para se beijarem e sorrirem é talvez a chegada e fulcro de tanto caminhar e, acima de tudo, de tamanho cinzelamento pelo planeta e pelos gêneros, cinema e vida. A luta para chegar ao amor e todo o vice-versa reservado, sem resolução. Fleischer foi aos abismos e aos seus confins, do cinema e da espécie, e voltou, para nos dar testemunho e fazer ver, acreditar. Cineasta do sagrado que acredita no que filma e sabe que todas as coisas têm razão de ser. Assim as correspondências entre autêntico e escavado, vacilante, aparência, real. E que faz tudo parte da mesma experiência. Coisa total cada vez mais perdida nos silogismos e na teoria. Transfiguração, prática, superação, paixão.



 

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