MANDINGO – O FRUTO DA VINGANÇA
por João Bénard da Costa





(Mandingo). 1974-1975. Paramount Pictures (127 minutos). Produção: Dino De Laurentiis para a Dino De Laurentiis Company. Produção executiva: Ralph Serpe. Roteiro: Norman Wexler, baseado na novela de Kyle Onstott, por sua vez baseada na peça de Jack Kirkland. Fotografia: Richard H. Kline (Technicolor). Música: Maurice Jarre. Cenografia: Boris Leven (p.d.), John Austin (s.d.). Montagem: Frank Bracht. Elenco: James Mason (Warren Maxwell), Susan George (Blanche Maxwell), Perry King (Hammond Maxwell), Richard Ward (Agamemnon), Brenda Sykes (Ellen), Ken Norton (Mede), Lillian Hayman (Lucrezia Borgia), Roy Poole (Doc Redfield), Ji-Tu Cumbuka (Cicero), Paul Benedict (Brownlee), Ben Masters (Charles), Ray Spruell (Wallace), Louis Turenne (De Veve), Duane Allen (Topaz), Earl Maynard (Babouin), Beatrice Winde (Lucy), Debbie Morgan (Dite), Irene Tedrow (Sra. Redfield), Reda Wyatt (Big Pearl), Simone McQueen (madame Caroline), Evelyn Hendrickson (Beatrix), Stanley Reyes (major Woodford), John Barber (Le Toscan), Durwyn Robinson (Meg), Kerwin Robinson (Alph), Deborah Ann Young (tensa), Debra Blackwell (loira), Kuumba (mãe negra), Stocker Fontelieu (Wilson).


Como os espectadores da Cinemateca bem sabem, decorre na Cinemateca, em junho e julho, um ciclo de “Filmes infames”. Mandingo – O fruto da vingança não faz parte dessa seleção, pois está incluído na retrospectiva Fleischer. Mas bem o podia estar, pois se há filme a que tal designação se aplica – no sentido que lhe demos e o “dépliant” sintetiza – é precisamente Mandingo – O fruto da vingança, ilustração exemplar do que queremos dar a ver nesse ciclo.

Três vezes pode ser chamado “infame”: porque é um dos filmes que abordou o racismo com mais crueza e o associou explicitamente ao sexo recalcado e aos tabus do sexo; porque foi um dos maiores “flops” da história do cinema e da carreira de Fleischer; e porque a grande maioria da crítica o zurziu implacavelmente, desde que a célebre Pauline Kael o chamou “a swacked paranoid fantasy”.

Exemplos dessa execração são, nomeadamente, a nota do famoso “movie guide” de Maltin que não só o classifica como “Bomb” (o que para Maltin quer dizer “abaixo de cão”) como lhe chama “trashy potboiler will appeal only to the s & m crowd”, ou a “folha” da Cinemateca de 26 de maio de 1995, escrita aquando da única passagem de Mandingo – O fruto da vingança na sala Dr. Félix Ribeiro, que o considera “destacado representante do nadir cinematográfico”, obra de “absoluta platitude”, confrangedora pela “total ausência de um trabalho de realização cinematográfica”, “aterrador exemplo do modo sub-reptício como a linguagem da televisão contaminou a do cinema”. Esses são apenas alguns dos “mimos” que a Cinemateca dedicou a um filme nesse ano paradoxalmente programado como uma das “120 chaves para a história do cinema”. A acreditar nessas críticas, e em dezenas de outras, não haverá “chave” mais enferrujada e que menos portas abrisse.

Quando o filme se estreou em Portugal (em 1976) ouvi dizer tais coisas que me guardei de o ver. Mas, em 1990, andava eu pela Finlândia e pelo festival do “Midnight Sun”, o historiador e crítico Peter von Bagh, diretor desse festival, e que o público da Cinemateca bem conhece, das suas frequentes visitas a esta casa, jurou-me que, muito pelo contrário, Mandingo – O fruto da vingança era uma obra-prima e que eu tinha que o ver. Confio no gosto dele e fui. Não fui vencido, porque até aí só emprenhara de ouvido, mas fiquei totalmente convencido. Por isso o escolhi em 1995 para as tais “120 chaves”. Tais coisas me voltaram a dizer que me cheguei a pôr em dúvida. Teria sido vítima do “terrorismo” de Peter von Bagh? O muito vodka que se bebe na Finlândia, ter-me-ia toldado a tal ponto que vi bugalhos onde só havia alhos? Revi o filme duas vezes e de cada vez gostei mais. Agora, que já levo quatro visões, não me importo se me disserem que eu faço parte dos “s & m crowd” (já me chamaram coisas piores). Continuo a defender apaixonadamente este filme singularíssimo, que, como “infame” que é não deixa ninguém em meias-tintas: ou 8 ou 80. Por mim, 80.

Verdade seja dita que Peter von Bagh e eu não somos os únicos “loucos”. Quem consultar os dois calhamaços da conhecida obra de Bertrand Tavernier e Jean-Pierre Coursodon, 50 ans de cinéma américain, lerá que os autores consideram Mandingo – O fruto da vingança, “film méconnu et très incompris”, como uma das obras maiores de Fleischer, sublinhando a sua perversão e a sua atmosfera como momento único do cinema americano, graças a “um dinamismo, uma amplitude de movimentos de câmera, uma força visual que o torna dificilmente esquecível”.

Coisa de franceses quando lhes dá para o delírio? Recordo apenas que o crítico britânico Robin Wood, o autor de obras clássicas sobre Hitchcock, Hawks, Bergman, tantas vezes citado nestas “folhas”, o cita duas vezes na lista que elaborou em 1979 para o volume da Cinemateca Real da Bélgica sobre os melhores e mais incompreendidos filmes do cinema americano. Cita-o na lista dos “maiores” e cita-o na lista dos “mais incompreendidos”, numa dupla significativa. Deve-se-lhe, aliás, a melhor análise que conheço sobre esta obra, publicada no volume Sexual Politics and Narrative Film: Hollywood and Beyond (1998) num capítulo intitulado “Mandingo”: The Vindication of an Abused Masterpiece. Pudesse eu transcrevê-lo e traduzi-lo e o espectador ficaria muito mais bem servido. Assim, resta-me aconselhar defensores e detratores a consultar essa obra no nosso Centro de Documentação.

Estou a abusar de magister dixit?

Eventualmente. Mas como um dia escreveu Agustina, há terrenos onde não convém avançar sem trazer um concerto de vozes atrás de nós, e também dei voz aos detratores. Passo, finalmente, ao filme.

Mandingo – O fruto da vingança baseia-se num romance de Kyle Onstott que foi um best-seller nos idos de 1960. O autor era um homem de cerca de 70 anos, que nascera nos estados do Sul, 25 anos depois da Guerra Civil. Conhecia bem a realidade e a ideia chave do seu livro era a de que os brancos, ao tempo da escravatura, não consideravam os negros como seres humanos. Quer os tratassem bem, quer os tratassem mal, tratavam-nos como animais, tal como há pessoas indiferentes ou cruéis com bichos e outras que cuidam bem deles.

O livro era violentíssimo e tinha sexo para dar e vender. Não era pois o gênero de obra que Hollywood pudesse ter adaptado, em tempos de códigos ou de blaxploitation, ou seja, até os anos 1960.

Passados eles, um produtor como Dino De Laurentiis, não propriamente um exemplo de gosto nem de defensor de boas causas, achou, por causa do sexo e da violência, que havia ali um filão a explorar. Comprou os direitos e concebeu um filme em várias partes. Convidou para o dirigir Richard Fleischer. Fleischer (ver memórias e entrevista na Movie n.º 22, primavera de 1976) torceu muito o nariz. “Tudo o que era mau no romance, estava no script. Não me interessou nada.” Laurentiis foi teimoso. Pediu novo script a Norman Wexler e voltou à carga. Fleischer continuava a dizer não, mas, a certa altura, deu-se conta de que havia ali “qualquer coisa” que valia a pena ser trabalhada: a relação entre a opressão racial e a opressão sexual. Negros e brancos estavam separados por um fosso cultural, semelhante ao fosso cultural que havia (e há...) entre homens e mulheres em relação ao sexo. Tal como determinados comportamentos sexuais eram impensáveis em mulheres brancas e “sérias” (“sure behave strangely for a white lady”, diz Hammond de Blanche, a mulher), qualquer compreensão racial era impensável para um homem branco. Aos que o censuraram por ter retratado todos os brancos como filhos da mãe, Fleischer respondeu: “Não é verdade. Eles não eram deliberadamente cruéis ou brutais. Agiam da maneira que lhes parecia a mais normal. Se você matar uma mosca numa sala, ninguém mexe uma palha, mas se estiver presente um hindu, este fica chocadíssimo. Não retratei os brancos como vilões horripilantes. Para aqueles homens, era a chicote que se tratavam os escravos. Descrevi os brancos como eram naquele tempo. Nem piores nem melhores”.

Com esta convicção, Fleischer fez um filme de 3h40, que depois teve que cortar para 2h04. Sempre achou que a versão longa era muito melhor, mas também sempre achou que a versão existente mantinha a sua ideia inicial: “a gothic horror story” com uma forte tonalidade social. Diz perceber que muita gente ficasse horrorizada com o filme, mas só protestou indignadamente contra quem disse que o filme estava mal feito. Aí, defendeu-o sempre como uma das suas obras maiores.

Por mim, basta-me a sequência inicial para ter a certeza da qualidade do filme. Aquelas suaves panorâmicas em torno da frondosa árvore e depois aquela panorâmica combinada com travelling, que se imobiliza diante de uma das grandes mansões do Sul, como as conhecemos desde ...E o vento levou (Gone with the Wind, Victor Fleming, 1939), de que este filme é uma espécie de avesso. Mas se há sul sul e casa grande casa grande, qualquer coisa de insólito imediatamente é captável, enquanto ouvimos Muddy Waters cantar o espiritual: “I was born in this time / to never be free.” A casa, apesar da aparência, é uma casa decrépita, o contrário da casa dos O’Hara no filme de Selznick. É uma casa “corrupta”.

Esse sentimento avoluma-se nas sequências iniciais, quando vemos interiores quase desertos, sem móveis de luxo ou sem tapeçarias. Ali, começou ou está a começar uma ruína, numa casa sem presenças femininas (a não ser a da escrava que dá pelo estranho nome de Lucrécia Bórgia) e onde pai e filho são aleijados. E o pai obriga o escravo chamado Agamemnon a dizer que os negros não têm alma, enquanto decorrem, numa profundidade de campo magistralmente sublinhada, aqueles jantares de homens abanados por enormes leques movidos por miúdos negros. O pai (James Mason) acredita que a cura para o seu reumatismo consiste em pisar com os pés um jovem negro, enquanto o filho se inicia sexualmente com adolescentes negras que existem para satisfazer os caprichos sexuais dos seus senhores. Mas tal como há prostitutas que fazem tudo menos deixar-se beijar na boca, o beijo na boca também não é coisa que um branco dê a uma negra, mesmo na maior promiscuidade sexual. Nas sequências lapidares dessa iniciação sexual, introduz-se, porém, a primeira ruptura. Hammond, apesar dos seus preconceitos, beija Ellen na boca, o que nos é mostrado em grandes planos quase tácteis, porque ele sabe que esses são gestos proibidos. Tão proibidos quanto Ellen olhá-lo nos olhos. Quando se dá a primeira troca de olhares e quando se dão os primeiros beijos na boca, a tragédia começa a desenhar-se, para se afirmar brutalmente ao longo do filme.

Robin Wood distingue nele – e a meu ver bem – três formas genéricas que presidem a este insólito grande filme:

1. Melodrama gótico: Os ingredientes fundamentais são: a “casa terrível”, com a sua história passada sempre oculta, as mulheres presas e perseguidas e o sombrio, poderoso e sinistro patriarca.

2. A tragédia shakespeareana: O herói com uma trágica marca; o tema da vingança, as emoções extremas, a conclusão excessiva e apocalíptica.

3. A tragédia grega: A transmissão da culpa tem que ser expiada. A “maldição” só pode ser esconjurada se se der a catarse da catástrofe.

Assim, desde a sequência entre o horrível Charles (futuro cunhado do protagonista) e Hammond com as duas miúdas negras, o sexo vem a primeiro plano, como lugar de danação.

Mandingo – O fruto da vingança é não só o primeiro filme americano a mostrar um nu integral e frontal masculino, como a componente sexual acompanha os leilões dos escravos, que, desde o princípio, nos são mostrados em todo o seu horror. O comprador que examina o ânus de um dos negros; a matrona que mete as mãos nas calças de outro para lhe medir as partes.

Mas, para que a maldição seja completa, Warren manda o filho em viagem com um duplo fito: comprar o escravo mais possante que possa encontrar e encontrar mulher com quem possa casar e assegurar a posteridade. Vai assim entrar no filme Mede (abreviatura de “Ganimedes”) e Blanche, uma das personagens mais singulares do filme. Da futura junção dos dois resultará o fecho da abóbada da tragédia, com a colossal sequência da noite de núpcias, de chicoteamento de Ellen por Blanche (provocando o desmancho quando a atira pelas escadas abaixo) e da sedução de Mede por Blanche, quando esta literalmente viola o escravo para se vingar da indiferença do marido, que jamais lhe perdoou o fato dela não ser virgem quando casou (violada aos 13 anos, pelo irmão, o que também introduz no filme o tema do incesto).

Entre as paroxísticas sequências de sexo (as orgias no bordel), dão-se as paroxísticas sequências de violência com os combatentes entre os escravos, combates até a morte, para gáudio dos seus senhores.

E o espaço e o tempo estão-se-me a acabar sem ter tempo sequer para falar na procissão dos escravos, quando Hammond cede aos rogos de Ellen e salva o miúdo que ia ser vendido; na sequência do enforcamento de Cicero de violência inaudita; ou na sequência dos rubis, que determinam a vingança de Blanche.

Mas termino falando de uma modificação capital em relação ao livro. Ao contrário do que nele sucede, e do que o espectador espera que suceda no filme, Agamemnon, no final, não mata Hammond, mas Maxwell. Ironizou-se, dizendo que essa solução permitiu a sequência que de fato se fez (Drum, Steve Carver, 1976). Mas a modificação é muito mais funda. Porque o que Agamemnon percebeu ou intuiu é que no pai estava a culpa originária e original, de que o filho fora apenas o corrompido produto.

E este fica, no plano, face a uma tripla morte e a uma tripla solidão: matou a mulher, matou o escravo que fora tanto seu rival como seu alter-ego, e mataram-lhe o pai.

Naquela casa de tortura com água fervente e de segredos de cama tão grandes como os segredos de raça ou como os segredos de morte, só Hammond resta para a tortura final.

Filme de excessos, filme de perversões, Mandingo – O fruto da vingança tinha que o ser para ir até o limite do que de mais excessivo e mais perverso homens fizeram a outros homens e outras mulheres, no mundo abissal das diferenças de sexo e das diferenças de cor. Com a sua cor velada e com a magistral fusão do racismo e do sexismo no que têm de mais abissal, Richard Fleischer deu-nos um dos filmes mais extremistas que jamais se fizeram. Um dos raros, como bem notou Robin Wood, a dissolver liminar e seminalmente os grandes temas da tragédia clássica com a trágica vinculação entre os negros e o mito do “Great White Male” horridamente retratados nas interpretações tórridas de James Mason, Perry King e Susan George.


(“Redescobrir Richard Fleischer”, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 1 a 4 de junho de 2007)

 

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