HISTÓRIAS SEM HISTÓRIA
por Pablo Garcia Canga



QUANDO OS BRUTOS SE DEFRONTAM (Faccia a faccia). 1967. P.E.A. – Produzioni Europee Associate/Arturo González Producciones Cinematográficas (111 minutos). Produção: Alberto Grimaldi, Arturo González (não creditado). Roteiro: Sergio Donati e Sergio Sollima, baseado em argumento de Sergio Sollima. Fotografia: Rafael Pacheco (Techniscope, Technicolor). Música: Ennio Morricone. Cenografia: Carlo Simi. Montagem: Eugenio Alabiso. Elenco: Gian Maria Volontè (professor Brett Fletcher), Tomas Milian (Solomon “Beauregard” Bennet), William Berger (Charley “Chas” A. Siringo), Jolanda Modio (Maria), Gianni Rizzo (Williams), Carole André (Annie), Lidia Alfonsi (Belle de Winton), Ángel del Pozo (Maximilian de Winton), Aldo Sambrell (Zachary Shawn), Nello Pazzafini (Vance), José Torres (Aaron Chase), Linda Veras (Cathy, amante de Fletcher), Antonio Casas (cidadão líder de Piedra de Fuego), Frank Braña (Jason), Guy Heron (xerife da fazenda de Winton), Rossella D’Aquino (Sandy, empregada do hotel em Purgatory City), Ivan Scratuglia (capanga de Taylor), Francisco Sanz (Rusty Rogers – não creditado).




Por isso, carabelitas,
ouça, se puderes, o meu conselho
Não faça história, pois só
o que está escrito está feito,
feito.
— Chicho Sánchez Ferlosio


História de uma cidade contra a História


Há em Quando os brutos se defrontam um lugar chamado Piedra de Fuego, uma cidade escondida entre montanhas de granito, onde está o que restou do Oeste selvagem, da romântica fronteira, se é que a fronteira alguma vez foi romântica.

Piedra de Fuego é como a ilha de Tortuga nas histórias de piratas, o lugar escondido ao qual retornam os heróis em atividade, o lugar no qual bebem as velhas lendas, um lugar com suas próprias regras que, pelo menos à primeira vista, parece um lugar repleto de pessoas vivas, livres e felizes.

Nunca vi gente mais bela, diz, logo após descobri-la, Brett Fletcher, um velho professor de História.

Um lugar cheio de caçadores sem búfalos, vaqueiros sem vacas, garimpeiros de ouro sem ouro, lhe relatam.

Um lugar habitado por fantasmas, um refúgio para aqueles que se recusam a aceitar o progresso, aqueles que se recusam a aceitar a realidade, um lugar, em suma, como que sonhado por uma criança, um lugar do qual, ao término do filme, não restará nada, nem fantasmas, um lugar arrasado, um lugar que, como se costuma dizer, já é História.

Mas é que Piedra de Fuego, com o seu nome quase pré-histórico, era um lugar muito frágil, era apenas uma ilusão, um lugar que só podia sobreviver permanecendo por baixo do umbral da História.

Sabiam-no bem, fosse por instinto ou por falta de imaginação, os bandidos que ali se refugiaram, bandidos que davam golpes por baixo do umbral da História, golpes que provocavam como retaliação a caça pela cabeça do bandido, não a destruição de todo o seu mundo.

Piedra de Fuego era um lugar fantasma e que necessitava permanecer sendo fantasma para sobreviver, um lugar incapaz de resistir à passagem de um velho professor de História, de alguém disposto, após anos estudando-a e ensinando-a, a fazê-la.

Brett Fletcher descobre Piedra de Fuego com o olhar de admiração de uma criança que leu muitos livros de aventura, viu muitos filmes do Oeste, e que de repente se encontra na realidade com esses mundos que pareciam ficção.

Fletcher, no entanto, não é uma criança, de modo que exagera um pouco essa admiração, finge admirar um velho bandido que ali vive, um fantasma do que foi, Rusty Rogers, e a esse velho acabado inventa uma lenda no mundo exterior, um medo e admiração pelo seu nome.

E, como a reputação de um fora-da-lei não tem melhor medida que a recompensa que por ele se pede, Brett Fletcher inventa um preço pela cabeça do velho Rusty Rogers.

E o velho Rusty Rogers se alegra.

E Brett Fletcher se alegra por alegrar o velho Rusty Rogers.

Mas mais tarde, quando a admiração de Brett Fletcher pela liberdade de Piedra de Fuego se converte em vontade de tirar vantagem ao máximo dessa liberdade, de fazê-la render economicamente o quanto seja possível, com golpes muito mais rentáveis do que os anteriores, então voltamos a ver o velho Rusty Rogers, empurrado por um dos capatazes de Fletcher, que o reprova por sua vadiagem e o manda trabalhar, sem que saibamos muito bem que trabalho pode ser esse, não importa, o que importa é o velho Rusty Rogers estar trabalhando, como toda a cidade tem que trabalhar.

Sem que os fantasmas se dessem conta esse progresso de que se escondiam entrou na cidade e a última vez que vemos Rusty Rogers ele está agonizando com uma bala no ventre, morrendo ao mesmo tempo em que morre a cidade Piedra de Fuego, porque os fantasmas também morrem.


História de dois corações e uma cabeça


No final de Quando os brutos se defrontam há três homens no deserto: Brett Fletcher, “Beauregard” Bennet e Charley A. Siringo.

Esses três homens que já estiveram antes assim, somente eles, sozinhos em uma cabana na montanha.

Desde então, o tempo passou, muitas coisas aconteceram, muitas reviravoltas do destino, e nenhum deles é o que era, e nenhum deles agirá como teria feito antes, porque Quando os brutos se defrontam é principalmente a história de três homens que por terem se conhecido mudam, para o bem e para o mal demonstram que os encontros não são em vão, que alguém pode mudar e pode ser mudado.

O filme parece ser, mais do que tudo, a história do encontro aleatório entre Brett Fletcher e “Beauregard” Bennet, o professor de História do Leste e o bandido do Oeste, duas visões de mundo opostas que vão se acercando.

Se fosse necessário desenhar o esquema do filme poderia ser como uma cruz, duas linhas que se cruzam em um ponto, quando as visões de mundo de Fletcher e Bennet se encontram completamente, e que depois voltam a separar-se, voltam a se tornar cada vez mais diferentes.

Brett Fletcher se educou lendo, “Beauregard” Bennet se educou desembainhando e disparando todos os dias, e Fletcher diz que se ele tivesse gasto esse tempo lendo, se tivesse exercitado o seu cérebro a pensar em vez de sua mão a atirar, a sua vida teria sido diferente.

Pode-se perguntar se Fletcher não se equivoca um pouco acreditando que toda leitura é a leitura dos livros, talvez haja uma outra leitura, a das montanhas, por exemplo, a da cidade do Oeste, a dos sinais de perigo e dos sinais de amizade, sim, “Beauregard” sabe remover uma bala de seu corpo, intuir a estrela de xerife debaixo de um casaco, sentir um estranho que se aproxima pela floresta, acertar qual dos inimigos é o mais perigoso, aprendeu a ler os sinais do mundo em que vive, esses sinais que Brett Fletcher gradualmente também vai aprender a ler.

Não, não é de forma gradual não, Brett Fletcher aprende muito rápido, o velho professor acaba por ser um aluno brilhante, o primeiro da classe.

Aprende as regras e também aprende como aproveitá-las para comandar, aprende a ter o poder e nele tem prazer, como se a violência e o poder não tivessem sido até então algo a que ele havia renunciado, mas algo que lhe tinha sido negado e que agora que lhe é dado não o desagrada tanto.

Então é quando lhe vem à mente essa vontade de fazer a História, adrenalina meio pura depois de um tiroteio, lógica meio pura de velho professor, uma lógica nada pura, na realidade.

Brett aprende com “Beauregard” a atirar.

“Beauregard” aprende com Brett a não disparar, não sempre.

No início do filme “Beauregard” diz a Brett que ele, Brett, é forte “aqui e aqui”, no coração e na cabeça, e repetidas vezes diz aos outros membros do seu bando, “ele tem mais cérebro do que todos nós juntos”, com alguma modéstia de fato, porque Beau também é bastante inteligente, mas conforme o filme avança é possível dizer que Brett vai esquecendo-se do coração, e ao final é pura cabeça, enquanto “Beauregard” vai aprendendo a usar um pouco o coração, até que finalmente, quando Brett lhe diz que a justiça não existe, que a justiça é apenas força, “Beauregard” lhe responde, “Sim, a justiça existe, ela está aqui”, e se golpeia no peito à altura do coração.

E quando “Beauregard” atira em Brett, será em um plano estranho, primeiro vemos apenas Brett, e em seguida ouvimos um tiro e quando Brett cai descobrimos “Beauregard” atrás dele, como se por um tempo eles tivessem sido, tivessem podido ser, o mesmo, a mesma inteligência e coração compartilhados, para fazer grandes coisas, isso que Brett repete enquanto agoniza, tinha planos, grandes planos, mas “Beauregard”, bom aluno do antigo Brett, aquele que tinha um enorme coração, “Beauregard”, aquele que aprendeu a não disparar sempre, com um tiro rompe a união.


Parênteses


Embora talvez tudo pudesse ter sido de outra forma, eu não sei, tudo deveria ser possível neste filme em que cada sequência traz uma reviravolta do destino, uma decisão ou um acaso que mudam tudo, acasos e decisões que poderiam não ter existido e que, no entanto, vistos de longe, parecem traçar destinos dos mais claros e lineares.

O acaso no qual quero acreditar, o acaso que poderia ter feito com que tudo fosse diferente para Brett Fletcher, é essa bala que mata a mulher que ele desejou, espancou, violentou, e quem sabe se ela o quis, essa mulher que morre após o assalto, assim que regressa a Piedra de Fuego, já ferida, e no momento em que Brett vai beijar a sua cabeça ela cai para trás, sem vida, quem sabe o que teria sido de Brett Fletcher se ela tivesse sobrevivido, quem sabe o que teria acontecido com ele se ela pelo menos tivesse vivido um segundo a mais, até esse beijo que agora fica no ar.


História de um encontro


No final de O dia da desforra e Corre homem, corre, os outros dois filmes de velho Oeste de Sollima, dois homens, Cuchillo e Jonathan Corbett no primeiro e Cuchillo e Nathaniel Cassidy no segundo, depois de passarem se perseguindo e lutando ao longo de todo o filme, finalmente se encontram e unem forças se aliando ao mesmo lado, o lado justo, que é mais ou menos o lado do povo.

E então, uma vez que tenham se encontrado, uma vez que tenham mudado de convicções e de lado, eles podem parar de se perseguir, podem se separar e galopar cada um ao seu destino.

A união torna possível a separação.

Em Quando os brutos se defrontam “Beauregard” Bennet e Brett Fletcher não tardam meio filme para se aliarem e a partir de então o que farão é se afastar um do outro e pareceria então que este filme não repete o esquema dos outros dois.

Mas é que, na realidade, por trás desse encontro havia outro que parecia secundário e que, no entanto, é aquele com o qual o filme vai terminar, o encontro entre “Beauregard” e Siringo, entre o bandido e o homem da Pinkerton, que no último momento se aliam e se separam, tendo os dois mudado, tendo os dois feito o que lhes ditava o seu senso de justiça, para além do que lhes designava seus papéis de bandido e de agente da lei.

Embora Siringo não seja exatamente um agente da lei, não seja um xerife, ele é um homem da Pinkerton, um detetive particular, um espião, um agente infiltrado (não um traidor, este é Zachary Shawn) com uma missão a cumprir, acabar com o bando “Beauregard” Bennet, uma missão que seus chefes lhe deram, mas que depois de algum tempo parece que ele a deu a si mesmo, tem suas próprias regras, também pretende atuar por baixo do umbral da História, para capturar os bandidos sem ter que arrasar Piedra de Fuego.

No devido momento, Siringo se põe do lado de “Beauregard” Bennet dizendo que o velho “Beauregard” não existe mais, agora Beau é um novo homem e, portanto, a ordem de captura que havia sido expedida contra o velho Beau já não é mais válida, a lei, para Siringo, não pode ser castigo, a lei não deve olhar para o passado, mas para o futuro, não para o que Beau, o velho Beau, fez, mas para o que Beau, o novo Beau, fará.


Histórias sem nome


Brett Fletcher, “Beauregard” Bennet e Charley A. Siringo, que nomes, que nomes felizes.

A primeira e a última coisa que resta da aventura são os nomes.

Eles são o primeiro eco, são a última memória.

Com um nome é possível imaginar tudo, é possível crescer, é possível viver várias vidas.

Brett Fletcher jogou com isso quando inventou uma lenda para o pobre Rusty Rogers a partir do seu simples nome.

Brett Fletcher, “Beauregard” Bennet e Charley A. Siringo, três nomes para três homens no umbral da História, três nomes que dão mais para acabar em canções que nos dicionários.

Mas há também todos os sem nome, todos aqueles que não acabarão nem nos dicionários nem nas canções, aqueles que no filme aparecem em segundo plano, apenas por um momento, e depois desaparecem com suas vidas, com suas histórias.

Quando Beau parte em busca dos membros do seu antigo bando, encontra um deles protegendo um carro dos correios.

Cumprimentam-se felizes, e o velho fora-da-lei, atual agente da lei, muda de lado, volta a ser um fora-da-lei.

E não se esquecem, é claro, de saquear o carro.

Mais tarde, quando “Beauregard” e seus companheiros tiram o dinheiro dos envelopes, Brett, que os acompanhou, pega um deles e se interessa não só pelo dinheiro, mas também pela carta que o acompanha, e começa a lê-la em voz alta: “Querido filho, vendemos a casa e aqui está o dinheiro para você, não se preocupe com a gente, eu e sua mãe somos bastante velhos e as pessoas velhas não precisam de muito...”

“Beauregard” não aguenta ouvi-la, não pode ouvir, não, a história dos sem nome por trás dos pequenos envelopes roubados, esse mundo que já não é seu, mas tampouco é o de seus inimigos.

E de todas as histórias e dos rostos sem nome do filme eu agora me lembro de outro.

É quase ao final, quando os sobreviventes do massacre de Piedra de Fuego fogem pelo deserto.

A roda de uma das charretes quebra, ficando ali atirada.

Brett Fletcher pretende levar consigo uma mulher loira, de olhar corajoso, mas ela se nega.

Em seu lugar, a mulher loira toma um menino e o dá para Brett, para que o ponha a salvo.

E quando Brett galopa levando o menino vemos o rosto da mãe, uma mulher índia, morena, silhuetada contra o céu, indecifrável, ainda que talvez, por um momento, se veja algo de tristeza diante da separação ou diante do inevitável.

Então veremos caminhar através do deserto essas duas mulheres e os outros sobreviventes da charrete, povo do deserto, povo a pé, sem cavalos.

E veremos surgir por trás deles e à frente deles os mercenários a cavalo.

Os veremos cair sob disparos.

Veremos a mulher loira correndo até que não sirva de mais nada seguir correndo, sabendo que nada pode a pé e desarmada, que nada pode ante o progresso do massacre ou o massacre do progresso.

Dela, deles, não restarão mais que ossos no deserto.


Um esquecimento


Em Corre homem, corre, um oficial da Revolução Mexicana lamenta que o poeta que tinha em suas mãos o destino de todo o povo mexicano (por ser poeta, mas principalmente porque ele sabia onde estava escondido um tesouro) tenha morrido por ter se interposto ante um homem que atirava contra uma mulher em uma aldeia perdida, e Cuchillo lhe responde que talvez para o poeta, naquele momento, o povo mexicano era essa mulher.

Ou, como quem diz, a História era ela.

Brett Fletcher, quando lia as cartas roubadas, era como aquele poeta.

Brett Fletcher, quando colocou Piedra de Fuego para trabalhar, esqueceu o que sabia.

Quando os brutos se defrontam é, também, a história de um esquecimento.


(Traduzido por Valeska G. Silva)

 

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