RICHARD FLEISCHER E O CINEMA NOIR DE SÉRIE B (CRIME DA ESTRADA e IMPÉRIO DO TERROR)
por Antonio José Navarro



CRIME DA ESTRADA (Bodyguard). 1948. R.K.O. (62 minutos). Produção: Sid Rogell. Roteiro: Fred Niblo Jr. e Harry Essex, baseado em argumento de George W. George e Robert Altman. Fotografia: Robert De Grasse (P/B). Música: Paul Sawtell. Cenografia: Albert S. D’Agostino, Feild Gray (a.d.), Darrell Silvera, James Altwies (s.d.). Montagem: Elmo Williams. Elenco: Lawrence Tierney (Mike Carter), Priscilla Lane (Doris Brewster), Phillip Reed (Freddie Dysen), June Clayworth (Connie Fenton), Elisabeth Risdon (Gene Dysen), Steve Brodie (Fenton), Frank Fenton (tenente Borden), Charles Cane (capitão Wayne).


IMPÉRIO DO TERROR (Armored Car Robbery). 1950. R.K.O. (67 minutos). Produção: Herman Schlom. Roteiro: Earl Felton e Gerald Drayson Adams, baseado em argumento de Robert Angus e Robert Leeds. Fotografia: Guy Roe (P/B). Música: Constantin Bakaleinikoff, Paul Sawtell (não creditado), Roy Webb (não creditado). Cenografia: Albert S. D’Agostino, Ralph Berger (a.d.), Darrell Silvera, James Altwies (s.d.). Montagem: Desmond Marquette. Elenco: Charles McGraw (tenente Jim Cordell), Adele Jergens (Yvonne LeDoux), William Talman (Dave Purvis), Douglas Fowley (Benny McBride), Steve Brodie (Al Mapes), Don McGuire (detetive Danny Ryan), Don Haggerty (detetive Cuyler), James Flavin (tenente Phillips), Gene Evans (William “Ace” Foster).

Manga Films continua sua recuperação louvável em DVD dos filmes policiais dirigidos nos anos quarenta por Richard Fleischer, os quais já começavam a delinear os méritos artísticos deste realizador que, décadas mais tarde, viria a ser o autor de títulos tão extraordinários como Vikings, os conquistadores, O homem que odiava as mulheres e Mandingo – O fruto da vingança.

1. Talvez seja muito simples reduzir os filmes noir rodados por Richard Fleischer entre 1948 e 1951 à condição de meros exercícios de aprendizagem. De fato, se faltam ideias mais profundas sobre eles, parte da culpa é atribuível a essa crítica tout court que ainda se sente desconfortável diante de obras como Crime da estrada e Império do terror, as quais não estão em conformidade com seus esquemas mentais ultrapassados. Segundo essa crítica, ou se é um autor – um criador que transforma em cinema sua visão de mundo, o cinema definido como algo que carece de valor se não constitui um ato extremo destinado a especificar essa visão de mundo –, ou se é um artesão – profissional definido unicamente por seu surpreendente domínio técnico na hora de contar ou ilustrar uma história. No entanto, pelo menos no caso de Fleischer, sua condição híbrida sempre foi, ao longo de sua carreira, um sinal de identificação de primeira ordem, tanto para o bem quanto para o mal – cf. O estrangulador de Rillington Place, A morte do chefão.

Desta complexa arquitetura artística emerge, com uma audácia de linguagem incomum, ocasionalmente encoberta por uma sutileza defensiva que evita a imprudência, um estilo que já começa a se delinear em Crime da estrada e Império do terror – assim como em Alma em sombras ou O estrangulador misterioso –, e através do qual, parafraseando José María Latorre, o cineasta estadunidense consegue ser reconhecível por uma peculiaridade visual e uma obsessão (complementar): a tensão dos seus enquadramentos – Fleischer é um dos poucos cineastas “clássicos” que seus filmes através do visor da câmera – e suas constantes reelaborações de questões como a violência e a anormalidade[1]. Isso é muito palpável no inaugural Crime da estrada, especificamente na sequência em que o protagonista, Mike Carter (Lawrence Tierney) – um policial individualista, rebelde e de tiques fascistoides –, enfrenta violentamente o seu despótico superior, o tenente Borden (Frank Fenton): Fleischer amplifica a tensão entre os dois através de uma agressiva aproximação da câmera em seus rostos que termina em um close-up extremo que captura de modo exacerbado seus olhares de ódio... E não menos evidente é a sequência final, durante o combate de Carter com o vilão da situação, Freddie Dysen (Phillip Reed) nas instalações de um depósito de empacotamento de carnes: Fleischer teve o cuidado de inserir previamente um plano detalhe do funcionamento de uma grande serra mecânica, capaz de cortar grandes pedaços de carne sem problemas – evocando, aliás, o fim atroz que encontrou o inspetor de saúde decidido a desmascarar a fraude cometida por Dysen –, para assim provocar-nos uma fervilhante sensação de inquietude enquanto os dois homens lutam no local com extrema dureza – cf. o momento em que o malfeitor arremessa uma corrente cheia de ganchos de açougueiro contra Carter.

2. Expoentes do cinema de série B bien fait, elaborado com convicção e um sentimento criativo organicamente bem modelado, Crime da estrada e Império do terror chamam a atenção, acima de outros produtos similares, pela sua força incomum, derivada da posição de Richard Fleischer dentro dos estúdios R.K.O. Conforme explicou, “(...) eu tive muita sorte porque o chefe desta unidade [de série B], Sid Rogell, um homem muito firme, decidiu tomar-me como seu ‘protegido’. Graças a isto pude assistir às reuniões que tinha em seu escritório para discutir com os roteiristas, preparar os orçamentos etc. Foi ele quem me ensinou a fazer filmes baratos de forma rápida e sem ter que perder, para isso, a qualidade. Ele era um homem duro, rude em ocasiões, mas sem ele eu teria me perdido em Hollywood. Na realidade ele nunca me atribuiu filmes com orçamentos realmente baixos, mas na minha experiência anterior ele sempre me confiou projetos que, na minha opinião, tinham certa qualidade.”[2] Mas há outro elemento importante, já patente em Crime da estrada – e especialmente em Império do terror –, que concretiza mais do que nenhum outro a vontade de estilo do cineasta mesmo naqueles tempos de busca, de experimentação – e de aprendizagem, sim –, só que em torno do funcionamento da indústria hollywoodiana. Um elemento fundamental no momento de definir uma autoria tão evasiva e oscilante como a de Fleischer, e fora de moda para os mais acomodados cérebros da crítica “moderna”. Trata-se desse desejo de transmitir um grau de emoção independente da história, através da mise en scène, do ângulo de câmera escolhido, da relação física entre os atores na tela.

Essa peculiaridade estética é o que dissocia Império do terror de outros filmes similares. A realidade do mundo – através de um tratamento estilístico áspero, repleto de brutais contrastes de sombras, movimentos duplos e implacável ambiguidade moral – se apresenta aos nossos olhos múltipla, espinhosa, em camadas firmemente sobrepostas. O que conta para Fleischer – e para o espectador – é o abissal atrativo de desvelar seus diferentes sentimentos e ambivalentes significações. Do breve fragmento documental do início – onde vemos como uma chamada telefônica é processada dentro do Departamento de Polícia de Los Angeles – saltamos de maneira instantânea ao plano em agudo contre-plongée de Dave Purvis (William Talman) – enquadrado junto ao relógio situado no topo da torre do estádio –, controlando o tempo que leva para os oficiais da lei chegarem ao lugar e, deste modo, aprimorar seus planos de roubo; da fixação neurótica de Purvis “por não deixar qualquer ponta solta” – nunca toma notas, arranca as etiquetas das camisas que veste, leva consigo o tecido onde desenhou os detalhes do assalto; assassina o seu parceiro, “Benny” McBride (Douglas Fowley), porque foi ferido durante o golpe e poderia tornar-se um “problema” se fosse capturado pela polícia –, contemplamos a tremenda violência com a qual o tenente Jim Cordell (Charles McGraw) flagela os bandidos, impulsionado pela vingança mais do que pela justiça – seu parceiro, o tenente Phillips (James Flavin), morreu durante o tiroteio com os assaltantes –; da insensata paixão de “Benny” McBride por sua esposa, a stripper Yvonne LeDoux (Adele Jergens), cuja avareza e amor pelo luxo a levam a aliar-se a Purvis, nos deslocamos à dor da viúva de Phillips – cuja breve e entrecortada conversa com Cordell no hospital é um dos momentos mais violentos, do ponto de vista emocional, de todo o filme... São as nuances do verdadeiro pathos de Império do terror: a luta por levar até limites desumanos a consciência técnica, pragmática, que alimenta o trabalho de ladrões e policiais, enquanto observamos o vazio moral que se abre debaixo dessa consciência como um abismo insondável.

3. Tanto em Crime da estrada como em Império do terror existe uma clara vontade de mudança no film noir, um potente cupio dissolvi do gênero ou, o que é o mesmo, um desejo de desmoronamento das suas convenções, que vão desde essa visão chandleriana (cínica, critica) das classes burguesas/capitalistas norte-americanas até um bárbaro jogo de gato e rato entre vândalos e policiais que brutaliza a todos por igual. Os detetives são violentos e venais, os facínoras são insensíveis e gananciosos e sem qualquer alento romântico, as ruas já não são seguras nem de dia nem de noite, o mundo pode ser um lugar instável, hostil e habitado por pessoas mesquinhas, sádicas, caprichosas ou dementes. Mas não se trata de um impulso pessoal de Fleischer, e sim de uma ação cultural coletiva na qual o realizador sentiu-se plenamente integrado. “Quem sabe quais são as forças na sociedade que instigam essas mudanças? (...)” – declarou o cineasta. “Havia também um enfoque muito mais realista da realização cinematográfica e do tipo de heróis que estávamos acostumados a ver antes (...) não eram simplesmente cavaleiros de armadura brilhante, limpos e sem imperfeições. Eles sentiam outras emoções e tinham outros objetivos. E também parecia haver mais interesse pela parte vulnerável da sociedade, pelos cantos escuros dos becos de bairros populares nos quais estávamos nos embrenhando e explorando, por aquelas avenidas que até então tinham sido realmente mais ou menos evitadas (...) Nos metemos no negócio de fazer histórias mais duras e realistas, com reviravoltas inteligentes no seu roteiro. As coisas não eram nunca como pareciam, sempre [havia] uma surpresa (...) Ele não é um detetive, é um assassino; e ele não é um assassino, é um detetive.”[3] E aí estão Crime da estrada e Império do terror para prová-lo.


Notas:


[1] Richard Fleischer, por José María Latorre. Dirigido por ... n.° 49, 1977, pp. 20-36.

[2] Declarações extraídas do livro El cine negro de la R.K.O. En el corazón de las tinieblas, de Gonzalo M. Pavés. T&B Editores, 2003, p. 90.

[3] Op. cit. 1, pp. 349-350.


(Dirigido por... n.º 358, julho-agosto de 2006, pp. 70-71. Traduzido por Valeska G. Silva)

 

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